segunda-feira, 19 de maio de 2025

DINHEIRO EM CIRCULAÇÃO NO TEMPO EM QUE O PRIMEIRO EVANGELHO FOI INVENTADO POR UMA MULHER EM ROMA


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Ilustração: Moeda romana comemorativa da conquista da Judeia - IUDEA CAPTA

Música: Roman Anthem / Light of Rome

AS UNIDADES MONETÁRIAS EM ITÁLICO SÃO AS MOEDAS CUNHADAS E AS UNIDADES MONETÁRIAS ENTRE ASPAS SÃO MOEDAS QUE NEM SEMPRE ERAM CUNHADAS


Denário
ou Dracma
Fenício
Grego
Romano
Judeu
6000

TALENTO = 34kg ou 75 libras de prata
(240) AUREI

100

MINA = 0,45kg ou uma libra de prata


25


AUREUS de ouro

4
STATER ou TETRADRACMAde prata
TETRADRACMA de prata

“shekel”
2
DIDRACMA de prata         
DIDRACMA de prata

“meio-shekel”
1

DRACMA de prata
DENÁRIO de prata

1/4


SESTÉRCIO de bronze = ¼ de denário

1/8


DUPENDIO de bronze = ½ sestércio

1/16

“assarion”
AS de bronze = ¼ de sestércio

1/32


SEMIS de bronze = ½ AS

1/64


QUADRANS de bronze = ¼ AS

1/128



LEPTON ou PRUTA debronze = ½ quaadrans


        
Firme nunc me spondeo
Fidelis tibi maneo
Bella priorum cara patria
Nunc et semper florens gloria

Pulchras terrae patriae!
Fortes terrae pro homines
Romae noster aeterne
Vis cavire domum navium

Frusta ipsa impetur
Sunt sine spe!
Domus dulces portula
Fraudi ob sat

Tubae militaris vox
Legiones procat mox!
Et in tota patria
Cantus victoriae resonat

Et in tota patria
Cantus nostrae resonat
Tempus est in gaudium
Superbiae Roma aeterna

domingo, 18 de maio de 2025

HISTORICIDADE EM FILMES: O NOME DO PODER ABSOLUTO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Clique no link abaixo do texto e leia-o ao som da trilha sonora do filme

Embora seja um filme de ficção, O Nome da Rosa, uma adaptação do livro homônimo de Umberto Eco, contém uma rica historicidade que raríssimas pessoas percebem. Se você ainda não o viu ou se já o viu mais de uma vez, vai aqui uma dica. Assista a este filme novamente, mas com outros olhos e ouvidos. Deixe de lado as tradicionais resenhas de críticos cinematográficos de jornais e revistas e disponíveis em sites na internet. Esqueça também a complicada questão semiótica que envolve o título. Tente ir mais fundo na história. Enquanto você se diverte com o roteiro policial no estilo Sherlock Holmes, você pode também exercitar sua mente. Que tal, por exemplo, fazer uma abordagem filosófica para entender porque as pessoas agiam daquela maneira naquele tempo (século XIV)? Para começar, um bom exercício é procurar entender porque a igreja preocupava-se tanto em proteger o nome de Aristóteles.

Uma das questões centrais do filme refere-se ao monopólio do saber pela igreja que receava ter seu poder e influência social, política e econômica ameaçados e, para defender-se, bloqueava o acesso ao conhecimento e restringia o seu desenvolvimento, aplicando-lhe sua concepção de um universo estático e de uma ordem hierárquica imutável. Você vai constatar esta noção quando um monge beneditino, ao dar como solucionadas as mortes misteriosas que foram atribuídas a ação demoníaca de três pessoas acusadas de heresia (o ecônomo, seu ajudante e uma camponesa), anuncia, numa cerimônia noturna que precede a execução dos supostos hereges, a volta da normalidade, que para ele é a preservação do conhecimento e não a busca do mesmo, pois não existe progresso na história do conhecimento, mas meramente uma contínua e sublime recapitulação. Este conceito do clero está ligado à filosofia aristotélica que serviu para fundamentar os dogmas cristãos no início da alta idade média e, como se supunha que houvesse outras obras de Aristóteles que pudessem contrariar os preceitos da igreja, esta impedia qualquer contato com aquilo que ela chamava de conhecimentos inconvenientes contidos em tais obras e, consequentemente, se apoderava das mesmas. O frei franciscano, William, personagem central, já estava habituado com certas ideias retrógradas da igreja e, antes de encontrar o livro 2 de poética de Aristóteles, que é um elemento fictício no enredo, acabou por descobrir a biblioteca do mosteiro, ficando fascinado com seu tamanho e acervo, a maior da cristandade nas suas palavras, levando-o a fazer os seguintes comentários para o noviço Adso: Ninguém deveria ser proibido de consultar esses livros. Eles contêm uma sabedoria diferente da nossa e ideias que nos fariam colocar em dúvida a infalibilidade da palavra de Deus. É significativo, inclusive, o filme mostrar esta imensa biblioteca, pois confirma o fato historicamente conhecido de que, desde o século IX, os mais abundantes recursos disponíveis da época convergiam para a instituição monástica, levando-a aos postos avançados do progresso cultural. Para acumular tal acervo, a igreja valeu-se de apropriações indébitas e aquisições na base de doações espontâneas em abundância, encargos e tributos diversos em troca de proteção espiritual. Com essa concentração de riqueza, a igreja teve meios de obter e manter um patrimônio cultural vasto que lhe permitiu se impor como a única educadora formal. Para a igreja, o domínio do conhecimento informal poderia induzir o homem a desmistificar as crenças dogmáticas cristãs e colocar em dúvida esta infalibilidade da palavra de deus tal qual a igreja a apresentava ao mundo. A necessidade de supressão ao acesso do conhecimento produzido por grandes pensadores ao longo de séculos é mostrada logo no início do filme, de uma forma um tanto ameaçadora, quando, na eminência de ocorrer a segunda morte misteriosa, um monge noviço é visto, com sobreposição de imagem do monge Venerável Jorge, lendo uma escritura do clero com estas palavras: Na sabedoria há tristeza e quanto mais conhecimento se obtém mais tristeza advém.

