Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
O trecho do livro que eu te enviei não foi inspirado em
música. Na verdade, ele foi escrito na terceira pessoa. É o narrador quem fala do
personagem. Eu fiz minha própria leitura do texto e o coloquei na primeira
pessoa, como se o próprio personagem estivesse falando sobre si mesmo só para
você. Mas no livro não é assim. Para te explicar o que pretendo dizer no livro
levaria mais tempo do que ler o livro inteiro. Eu escrevo não
apenas porque gosto, mas para deixar registrado que tive uma vida neste planeta
e também para passar adiante tudo que consegui aprender lendo muitos livros.
Nunca tive e ainda não tenho a mínima pretensão de ser um escritor, muito menos ainda
culto e inteligente. Além disso, não tenho condições de escrever um livro de
não-ficção porque ninguém, se houver alguém, me levaria a sério. Então, penso
ser mais fácil passar adiante meu aprendizado sob a forma de ficção. É difícil
ou até mesmo impossível alguém se interessar pelo que escrevo e perceber algo
subjacente ao meu texto metafórico. Este trecho que eu te enviei
ocupa apenas cerca de 90% de uma única página de um livro que pretende ter
cerca de 250 páginas, e já estou quase na metade. No entanto, este trecho de 45
linhas contém muito mais informação do que pode se perceber à primeira vista.
Este trecho se encontra na página 19 do livro. Lendo-o isoladamente, da maneira
como você leu, não é possível se ter
qualquer ideia do que o narrador fala sobre o personagem secundário
chamado Tilly. Se você ler as primeiras 18 páginas, você terá uma vaga noção sobre o que o narrador pretende dizer a respeito do personagem. Mesmo
assim, não será tão fácil entender o todo, mesmo que você ler o livro inteiro quando eu
por no papel as 125 páginas restantes que estão impressas em minha mente. Não tenho a ridícula petulância de querer imitar James Joyce. Meu livro não é ilegível como Paulo Coelho qualificou Ulisses, considerado o melhor romance dos tempos modernos, assim como seu autor, James Joyce, é considerado o melhor escritor da literatura moderna no mundo. Não duvido, e sei que você
não me dirá, que você achará estas 45 linhas de má qualidade, banais, triviais
e bregas, um patético amontoado de retalhos sem nexo e pretensamente
sofisticado. O que mais importa é que
este trecho é bonito para mim, pois eu usei a alma para escrevê-lo. Normalmente
meu cérebro reúne as informações que acha úteis e depois deixa a alma
descrevê-las à sua maneira, mas cuidando para não parecerem ilógicas, pois o
cérebro está sempre por perto, observando o tempo todo. Nas primeiras 18
páginas páginas, o daimon de Tilly, aquela voz interior citada por Sócrates, fala muito sobre este personagem, e a partir da 19 ele passa
a descrever seu comportamento com ideias concretas e abstratas, através de
alegorias e metáforas, atribuindo ao personagem cores, seus efeitos psicológicos sobre o
ser humano e seus sentidos abstratos a elas atribuídos pelo homem. Coloca-o
também lado a lado com as estrelas e suas temperaturas que guardam relação com cores. Por último, ele faz menção à
maneira como os psicólogos, como você, descrevem o comportamento das pessoas bipolares e desequilibradas nas suas fases maníacas. Um pouco antes da página 19, o
narrador dá indícios de que o personagem Tilly está se aproximando do auge da
fase maníaca do seu transtorno afetivo bipolar, se envolvendo com o
espiritismo e se tornando um fanático. Este trecho é uma síntese do estado
paranoico de Tilly. A cor escolhida para representar tal estado é o azul porque
no sentido abstrato ela simboliza um
mergulho na espiritualidade e no sentido concreto uma elevação da temperatura - um eufemismo para euforia.