E o que há de errado nesta concepção de Aristóteles que a igreja precisa esconder? Na verdade, nada! Ocorre que o filme sugere que Aristóteles teria escrito um segundo livro de Poética, mas totalmente voltado à comédia. Seria um livro que faz rir muito. Esta é outra grande ameaça à igreja e atinge o seu principal instrumento de influência, a inabalável fé que dispensa a razão, contagiada de orgulho e soberba, na opinião de um dos seniores do mosteiro, e incita uma inaceitável quebra da regra beneditina de ascetismo oriental, disciplina, retidão, virtuosismo, obediência e reverência a Deus, exemplo absoluto de tudo o que há de bom e sábio, a verdadeira perfeição que o homem deve buscar. Para os beneditinos, o simples riso já era uma quebra desta regra de conduta (é proibido rir), e isto está diretamente relacionado com o conceito de Deus como o criador divino, e com a igreja como seu representante na terra, e ambos deveriam levar a cabo suas missões com caras fechadas. Para a igreja, se Deus fosse desrespeitado, ela seria ridicularizada e correria o risco de ter seu domínio sobre os homens enfraquecido, pois, sendo ela o preposto de Deus no mundo, ela cairia em descrédito se o seu representado, a igreja cristã, deixasse de ser necessário. Esta associação entre o riso como violação de regra de conduta e ameaça à imagem de Deus, assim definida pela igreja, pode ser apreendida com clareza num trecho do filme no qual o frei William descobre que o livro cômico de Aristóteles existe e está em poder do Venerável Jorge, o beneditino que segue à risca as normas de conduta de sua ordem e que, por isso, não admite o riso em hipótese nenhuma, dando margem ao seguinte diálogo:

- Tantos livros falam de comédia, por que esse lhe causa medo?
- Porque é de Aristóteles!
- Mas o que há de tão alarmante no riso?
- O riso mata o temor e sem temor não pode haver fé. Se não se teme o demônio, Deus deixa de ser necessário. Se todos os homens rirem de Deus o mundo cairá no caos.

A igreja cristã assentou o seu modelo filosófico religioso nas ideias de Aristóteles e, consequentemente, não poderia admitir a existência de um livro de Aristóteles sobre comédia que faz rir e viola as regras da rígida moral beneditina. Lembre-se o que o Venerável Jorge sentencia numa discussão com o frei William na oficina de escrita: Um monge deve manter silêncio, não deve falar sobre seus pensamentos até que seja questionado. Não deve rir, pois para isso existe o bobo que levanta a voz em risos. No entanto, no decorrer do filme, fica evidente que o diálogo acima referido reflete uma preocupação muito mais profunda: não é apenas a regra beneditina que pode ser quebrada com o riso, mas é também o próprio poder da igreja no seu todo que pode ser abalado, pois a igreja governa as mentes com base na instituição da fé que dispensa explicação e demonstração, bastando-se pela sua autoridade que é inquestionável, e impondo-se pelo medo. Se o homem deixa de ter medo, do demônio ou de Deus, a igreja torna-se desnecessária e Deus também. Muito bem. Você deve estar se perguntando: mas o que é este conceito aristotélico de ‘ordem hierárquica imutável’ no modelo filosófico religioso da igreja cristã? Então aqui vai uma explicação bem prática. Suponhamos que eu faça parte do clero do século XIV. Nada me falta, tenho mordomias e não preciso trabalhar para o meu sustento. Você faz parte da maioria pobre, trabalha 16 horas por dia para sustentar a aristocracia ou o clero ou ambos e sobrevive das sobras de seus patrões. Um dia você vem a mim e pede-me para deixá-lo entrar para o clero e eu lhe respondo. Isso é inadmissível. Deus criou alguns para representá-lo na terra e guiar os demais que foram colocados no mundo para servir e obedecer. Se você nasceu como um camponês, você deve ser um camponês até o fim de sua vida. Se Deus quis que eu fosse um líder religioso, devo conformar-me com minha incumbência até o dia de minha morte. Se um de nós fizer qualquer mudança, estará transgredindo a lei de Deus e pagará caro no dia do juízo final, entende? Sim, você entende tanto quanto aquela camponesa que satisfazia os prazeres sexuais do ecônomo do mosteiro em troca de um rico alimento que era privilégio só dos monges, e teve que seguir vivendo, sempre servindo, se vendendo e se humilhando, sem sonhos e sem futuro. Mesmo que eu não pertencesse à minoria clerical, eu lhe daria a mesma resposta prática se eu tivesse a sorte de ter nascido como filho de outra minoria, a aristocracia, que andava de mãos dadas com o clero. Eu poderia ser o Adso do filme. Ele é filho do abastardo Barão de Melk. Somente os ricos podiam propiciar algum tipo de educação aos seus filhos e somente a igreja tinha autorização para educar. O Barão de Melk confiou seu filho, Adso, à ordem franciscana, e frei William foi indicado para seu tutor.

Preste atenção no cenário do filme, lembrando que o ano é 1327 e.c. É fácil perceber o modo de produção de bens agrícolas vigente. A estrutura desta produção é típica da fase em que o feudalismo já está com suas bases estabelecidas, e isso pode ser visto em uma das cenas em que vários camponeses formam fila para pagar tributos com alimentos tirados de sua produção agrícola. Para entender melhor, vamos lembrar o que era a ordem beneditina. Ela foi fundada por Bento de Nursia no limiar do século VI e era a difusão, no Ocidente, das normas de ascetismo oriental concebido por Santo Antão no Egito, no chamado movimento dos anacoretas, que fugiam das cidades para o deserto em busca de isolamento e profunda contemplação e oração como meio de salvação. Para ambos, Ocidente e Oriente, aquele era um momento terrível, de guerras, de carestia, de epidemias e de exploração agravada das massas trabalhadoras sobre as quais recaia o maior peso da crise resultante da decadência e cisão do antigo império romano. A regra de Bento acrescentava à oração e à contemplação o lema reze e trabalhe. Dentro desta regra, o trabalho devia ocupar o dobro do tempo reservado à oração e a comunidade devia ser autossuficiente e não se basear demasiadamente nas contribuições dos ricos que visavam condicioná-la. Assim, a produção agrícola, que havia descido a um nível bastante baixo, acabou até mesmo sendo melhorada pelos beneditinos com seus novos métodos de cultivo dos campos, promovendo, inclusive, a melhoria das condições econômicas do Ocidente. Com o decorrer dos séculos, os mosteiros beneditinos transformaram-se em castelos feudais, com seus servos de gleba que não eram tratados melhor que os outros até que a corrupção monástica se desenvolveu e atingiu um ponto intolerável, imitando o regime feudal externo, e exigindo uma reforma imediata, que se chamou Clunisiana, de Cluny, o francês que a idealizou. Tal reforma que, entre outras mudanças, abolia também a produção agrícola interna, sustentava que o ideal de suficiência deveria ser mantido, com a diferença que o abastecimento cabia às explorações satélites dispersas no campo, em torno das muralhas dos mosteiros. O mosteiro que você vê no filme é estruturado nos moldes da reforma Clunisiana quando já não havia mais produção agrícola interna e o abastecimento de alimentos é obtido à custa dos camponeses que, como é dito no filme, receberão 100 vezes mais no céu aquilo que deram na terra (dos espertos beneditinos, é claro).