Ao contrário do que todos pensam, o azul que está associado à frieza na terra, é quente no universo. Todas as
estrelas têm cores diferentes vistas pelos nossos telescópios. A azul é a mais quente do
universo, enquanto que a vermelha é a menos quente. Para não deixar dúvidas,
eis aqui a escala das estrelas com suas respectivas temperaturas e cores, desde
a mais morna até a mais quente:
Vermelha = 3 mil
graus
Laranja = 4.5 mil graus
Amarela = 6 mil graus (nosso sol)
Verde = entre 7 e 9 mil graus
Branca = 10 mil graus
Azul = Acima de 35 mil graus
Na fase maníaca, o estado de humor do bipolar se eleva
demais ... O espírito de Tilly elevou seu ânimo às alturas... e, dentre as
várias possíveis manias, seu daimon escolheu a espiritualidade, representada pelo azul, e, em consonância com essa cor,
ele apresenta vários aspectos desfavoráveis de sua natureza, entre as quais, o
desvario de um pseudo polímata que busca mais conhecimentos do que ele pensa
ter sem parar ....e ele se pôs a procurar numa busca incessante... É também característica do azul sua tendência
para o sobrenatural ...penetrando incólume nas profundezas dos domínios do
imaterial e do supra terreno... O maníaco se sente um deus no topo do mundo e
seu estado de humor elevado pode significar uma alegria contagiante a contragosto de seus interlocutores
...tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com
alegria esfuziante... Para comparar seu sentimento de grandeza com uma estrela
azul, que além de ser a mais quente do universo é também das mais massivas, o
daimon escolheu a estrela chamada Naos, que em Grego significa literalmente uma
nau, uma embarcação, uma das mais brilhantes no céu e uma das mais raras
estrelas azuis super gigantes, com uma massa 60 vezes maior que o sol,
localizada a uma distância de 1.400 anos luz da terra. O daimon a coloca no
lugar da estrela Sírio, mas só mais adiante você entenderá porque ele fiz isto,
e ele continua adjetivando o senso de grandeza do maníaco ...no topo do cosmos,
logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso, invencível.... O azul é uma cor
santificada e enquanto o personagem transita por ela, o daimon vai descrevendo
vários tons de azul tais como o azul persa e o azul prussiano ...Tilly é
sagrado, divindade persa e prussiana... Para dar uma ideia do tamanho do
sentimento de grandeza do personagem, o daimon mostra como a estrela azul Nau
seria vista da terra se ela estivesse a uma distância de apenas 9 anos luz,
exatamente onde está a estrela Sírio, que é um sistema binário composto por
duas estrelas, Sírio A e Sírio B ... e de lá, mais acima no lugar de Sírio Alfa
e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra... Na fase maníaca, o bipolar fala
alto e rápido demais e não percebe. Ele fala sem parar e sua voz parece um
trovão - no evangelho de João, Jesus chama os irmãos João e Tiago de Boanerges,
que em Aramaico significa ‘filhos do trovão’, referindo-se ao temperamento
intempestivo de ambos - e suas ideias correm rapidamente a ponto de não
concluir o que começou e sempre emenda uma ideia inacabada com outra nova numa
sucessão quase interminável. A isto vocês,
psicólogos, dão o nome de
fuga-de-ideias ...e todos ouvem sua voz eloquente trovejar e mal conseguem
acompanhar suas ideias difusas e furtivas, ideias de um filho de
Boanerges... O daimon se refere ao
personagem como a estrela Naos, chamando-o literalmente pelo significado de seu
nome, uma nau, acompanhada de uma tonalidade do azul, o azul centáureo, e
compara a sua passagem pela fase maníaca com uma particularidade das estrelas
azuis gigantes. A estrela Naos é classificada pelos astrônomos como uma estrela
fugitiva, porque ela se desloca no universo com uma rapidez impressionante.
Desde que se formou, Naos se distancia de seu ponto de origem a uma velocidade
de 100 km por segundo. Ela vai ganhando massa e temperatura na medida em que se
mantém viajando pelo cosmos. Do ponto de vista astronômico, Naos tem uma vida
curtíssima, assim como é curtíssima a vida humana na terra que existe há quase
5 bilhões de anos. E também pode ser curta a fase maníaca de um bipolar em
relação ao seu período depressivo, mesmo que demore meses, tendo em vista que a
expectativa de vida do homem chega a 80 anos. Acho que para todos a vida humana nasce pequena como
um rio que brotou de uma pequena bica, uns pingos d’água que se esguiam por entre as rochas,
depois viram um filete de água corrente, depois um riacho, e finalmente um rio abundante que
logo desemboca no mar, para a morte, mas o mar é imenso, é o inconsciente
coletivo, a morte é mergulhar nele, onde os sonhos mais impensáveis são fabricados. Todas essas ideias estão
compactadas na frase ....nau centáurea desde o nascedouro navegando apressada
num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até o mar...
Meu ídolo Pete Townshend compôs uma música chamada ‘The sea refuses no river’,
‘O mar não recusa nenhum rio’, então pensei: ‘muito menos um deus’, e a esse
deus o daimon continuou acrescentando mais tons de azul, azul ciâno, azul
cerúleo, e a estes tons agregou mais características abstratas desta cor ...o mar que não recusa rio, muito menos
Tilly que é deus ciâno e cerúleo, confiante e devoto da fé... Finalmente, o
daimon descreve o apogeu da fase maníaca, imaginando o que aconteceria com a
terra se, ao invés do nosso sol, tivéssemos Naos no centro de nosso sistema:
veríamos uma enorme lua cheia (do meio dia e da meia noite são nomes de tons de
azul), as águas se evaporariam, a vida seria extinta, o ar seria irrespirável
como ácido, e substancioso como lava de vulcão. Tudo isso é análogo ao que o
maníaco depressivo faz com seus interlocutores, sufocando-os de tanto falar sem
parar ...e que toma o lugar da fonte de toda energia que aquece oceanos e
continentes, e de lá, no lugar do Sol Único, se torna lua cheia, lua do
meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é água doce e
salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é palco da
fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante, derretido num
mar de lava escaldante... O daimon adiciona mais atributos concretos e
abstratos da cor azul, mais sintomas da fase maníaca, e mais tons de azul, azul
aço e azul royal ...Tilly é habilidoso, curandeiro, incansável, é deus que não
come, não bebe e não dorme, é sobrenatural, sobre-humano, forte como o aço,
real como rei... O daimon começa a preparar o regresso da fase maníaca para a
depressiva, como um deus que se torna humano, fazendo-o descer do céu ao chão,
e vai acrescentando mais aspectos abstratos do azul, mais tons da cor azul, mais aspectos concretos da cor azul e mais sintomas do
maníaco descendo a ladeira, fazendo a estrela Naos cair no chão, pois esta estrela é chamada pelos Árabes de
‘Suhail Hadar’, que significa literalmente ‘estrela que brilha no chão’. Por que
interessa o nome desta estrela em Árabe? Durante os mil anos de trevas entre a
alta e baixa idade média, enquanto o ocidente suprimiu o saber em favor da fé
religiosa imposta pela Igreja dominante, os árabes desenvolveram, entre ouras
coisas, um interesse muito grande pela astronomia e é a eles que devemos muitos
nomes de estrelas por eles encontradas e batizadas. Exemplos: Altair,
Aldebaran, Betelguese, Denebe, etc. Jung escreveu que ‘a falta de segurança do
exaltado o induz a apregoar suas verdades, de cuja validez é o primeiro a
duvidar, e, fazendo prosélitos, talvez possa provar-lhes o valor e a exatidão
de suas próprias convicções, pois não sente gosto na abundância de seus
conhecimentos, e, ao ficar só, sente-se isolado, e o medo de ser abandonado o
impele a propagar suas opiniões e interpretações, a propósito e sem ele,
porquanto, só convencendo alguém, se sente a salvo das dúvidas corrosivas’...mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa, como ele
sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim e
índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais
sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na
fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas
erosivas querendo saber o que sua criação tem a dizer sobre sua obra, desce do
seu pedestal sideral e inatingível, despenca como estrela cadente, vem ter com o homem, vive como ele, ilumina os
quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como uma estrela brilhante do
chão... O sujeito que se eleva demais ao ponto de se sentir um deus, quando cai
na realidade, se afunda e entra em profunda depressão é, para o daimon, como um deus
que não sabe administrar a vida que criou, que se vê perdido no seu próprio
mundo. O maníaco, que caiu de seu pedestal e enfrenta a dura realidade de suas
fraquezas e frustrações, ainda transita na cor azul por um tempo na fase
depressiva, por isso o daimon faz mais usos de tons de azul, como o azul
cobalto - cobalto é uma palavra de origem alemã que significa literalmente
‘demônio das minas’ - o azul água marinha, o azul ardósia, o azul flor de