O filme inteiro é rodado num único cenário: o interior do mosteiro. Outro bom exercício é identificar algumas das várias unidades monásticas e as funções exercidas pelos moradores do mosteiro que o filme descreve com perfeição, só com imagens, e que são corroboradas pela excelente coletânea de livros chamada A História da Vida Privada, e que revelam uma interessante associação entre conceitos dogmáticos, a estrutura orgânica, hierárquica e funcional dos mosteiros e a relação interna de poder. No feudalismo, as casas dos senhores da aristocracia eram concebidas a partir de representações imaginárias da morada perfeita, a partir do paraíso, da morada dos eleitos do outro mundo. Os senhores do feudo imaginavam o paraíso cristão como uma morada abundantemente povoada, exultante, a casa perfeita, como um paraíso resplandecente, preparado para as felicidades da vida. Os mosteiros beneditinos eram como réplicas, na terra, da morada paradisíaca, e pretendiam ser sua projeção neste mundo, apresentando-se como cidades fechadas com muros, em primeiro lugar, um claustro, cujo acesso deveria ser estritamente controlado, uma porta única, aberta ou fechada em certas horas como as portas das cidades e, a importância maior de uma função, a hotelaria, governando toda a relação entre o interno e o externo. Os mosteiros eram, em primeiro lugar, casas, cada uma abrigando sua família, das mais perfeitas e ordenadas. O modelo beneditino guardava uma vontade de correspondência estreita com as harmonias universais. A nave da igreja é o ponto de articulação entre a terra e o céu; neste lugar operar-se uma ligação com o paraíso, quando a comunidade ali se une para cumprir a função maior, cantar os louvores de deus no uníssono coro litúrgico; a residência fraterna fica ao sul do espaço litúrgico com as seguintes disposições: o pátio, o celeiro, as reservas de alimento, a cozinha, a padaria, o refeitório com depósito para roupas acima, a sala, ladeada pelos banhos e latrinas e encimada por um dormitório que se comunica com a igreja. Contígua a esta morada, estendem-se anexos de oficinas de artesanato (que antes da reforma Clunisiana continha também anexos para a produção agrícola e granja), jardins, estrebarias, estábulos e as cabanas dos servidores domésticos. Mais tarde, a reforma Clunisiana eliminaria quase todos os anexos contíguos, mantendo apenas a estrebaria. Ao norte, para além da igreja, ficava o alojamento do abade, uma casa munida de sua própria cozinha, seu próprio celeiro e banhos próprios; com a reforma, o abade foi reconduzido para o meio dos monges. A nordeste, os excluídos temporariamente da comunidade fraterna, os doentes e os noviços, são isolados em uma outra morada, também autônoma, mas dividida em dois, o local destinado às purgações e às sangrias (este é fácil identificar). Finalmente, perto da porta, a noroeste, os estrangeiros são albergados em duas casas providas do mesmo equipamento completo: uma que acolhe visitantes e estudantes externos que não fazem parte da família, e outra reservada aos pobres e peregrinos. Vê-se que tal organização pretende refletir as estreitas hierarquias da corte celeste. No centro está o lugar de Deus, o santuário; à direita está o lugar do abade, o pai da família; à esquerda esta a parentela: os filhos, os irmãos, os monges, homólogos de anjos. No ponto mais distante da porta, fissura aberta para o mundo corrompido, estão isolados os inválidos, os jovens noviços, crianças, velhos e os mortos (o cemitério fica neste lugar); este ponto é a parte mais vulnerável da comunidade e, em razão de sua fraqueza, fica afastada, mas também protegida pela destra divina, pois nesta mesma direita ficam os lugares destinados às funções espirituais, a escola e a oficina de escrita, enquanto o material, o que sustenta o corpo, é relegado à esquerda de Deus. As  sepulturas estão dispostas na direção do leste, do lado da aurora, símbolo da ressurreição, e para o oeste, do lado do poente, da perversidade do século, permanecem encerradas as pessoas de passagem. A reforma Clunisiana da metade do seculo XI, conforme explicado no parágrafo anterior, trouxe mudanças com relação à produção agrícola interna, legada aos camponeses habitantes da cidade, e com relação ao lugar do abade. A partir dai, vê-se mais intensificado o fornecimento de peças de vestuário por parte do burgo estabelecido à porta (comunidade de comerciantes, de artesãos e de servidores assalariados), pois a comunidade começava a utilizar mais o instrumento monetário. Assim, o mosteiro, no seio de sua clausura, tornava-se mais homogêneo, uma só morada. O abade é o senhor, mas é assistido por um corpo constituído de seniores a quem os jovens monges estão subordinados. Os chefes de serviço são o prior, espécie de vice senhor, abaixo do qual estão o sacristão que cuida da igreja, dos acessórios litúrgicos e de todos os instrumentos sagrados, o camareiro, responsável pelo dinheiro, que não cessou de crescer nos séculos XI e XII, e tudo que entra no mosteiro por doação, tributo e compras (tecidos, vinho, metais preciosos), o ecônomo, que dorme no celeiro, também chamado de senhor do celeiro, responsável por todos os víveres, repartindo a cada dia as porções de alimento com a ajuda do zelador de vinho, do encarregado de cereais e água e pelo condestável responsável pela cavalaria do mosteiro, o hospedeiro e o capelão que dividem o quarto oficio que são as relações com pessoas do exterior menos puras e que se mantém abaixo da dignidade monástica e a distribuição dos excedentes entre os indigentes: lembra-se da cena na qual o frei William diz: lá vai mais uma doação da igreja aos pobres? O âmbito privado, reforçado onde habitavam os senhores, o núcleo da família, a fraternidade agrupada atrás de seu pai, dividia-se em quatro grupos acantonados em quatro abrigos distintos: o noviciado, a enfermaria, o cemitério e o claustro. Esse último abrigo pretendia mostrar a imagem daquilo que devia ser na terra uma vida perfeita, e por isso empenhava-se em aproximar-se das ordenações do mundo celeste, isto é a ordenação dos quatros elementos do universo visível: ar, fogo, água, terra, no espaço interno, o pátio inferior chamado claustro, forma introvertida da praça pública, inteiramente voltada para o privado.

Como você viu ou reviu, o que move a trama do filme são as mortes misteriosas dentro do mosteiro e, com exceção das investigações sherloquianas do frei William, o que se ouve o tempo todo são várias interpretações místicas para encontrar a razão para tais mortes, comentários típicos da igreja que está toda impregnada da noção de Deus como criador do mundo numa forma organizada e hierarquizada e voltada para o bem, e tudo que contraria esta ordem vem da ação do demônio, o símbolo do mal. No filme, as mortes em sequencia são atribuídas a um fenômeno sobrenatural específico: o demônio que resolveu habitar o mosteiro. Para os monges, a causa desses crimes não poderia ser atribuída a outro senão a ele, o demônio, por que tais tragédias no seio de uma comunidade governada por aquele que representa o bem absoluto não poderia ser obra de homens comuns, mas somente daquele que se opõe ao bem, ou seja, o anticristo. Os monges acreditavam na ação do demônio, incluindo-se entre eles até mesmo os franciscanos em visita ao mosteiro. Observe-se que os franciscanos eram menos ascéticos e rígidos do que os beneditinos no que diz respeito às normas de conduta e à condição humana de cristo, no entanto, como se  percebe no filme, até um líder espiritual dos franciscanos, perseguido pela inquisição católica como um herege, faz uso de especulações místicas e apocalípticas para explicar as referidas mortes, o que assusta o noviço Adso, apesar das constantes explicações racionais de seu tutor, o frei franciscano William, adepto do pensamento grego antigo, especialmente o de Aristóteles, e que, ao contrário dos seus irmãos de todas as ordens cristãs, só recorre a Aristóteles para por em prática a sua lógica, de forma coerente para, assim, provar que as mortes são apenas simples atos comuns de homens comuns. Tudo não passa de um suicídio e vários assassinatos por causa de um único livro que ri do mundo como o homem ri de si mesmo.

O frei William conhecia a verdade dos fatos e a revelou a todos os seus irmãos cristãos. Mas a verdade não lhe pertencia. Ela já tinha dono: um organismo jurídico da igreja que completava a humanística trindade: a santa inquisição como o espírito santo entre o pai (a igreja) e o filho (todos os pobres). Mesmo nos nossos dias, a igreja católica e seus seguidores ainda mal conseguem explicar a relação entre o pai e o espírito santo. No século XIV, a igreja e seus escravos que a sustentavam também não sabiam, ao certo, até onde ia o poder da santa inquisição em relação ao papa no vaticano. O que mais se sabia a respeito deste organismo brilhantemente presidido no filme por Bernardo Gui, é que ele exercia todos os poderes concebíveis: legislar em causa própria, julgar inocentes coerciva e arbitrariamente e executá-los sumariamente.

Você deve ter reparado no arsenal de instrumentos de tortura que a delegação da santa inquisição levava para onde ela era chamada para investigar. Mas você não faz ideia da criatividade desta santa no desenvolvimento de certos instrumentos e métodos com um requinte de crueldade que faria inveja aos romanos. Acrescento aqui um destes instrumentos não mostrado no filme que tinha função tripla: torturar, matar e intimidar quem  desafiasse seu poder. Na Espanha, minha tataravó testemunhou a ação de um exército da santa inquisição entrando em seu vilarejo e arrancando de uma das casas uma jovem suspeita de bruxaria. Ela foi completamente despida e montada sobre um cavalo de ferro oco e repleto de brasas incandescentes por dentro. Ela desfilou montada naquele cavalo por toda a vila até morrer, enquanto todo o povoado se trancafiava em suas casas e espreitava assustado pelas frestas das janelas. Este exemplo é uma herança romana aperfeiçoada pelo cristianismo que, afinal de contas, começou na antiga Roma e, em apenas três séculos, se tornou a religião oficial do império romano. Quando este caiu, a igreja católica tomou seu lugar central e todas as suas colônias, tornando-se um novo império em si, mais poderoso, mais extenso e muito mais duradouro. Ele começou pequeno como Roma, uma cidade-estado que se expandiu, se tornou uma república, rompeu suas fronteiras, conquistou outros povos e se transformou no maior império da história da humanidade. Todos os que desafiavam o poder de Roma eram crucificados em público para servir de exemplo. O cristianismo aprendeu muito com os romanos e atingiu o auge do exercício de seu poder absoluto com a instauração da santa inquisição. Assim como o império romano acabou, o cristianismo acabará também. Sua desintegração teve início na Europa no século XVIII, com o surgimento do Iluminismo e as primeiras análises científicas dos textos dos evangelhos, e sua extinção completa deverá ocorrer em menos de um século. Ele será substituído por outro poder que eu não estarei aqui para ver.

sábado, 17 de maio de 2025

MENINO TRAPO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. Clique no link abaixo e leia o texto ao som de uma música apropriada para o mesmo