milho. É preciso mostrar como o ser humano se torna patético, tanto na hora que
se sente um deus como na hora que se sente um parasita. É triste ver um deus
se inebriar com a natureza terrena e humana ...Tilly se revela um deus que
não conhece o mundo que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando
com demônios de minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com
água-marinha. Ele se inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho... Toda
estrela azul super gigante, como Naus, tem vida curta, pois ela consome seu
combustível rapidamente e, na medida em que ela se encaminha para sua morte,
ela vai esfriando, passando pelas diversas cores das estrelas, de azul para
branca, para verde, para amarela, para laranja até se tornar uma super gigante
vermelha. E isso vai acontecer com Naus. Meu personagem Tilly vai morrer, e,
enquanto um deus que caiu do pedestal celestial para uma vida patética, ele,
como deus caído, continua provando de tudo o que há na natureza que possa
representar estas cores que estão no caminho que leva uma estrela azul à morte,
um caminho marcado por mudanças gradativas nas cores do espectro das estrelas,
até se tornar uma gigante vermelha. O daimon começa, então, passando do azul
para o branco, fazendo uso de tons de branco, branco gelo, branco neve, branco
floral, branco fumaça ...O gelo se incrusta na sua visão e a neve esquenta o
frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto quanto fumaça e como
fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente... Eu não morro de amores
pelo verde, mas acho interessante a descrição de tons de verde no texto porque
na astronomia não se fala em estrela verde, não porque ela não exista, mas
porque o verde esta bem no meio do espectro visível, por isso, embora não possa
ser claramente vista na sua cor original, a estrela verde emite luz em várias
outras cores, ou seja uma estrela que emite uma pluralidade de luzes na faixa
verde do espectro, emite também uma porção de cores nas faixas vermelha,
amarela, azul, e violeta. Portanto um ‘deus’ que se torna humano deve ficar
‘encantado’ com os tons de verde tão ‘visíveis’ na terra, verde primavera,
verde mar escuro, verde hortelã, verde jade, verde esmeralda ...Tilly perambula
por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar escuro, farejando
hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e esmeralda... Os
tons de amarelo e laranja são óbvios ...e, quando atravessa o pomar da maçã
outrora proibida, amarga o limão, faz cara menos feia para o abacaxi,
transborda da boca para seu queixo o sumo suculento do pêssego, se lambuza de
manga, apalpa cenouras e abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e às
melecas com mamão... Quando a estrela super gigante se torna vermelha é sinal de
perigo pois ela está preste a entrar em colapso e explodir. No verso anterior o
daimon faz a metáfora do outrora fruto proibido ao homem no éden, a maçã vermelha, que o fez perder seu paraíso, e no próximo verso o vermelho continua
sendo sinal de perigo para o homem e deus que se faz homem, vermelho tijolo
refratário, vermelho sangue, vermelho urucum e vermelho carmim ...Tilly não se
demora muito no mundo mundano pois sinais de perigo se adiantam aos seus passos
e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e
incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim... Toda estrela super
gigante tem fim trágico e espetacular, e os estilhaços de sua explosão provocam
um brilho enorme e intenso que pode ser visto por todo canto de uma galáxia,
por semanas ou meses. Os restos de uma super gigante que explode sempre formam
uma dessas duas coisas: um buraco negro
ou uma estrela de nêutron, o que restou do núcleo de uma super gigante que
explodiu e que juntou o que sobrou num espaço tão pequeno como a zona norte
de São Paulo, mas com uma massa compactada muitas vezes maior que o sol, mas
que já não dá vida. O destino de uma estrela super gigante que morre me faz
especular sobre a vida após a morte. Há
vida após a morte? Ou, na verdade, a morte vive se alimentando da vida, como um
buraco negro, uma estrela que morreu e que se alimenta de estrelas e galáxias ainda vivas?