Menino trapo, Perde-se na memória do tempo nos meus abraços, Na sua nova morada seu mesmo cuidado, Vem do bem que mais se enseja, Do amor que mais se procura, Foram-se as noites de folguedos a olhos fechados, De segredos guardados pelos astros, De teu conjurador as palavras emudeciam, As lembranças que na alma lhe moravam, Foi-se a menina de corpo pequeno e malfeito, Vistosa na janela do espírito, Nas flores e folhas que enchem o peito, Com uma ave-maria rezada a medo, Menino trapo, Encontra-se no desconhecimento da história nas minhas inspirações, Na sua nova jornada sua América descoberta, Vai do saber que não apenas se escreve, Do privilégio de ler primeiro o que a mente cria, Achegam-se os belos dias que aproveitam-se de inocentes, De maneiras acanhadas de emoção, De teu coração as batidas palpitam, As sombras da fé que descem ao fundo de sua ingenuidade, Chegam as crianças de faces coletivas e desapercebidas, Nos bilhetes e mãos acenadas, Sem uma malícia imposta por um sacrifício hediondo.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

SHADOW MAGNET RITUAL

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Sinto-me menosprezada, Mordendo as areias-gordas do deserto, O mormaço escandeando, Fecham meus olhos, Meu corpo quase se abandona, Sinto-me inacabada, Como a pirâmide de Neferefre, O peso dos metais não era tudo para mim, Não, Não, Não, Que o escriba anote isto em seu papiro, Mas com meu junco, Escreva com minha caneta de junco, Amósis Nefertaria, Amósis Triste, Pranto é meu rótulo, Será que alguém abriu meu sarcófago no meio de um salão vazio entre velas magoadas? O sofrimento é meu preceito, Quem são estes parses do futuro que me oram ao meio-dia? Se eu parti, Procure-me numa tumba, Porque lá deverias me encontrar, Mas não? Oh minha Tebas eterna, Por favor, jamais me abandone, Será que alguém consegue amar meu amor? Sim, consegue, Tu és a Amante do Céu, A Senhora do OcidenteVocê acha que eu minto? Sim, você mente, Mas troca as mentiras por uma sensação inebriante, Você acha que sou bélica? Não, Você oferece o Anjo da Manhã em troca do fim de uma guerra, Mesmo se..., Mesmo se melhor fosse esquecer seu deus da cidade, E seu timoneiro do Nilo, Eu chamo muito a atenção? Não, você conquista numa quinta-feira à noite, E deixa para comemorar, Sozinha, Numa sexta-feita de manhã, Mas isso é tão difícil! Sim, é, Mas só você pode, E você pode ler meus sonhos? Sim, O que você vê, ouve? Eu ouço, Sua voz, Acompanhada de invisíveis flautas, Harpas, Gaitas de fole, Violões, Liras, Trombetas, Todas as percussões, Todos os instrumentos, Você acha que continuarei vivendo no mundo dos mortos? Ele não é mais teu amorVocê vive entre nós, A Mais Venerada, Deusa da Ressurreição, A Mãe de Deus, Mas ainda se parece com meu amor, Quantas dinastias passarão até que eu seja completamente esquecida? Nenhuma! Como pode ser? Porque você foi abandonada na eternidade, E é por isso que você sente-se inacabada! Qual é meu nome entre vocês? Lisa, Lisa Nefertaria?, Não, Lisa Gerrard! Louvado seja esse ritual da ressurreição! Acordei o sagrado masculino em você!


quinta-feira, 15 de maio de 2025

ENTRE SOMBRAS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM,Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

O homem que liderava as tropas de minha nação, Perdeu a última batalha, Nunca lutei ao lado dele, Tornei-me cínica e indigna de sua confiança, De sua admiração, O que sobrou para mim foi pureza que tomou gosto pela malícia e pela maledicência, Sua oportunidade fez um ladrão, Temeu-me e rejeitou-me, Deixei a flor de minha fidelidade, A força de minha nobreza se foi com minha verdadeira imagem de bondade e honestidade, E a filha do Deus do Fogo, Carente de minha presença, E triste com meu abandono, Lançou sombras em meus olhos, Obrigou-me a vestir a carapuça de minha bipolaridade e contaminar o mundo, Agora me sinto desamparada, Diante de janelas azuis atrás das estrelas, Vendo todos que me foram caros atravessarem os céus, Os lírios-da-paz, Os combatentes com arcos de teixo, Os sóis de Édipo, As castidades controversas, E perambulando pela terra, Os que decepcionei e enganei, As rainhas guerreiras, Os ricos e poderosos, Os pequenos asiáticos do mar, Os governadores do lar e da pátria com suas amarguras, E mais de trezentos de Esparta que, Pelo arrependimento que me exaspera, Restringem meu louvor aguçado pela paideia de Atenas, E o consolo que recebi das irmãs do universo foi uma clemência concedida, Cegamente, Por mártir que luta, Incondicionalmente, Pelo meu amor e para aplacar meu ar de superioridade e intransigência.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

SEMELHANÇA A DEUS

Texto  de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

O trecho do livro que eu te enviei não foi inspirado em música. Na verdade, ele foi escrito na terceira pessoa. É o narrador quem fala do personagem. Eu fiz minha própria leitura do texto e o coloquei na primeira pessoa, como se o próprio personagem estivesse falando sobre si mesmo só para você. Mas no livro não é assim. Para te explicar o que pretendo dizer no livro levaria mais tempo do que ler o livro inteiro. Eu escrevo não apenas porque gosto, mas para deixar registrado que tive uma vida neste planeta e também para passar adiante tudo que consegui aprender lendo muitos livros. Nunca tive e ainda não tenho a mínima pretensão de ser um escritor, muito menos ainda culto e inteligente. Além disso, não tenho condições de escrever um livro de não-ficção porque ninguém, se houver alguém, me levaria a sério. Então, penso ser mais fácil passar adiante meu aprendizado sob a forma de ficção. É difícil ou até mesmo impossível alguém se interessar pelo que escrevo e perceber algo subjacente ao meu texto metafórico. Este trecho que eu te enviei ocupa apenas cerca de 90% de uma única página de um livro que pretende ter cerca de 250 páginas, e já estou quase na metade. No entanto, este trecho de 45 linhas contém muito mais informação do que pode se perceber à primeira vista. Este trecho se encontra na página 19 do livro. Lendo-o isoladamente, da maneira como você leu, não é possível se ter qualquer ideia do que o narrador fala sobre o personagem secundário chamado Tilly. Se você ler as primeiras 18 páginas, você terá uma vaga noção sobre o que o narrador pretende dizer a respeito do personagem. Mesmo assim, não será tão fácil entender o todo, mesmo que você ler o livro inteiro quando eu por no papel as 125 páginas restantes que estão impressas em minha mente. Não tenho a ridícula petulância de querer imitar James Joyce. Meu livro não é ilegível como Paulo Coelho qualificou Ulisses, considerado o melhor romance dos tempos modernos, assim como seu autor, James Joyce, é considerado o melhor escritor da literatura moderna no mundo. Não duvido, e sei que você não me dirá, que você achará estas 45 linhas de má qualidade, banais, triviais e bregas, um patético amontoado de retalhos sem nexo e pretensamente sofisticado. O que mais importa é que este trecho é bonito para mim, pois eu usei a alma para escrevê-lo. Normalmente meu cérebro reúne as informações que acha úteis e depois deixa a alma descrevê-las à sua maneira, mas cuidando para não parecerem ilógicas, pois o cérebro está sempre por perto, observando o tempo todo. Nas primeiras 18 páginas páginas, o daimon de Tilly, aquela voz interior citada por Sócrates, fala muito sobre este personagem, e a partir da 19 ele passa a descrever seu comportamento com ideias concretas e abstratas, através de alegorias e metáforas, atribuindo ao personagem cores, seus efeitos psicológicos sobre o ser humano e seus sentidos abstratos a elas atribuídos pelo homem. Coloca-o também lado a lado com as estrelas e suas temperaturas que guardam relação com cores. Por último, ele faz menção à maneira como os psicólogos, como você, descrevem o comportamento das pessoas bipolares e desequilibradas nas suas fases maníacas. Um pouco antes da página 19, o narrador dá indícios de que o personagem Tilly está se aproximando do auge da fase maníaca do seu transtorno afetivo bipolar, se envolvendo com o espiritismo e se tornando um fanático. Este trecho é uma síntese do estado paranoico de Tilly. A cor escolhida para representar tal estado é o azul porque no sentido abstrato ela simboliza um mergulho na espiritualidade e no sentido concreto uma elevação da temperatura - um eufemismo para euforia. Ao contrário do que todos pensam, o azul que está associado à frieza na terra, é quente no universo. Todas as estrelas têm cores diferentes vistas pelos nossos telescópios. A azul é a mais quente do universo, enquanto que a vermelha é a menos quente. Para não deixar dúvidas, eis aqui a escala das estrelas com suas respectivas temperaturas e cores, desde a mais morna até a mais quente:

Vermelha =  3 mil graus

Laranja = 4.5 mil graus

Amarela = 6 mil graus (nosso sol)