Ou não existe nada, como uma estrela de nêutron? ...Ele se fartou demais com
alimentos dos deuses criados à imagem dos homens e deve vomitar e explodir,
deve se metamorfosear de alguma forma espetacular, deve explodir em bilhões de
pedaços super novos, e suas cintilações serão um farol para todos os navegantes
da galáxia. Seus cacos juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável
buraco negro que suga até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que
desistiu dela... Leia o texto original na cor azul claro, precedido de uma curta conversa de Tilly com seu daimon:
Após a morte do Arqueiro, Tilly perdeu tudo: o rumo, o juízo, a vergonha e o desconfiômetro. Perdeu o emprego e nunca mais trabalhou. Rompeu com todos os boçais do espiritualismo de cartilha e tentou criar seu próprio ocultismo e angariar adeptos, mas sua empreitada teve curta duração, porque ele já não acreditava nem em si mesmo. Estava confuso, perdido. Estava desmoronando. Pensou em abandonar tudo e cair no mundo como um caixeiro-viajante, vendendo bugigangas para se manter e dormindo em motéis com uma mulher diferente a cada dia. Tilly pensava fazer isso, mas a dúvida corrosiva entre o pensar e o fazer lhe causava muito sofrimento.
“Por que você anda tão
angustiado, Tilly?”, perguntou seu daimon.
“Sabe, meu daimon, estou num
dilema. Sinto vontade de abandonar todos os dogmas e todos os coletivismos e
seguir adiante sem eles e sem destino, mas não sei por que tenho este desejo,
por que esses convencionalismos ainda me dão um mínimo de proteção contra mim mesmo”.
“E o que você espera que eu lhe
diga, Tilly?”
“Gostaria que você me explicasse
o que está acontecendo comigo”.
“Quer mesmo?”
“Claro, você é o único que pode descobrir o que se passa comigo”.
“Tilly, seu espírito elevou seu
ânimo às alturas e você se pôs a procurar numa busca incessante, penetrando
incólume nas profundezas dos domínios do imaterial e do supra terreno,
tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com alegria
esfuziante, no topo do cosmos, logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso,
invencível. Você é sagrado, divindade persa e prussiana, e de lá, mais acima no
lugar de Sírio Alfa e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra, e todos ouvem sua
voz eloquente trovejar e mal conseguem acompanhar suas ideias difusas e
furtivas, ideias de filho de Boanerges, nau centáurea desde o nascedouro navegando
apressada num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até
o mar, o mar que não recusa rio, muito menos você que é deus ciâno e cerúleo,
confiante e devoto da fé, e que toma o lugar da fonte de toda energia que
aquece oceanos e continentes, e de lá, no lugar do sol único, se torna lua
cheia, lua do meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é
água doce e salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é
palco da fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante,
derretido num mar de lava escaldante. Você é habilidoso, curandeiro,
incansável, é deus que não come, não bebe e não dorme, é sobre-humano, forte
como o aço, real como rei, mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa,
como ele sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim
e índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais
sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na
fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas
erosivas tentando convencer pai e filho que é espírito santo, desce do seu
pedestal sideral e inatingível, cai como estrela cadente, vem ter com o homem e
vive como ele, iluminando os quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como
uma estrela brilhante do chão. Você se revela um deus que não conhece o mundo
que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando com demônios de
minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com água-marinha. Você se
inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho. O gelo se incrusta na sua
visão e a neve esquenta o frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto
quanto fumaça e como fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente.
Você perambula por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar
escuro, farejando hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e
esmeralda, e, quando atravessa o pomar do fruto outrora proibido, amarga o
limão, se adocica com o abacaxi, transborda da boca para seu queixo o sumo
suculento do pêssego, se lambuza de manga, passa ao largo de cenouras e
abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e se meleca com mamão. Você não se
demora muito no mundo mundano, pois sinais de perigo se adiantam aos seus
passos e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e
incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim. Vejo o seu tempo no céu e
na terra chegar perto do fim. Você se fartou demais com alimentos dos deuses e
dejetos humanos e deve verter, deve se metamorfosear de alguma forma
espetacular, deve explodir em bilhões de pedaços super novos, e suas
cintilações serão um farol para todos os navegantes da galáxia. Seus cacos
juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável buraco negro que suga
até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que dela desistiu
Alceu Natali
Traverse,
Illinois, EUA, 10/10/2007