Verde = entre 7 e 9 mil graus

Branca = 10 mil graus

Azul = Acima de 35 mil graus

Na fase maníaca, o estado de humor do bipolar se eleva demais ... O espírito de Tilly elevou seu ânimo às alturas... e, dentre as várias possíveis manias, seu daimon escolheu a espiritualidade, representada pelo azul, e, em consonância com essa cor, ele apresenta vários aspectos desfavoráveis de sua natureza, entre as quais, o desvario de um pseudo polímata que busca mais conhecimentos do que ele pensa ter sem parar ....e ele se pôs a procurar numa busca incessante... É também característica do azul sua tendência para o sobrenatural ...penetrando incólume nas profundezas dos domínios do imaterial e do supra terreno... O maníaco se sente um deus no topo do mundo e seu estado de humor elevado pode significar uma alegria contagiante a contragosto de seus interlocutores  ...tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com alegria esfuziante... Para comparar seu sentimento de grandeza com uma estrela azul, que além de ser a mais quente do universo é também das mais massivas, o daimon escolheu a estrela chamada Naos, que em Grego significa literalmente uma nau, uma embarcação, uma das mais brilhantes no céu e uma das mais raras estrelas azuis super gigantes, com uma massa 60 vezes maior que o sol, localizada a uma distância de 1.400 anos luz da terra. O daimon a coloca no lugar da estrela Sírio, mas só mais adiante você entenderá porque ele fiz isto, e ele continua adjetivando o senso de grandeza do maníaco ...no topo do cosmos, logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso, invencível.... O azul é uma cor santificada e enquanto o personagem transita por ela, o daimon vai descrevendo vários tons de azul tais como o azul persa e o azul prussiano ...Tilly é sagrado, divindade persa e prussiana... Para dar uma ideia do tamanho do sentimento de grandeza do personagem, o daimon mostra como a estrela azul Nau seria vista da terra se ela estivesse a uma distância de apenas 9 anos luz, exatamente onde está a estrela Sírio, que é um sistema binário composto por duas estrelas, Sírio A e Sírio B ... e de lá, mais acima no lugar de Sírio Alfa e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra... Na fase maníaca, o bipolar fala alto e rápido demais e não percebe. Ele fala sem parar e sua voz parece um trovão - no evangelho de João, Jesus chama os irmãos João e Tiago de Boanerges, que em Aramaico significa ‘filhos do trovão’, referindo-se ao temperamento intempestivo de ambos - e suas ideias correm rapidamente a ponto de não concluir o que começou e sempre emenda uma ideia inacabada com outra nova numa sucessão quase interminável. A isto vocês,  psicólogos,  dão o nome de fuga-de-ideias ...e todos ouvem sua voz eloquente trovejar e mal conseguem acompanhar suas ideias difusas e furtivas, ideias de um filho de Boanerges... O daimon se refere ao personagem como a estrela Naos, chamando-o literalmente pelo significado de seu nome, uma nau, acompanhada de uma tonalidade do azul, o azul centáureo, e compara a sua passagem pela fase maníaca com uma particularidade das estrelas azuis gigantes. A estrela Naos é classificada pelos astrônomos como uma estrela fugitiva, porque ela se desloca no universo com uma rapidez impressionante. Desde que se formou, Naos se distancia de seu ponto de origem a uma velocidade de 100 km por segundo. Ela vai ganhando massa e temperatura na medida em que se mantém viajando pelo cosmos. Do ponto de vista astronômico, Naos tem uma vida curtíssima, assim como é curtíssima a vida humana na terra que existe há quase 5 bilhões de anos. E também pode ser curta a fase maníaca de um bipolar em relação ao seu período depressivo, mesmo que demore meses, tendo em vista que a expectativa de vida do homem chega a 80 anos. Acho que para todos a vida humana nasce pequena como um rio que brotou de uma pequena bica, uns pingos d’água que se esguiam por entre as rochas, depois viram um filete de água corrente, depois um riacho, e finalmente um rio abundante que logo desemboca no mar, para a morte, mas o mar é imenso, é o inconsciente coletivo, a morte é mergulhar nele, onde os sonhos mais impensáveis são fabricados. Todas essas ideias estão compactadas na frase ....nau centáurea desde o nascedouro navegando apressada num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até o mar... Meu ídolo Pete Townshend compôs uma música chamada ‘The sea refuses no river’, ‘O mar não recusa nenhum rio’, então pensei: ‘muito menos um deus’, e a esse deus o daimon continuou acrescentando mais tons de azul, azul ciâno, azul cerúleo, e a estes tons agregou mais características abstratas desta cor ...o mar que não recusa rio, muito menos Tilly que é deus ciâno e cerúleo, confiante e devoto da fé... Finalmente, o daimon descreve o apogeu da fase maníaca, imaginando o que aconteceria com a terra se, ao invés do nosso sol, tivéssemos Naos no centro de nosso sistema: veríamos uma enorme lua cheia (do meio dia e da meia noite são nomes de tons de azul), as águas se evaporariam, a vida seria extinta, o ar seria irrespirável como ácido, e substancioso como lava de vulcão. Tudo isso é análogo ao que o maníaco depressivo faz com seus interlocutores, sufocando-os de tanto falar sem parar ...e que toma o lugar da fonte de toda energia que aquece oceanos e continentes, e de lá, no lugar do Sol Único, se torna lua cheia, lua do meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é água doce e salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é palco da fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante, derretido num mar de lava escaldante... O daimon adiciona mais atributos concretos e abstratos da cor azul, mais sintomas da fase maníaca, e mais tons de azul, azul aço e azul royal ...Tilly é habilidoso, curandeiro, incansável, é deus que não come, não bebe e não dorme, é sobrenatural, sobre-humano, forte como o aço, real como rei... O daimon começa a preparar o regresso da fase maníaca para a depressiva, como um deus que se torna humano, fazendo-o descer do céu ao chão, e vai acrescentando mais aspectos abstratos do azul, mais tons da cor azul, mais aspectos concretos da cor azul e mais sintomas do maníaco descendo a ladeira, fazendo a estrela Naos cair no chão, pois esta estrela é chamada pelos Árabes de ‘Suhail Hadar’, que significa literalmente ‘estrela que brilha no chão’. Por que interessa o nome desta estrela em Árabe? Durante os mil anos de trevas entre a alta e baixa idade média, enquanto o ocidente suprimiu o saber em favor da fé religiosa imposta pela Igreja dominante, os árabes desenvolveram, entre ouras coisas, um interesse muito grande pela astronomia e é a eles que devemos muitos nomes de estrelas por eles encontradas e batizadas. Exemplos: Altair, Aldebaran, Betelguese, Denebe, etc. Jung escreveu que ‘a falta de segurança do exaltado o induz a apregoar suas verdades, de cuja validez é o primeiro a duvidar, e, fazendo prosélitos, talvez possa provar-lhes o valor e a exatidão de suas próprias convicções, pois não sente gosto na abundância de seus conhecimentos, e, ao ficar só, sente-se isolado, e o medo de ser abandonado o impele a propagar suas opiniões e interpretações, a propósito e sem ele, porquanto, só convencendo alguém, se sente a salvo das dúvidas corrosivas’...mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa, como ele sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim e índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas erosivas querendo saber o que sua criação tem a dizer sobre sua obra, desce do seu pedestal sideral e inatingível, despenca como estrela cadente, vem ter com o homem, vive como ele, ilumina os quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como uma estrela brilhante do chão... O sujeito que se eleva demais ao ponto de se sentir um deus, quando cai na realidade, se afunda e entra em profunda depressão é, para o daimon, como um deus que não sabe administrar a vida que criou, que se vê perdido no seu próprio mundo. O maníaco, que caiu de seu pedestal e enfrenta a dura realidade de suas fraquezas e frustrações, ainda transita na cor azul por um tempo na fase depressiva, por isso o daimon faz mais usos de tons de azul, como o azul cobalto - cobalto é uma palavra de origem alemã que significa literalmente ‘demônio das minas’ - o azul água marinha, o azul ardósia, o azul flor de milho. É preciso mostrar como o ser humano se torna patético, tanto na hora que se sente um deus como na hora que se sente um parasita. É triste ver um deus se inebriar com a natureza terrena e humana ...Tilly se revela um deus que não conhece o mundo que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando com demônios de minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com água-marinha. Ele se inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho... Toda estrela azul super gigante, como Naus, tem vida curta, pois ela consome seu combustível rapidamente e, na medida em que ela se encaminha para sua morte, ela vai esfriando, passando pelas diversas cores das estrelas, de azul para branca, para verde, para amarela, para laranja até se tornar uma super gigante vermelha. E isso vai acontecer com Naus. Meu personagem Tilly vai morrer, e, enquanto um deus que caiu do pedestal celestial para uma vida patética, ele, como deus caído, continua provando de tudo o que há na natureza que possa representar estas cores que estão no caminho que leva uma estrela azul à morte, um caminho marcado por mudanças gradativas nas cores do espectro das estrelas, até se tornar uma gigante vermelha. O daimon começa, então, passando do azul para o branco, fazendo uso de tons de branco, branco gelo, branco neve, branco floral, branco fumaça ...O gelo se incrusta na sua visão e a neve esquenta o frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto quanto fumaça e como fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente... Eu não morro de amores pelo verde, mas acho interessante a descrição de tons de verde no texto porque na astronomia não se fala em estrela verde, não porque ela não exista, mas porque o verde esta bem no meio do espectro visível, por isso, embora não possa ser claramente vista na sua cor original, a estrela verde emite luz em várias outras cores, ou seja uma estrela que emite uma pluralidade de luzes na faixa verde do espectro, emite também uma porção de cores nas faixas vermelha, amarela, azul, e violeta. Portanto um ‘deus’ que se torna humano deve ficar ‘encantado’ com os tons de verde tão ‘visíveis’ na terra, verde primavera, verde mar escuro, verde hortelã, verde jade, verde esmeralda ...Tilly perambula por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar escuro, farejando hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e esmeralda... Os tons de amarelo e laranja são óbvios ...e, quando atravessa o pomar da maçã outrora proibida, amarga o limão, faz cara menos feia para o abacaxi, transborda da boca para seu queixo o sumo suculento do pêssego, se lambuza de manga, apalpa cenouras e abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e às melecas com mamão... Quando a estrela super gigante se torna vermelha é sinal de perigo pois ela está preste a entrar em colapso e explodir. No verso anterior o daimon faz a metáfora do outrora fruto proibido ao homem no éden, a maçã vermelha, que o fez perder seu paraíso, e no próximo verso o vermelho continua sendo sinal de perigo para o homem e deus que se faz homem, vermelho tijolo refratário, vermelho sangue, vermelho urucum e vermelho carmim ...Tilly não se demora muito no mundo mundano pois sinais de perigo se adiantam aos seus passos e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim... Toda estrela super gigante tem fim trágico e espetacular, e os estilhaços de sua explosão provocam um brilho enorme e intenso que pode ser visto por todo canto de uma galáxia, por semanas ou meses. Os restos de uma super gigante que explode sempre formam uma dessas duas coisas: um buraco negro ou uma estrela de nêutron, o que restou do núcleo de uma super gigante que explodiu e que juntou o que sobrou num espaço tão pequeno como a zona norte de São Paulo, mas com uma massa compactada muitas vezes maior que o sol, mas que já não dá vida. O destino de uma estrela super gigante que morre me faz especular sobre a vida após a morte.  Há vida após a morte? Ou, na verdade, a morte vive se alimentando da vida, como um buraco negro, uma estrela que morreu e que se alimenta de estrelas e galáxias ainda vivas? Ou não existe nada, como uma estrela de nêutron? ...Ele se fartou demais com alimentos dos deuses criados à imagem dos homens e deve vomitar e explodir, deve se metamorfosear de alguma forma espetacular, deve explodir em bilhões de pedaços super novos, e suas cintilações serão um farol para todos os navegantes da galáxia. Seus cacos juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável buraco negro que suga até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que desistiu dela... Leia o texto original na cor azul claro, precedido de uma curta conversa de Tilly com seu daimon:

       Após a morte do Arqueiro, Tilly perdeu tudo: o rumo, o juízo, a vergonha e o desconfiômetro. Perdeu o emprego e nunca mais trabalhou. Rompeu com todos os boçais do espiritualismo de cartilha e tentou criar seu próprio ocultismo e angariar adeptos, mas sua empreitada teve curta duração, porque ele já não acreditava nem em si mesmo. Estava confuso, perdido. Estava desmoronando. Pensou em abandonar tudo e cair no mundo como um caixeiro-viajante, vendendo bugigangas para se manter e dormindo em motéis com uma mulher diferente a cada dia. Tilly pensava fazer isso, mas a dúvida corrosiva entre o pensar e o fazer lhe causava muito sofrimento.                                       

      “Por que você anda tão angustiado, Tilly?”, perguntou seu daimon.

“Sabe, meu daimon, estou num dilema. Sinto vontade de abandonar todos os dogmas e todos os coletivismos e seguir adiante sem eles e sem destino, mas não sei por que tenho este desejo, por que esses convencionalismos ainda me dão um mínimo de proteção contra mim mesmo”.

 “E o que você espera que eu lhe diga, Tilly?”

 “Gostaria que você me explicasse o que está acontecendo comigo”.

 “Quer mesmo?”

 “Claro, você é o único que pode descobrir o que se passa comigo”.

 “Tilly, seu espírito elevou seu ânimo às alturas e você se pôs a procurar numa busca incessante, penetrando incólume nas profundezas dos domínios do imaterial e do supra terreno, tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com alegria esfuziante, no topo do cosmos, logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso, invencível. Você é sagrado, divindade persa e prussiana, e de lá, mais acima no lugar de Sírio Alfa e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra, e todos ouvem sua voz eloquente trovejar e mal conseguem acompanhar suas ideias difusas e furtivas, ideias de filho de Boanerges, nau centáurea desde o nascedouro navegando apressada num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até o mar, o mar que não recusa rio, muito menos você que é deus ciâno e cerúleo, confiante e devoto da fé, e que toma o lugar da fonte de toda energia que aquece oceanos e continentes, e de lá, no lugar do sol único, se torna lua cheia, lua do meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é água doce e salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é palco da fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante, derretido num mar de lava escaldante. Você é habilidoso, curandeiro, incansável, é deus que não come, não bebe e não dorme, é sobre-humano, forte como o aço, real como rei, mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa, como ele sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim e índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas erosivas tentando convencer pai e filho que é espírito santo, desce do seu pedestal sideral e inatingível, cai como estrela cadente, vem ter com o homem e vive como ele, iluminando os quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como uma estrela brilhante do chão. Você se revela um deus que não conhece o mundo que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando com demônios de minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com água-marinha. Você se inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho. O gelo se incrusta na sua visão e a neve esquenta o frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto quanto fumaça e como fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente. Você perambula por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar escuro, farejando hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e esmeralda, e, quando atravessa o pomar do fruto outrora proibido, amarga o limão, se adocica com o abacaxi, transborda da boca para seu queixo o sumo suculento do pêssego, se lambuza de manga, passa ao largo de cenouras e abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e se meleca com mamão. Você não se demora muito no mundo mundano, pois sinais de perigo se adiantam aos seus passos e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim. Vejo o seu tempo no céu e na terra chegar perto do fim. Você se fartou demais com alimentos dos deuses e dejetos humanos e deve verter, deve se metamorfosear de alguma forma espetacular, deve explodir em bilhões de pedaços super novos, e suas cintilações serão um farol para todos os navegantes da galáxia. Seus cacos juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável buraco negro que suga até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que dela desistiu 


Alceu Natali

Traverse, Illinois, EUA, 10/10/2007