quinta-feira, 17 de outubro de 2024

CIDADE DA MORANGA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
 

A noite tardia fica mais calada longe da agitação urbana. Ela não arfa e sua suave respiração é abafada por burburinhos do universo, remanescentes da grande explosão, uma explosão de querença. ‘Quero luz!’, gritou o negrume abissal quando só existia o nada. Quem comunga com o universo na madrugada, mesmo de olhos abertos, capta o eco de suas vibrações. De olhos fechados é possível ouvi-los e até vê-los. Matilda dirige com sua atenção visual toda voltada para a estrada, pois não é a todo instante que a caligem da noite é fosforeada pelos clarões artificiais das habitações que margeiam o caminho. Seus pensamentos se perdem nas lembranças de sua melhor amiga e se reencontram na imagem da cidade da moranga que ela guarda no seu inventário de processos e fatos psíquicos que atuam sobre sua conduta, mas que escapam ao âmbito da consciência de pessoas normais e nelas só irrompem em sonhos, em atos falhos, e em estados neuróticos ou psicóticos, quando a consciência não está vigilante. Nestes últimos vinte anos, Matilda passou por este mesmo caminho pelo menos duas vezes. Numa delas, voltando para casa, ela viu do lado direito da estrada quase o vale inteiro da moranga, mas não teve coragem de entrar na cidade. Não estava preparada ainda. Se não fosse sua necessidade de cumprir uma promessa feita à sua melhor amiga de redescobrir a cidade, ela teria ficado apenas com o registro da imagem da cidade com sua criptomnésia, que atua como uma câmera fotográfica que precisa só de uma fração de segundo de luz, e sem nenhum esforço da vontade ou da memória ela a retirou do seu patrimônio inconsciente. Ela é um cartão postal monocrômico, não muda nunca. No fundo há uma encosta, não muito acima do plano horizontal dos olhos, onde se amontoam casas acabadas que não lembram favelas ou periferias paupérrimas, e entre elas há entranhas, mas não muita vegetação. O grosso da cidade está no centro, abaixo do nível da estrada, mas os topos das edificações mais altas denunciam várias convenções de concreto. Uma igreja, a prefeitura, uma biblioteca, talvez a delegacia onde sua amiga esteve, talvez um dos vários hotéis, uma cidade destas deve ter pelo menos uns três, fora os motéis, ou talvez algumas pousadas. No primeiro plano, a cidade se esconde por baixo da estrada. Deve estar ali o matagal por onde sua amiga fugiu. Não será difícil traçar o percurso da última grande corrida da via dolorosa de sua amiga, quando voltava para casa sem um ponto de partida, ganhando a estrada numa noite caída, parou no acostamento sem motivo aparente, foi abordada por homens na escuridão num repente, embrenhou-se no matagal sem rumo confiável, foi seguida por dois numa perseguição implacável, avistou luzes com sinais de vida, deixou para trás ladrões na noite vencida, andou pelas ruas sem encontrar uma delegacia, decidiu descansar e refletir numa hospedaria, lendo um jornal com uma manchete da antiguidade, que a seduziu pela morte na clandestinidade, acordou-a na manhã sem resposta ao seu quesito, tendo repreendida sua curiosidade num distrito, e voltou para casa com um enigma sonhado, e lembrou-se da cidade com nome transliterado, para onde hoje Matilda retorna vinte anos depois sem a escrita de Zeus, para desvendar o mistério da moranga nas linhas tortas de Deus.


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

LIBERDADE SILENCIOSA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
 



É primavera na sisuda Leipzig da Alemanha Oriental, Esta semana de Maio de 1982 é muito especial, Há Manobras do Pacto de Varsóvia nas redondezas, Os soviéticos assumem o controle do trânsito e fazem muitas proezas, Misturam russo com alemão e inglês, todos atravessados, São quase polidos, apitam sem parar, não são muito animados,

Vim participar de uma exposição internacional muito disputada, Não há alojamento porque a infraestrutura da cidade está saturada, Vou para a delegacia da polícia e passo por uma triagem, A burocracia não é tão lenta e logo consigo um lar como hospedagem, É preciso andar de bonde para chegar até a periferia, Não existe táxi, nem carro para alugar, nem cortesia,

O dono é zelador no condomínio de prédios de dois andares, A dona trabalha como enfermeira nas redes hospitalares, A filha única foi para a casa da avó por uma semana, Para que eu pudesse usar seu quarto e dormir na sua cama, Ainda faz frio, a calefação cochila ao lado e com seu calor me abano, A noite é silenciosa e o ar é igual a todo lugar do planeta: humano,

A frígida manhã congela meus dedos que seguram a alça da pasta, O abrigo do ponto de bonde deixa passar frio e a mão ficar dura e gasta, Dentro do ônibus elétrico, em movimento, peço ao cobrador uma informação, Uma loira volta-se contra mim e vocifera ódio em alemão, Confundiu-me com um de seus americanos imperialistas, Aqui meu sotaque inglês é igual a todos, todos comunistas,

Ao longo da Avenida Stalin, não ouço Johann Sebastian Bach compor e tocar, Nem Johann Wolfgang von Goethe escrever e declamar, Não ouço Schumann, Hahnemann e Mendelssohn ecoarem na atmosfera, Só outdoors impondo aos alemães os ditames de uma opressiva e humilhante era, Eu devo ter um amigo russo porque ele é nossa única esperança de paz no mundo, Produzimos armas nucleares para nos defendermos do americano porco e imundo,

O frio é de lascar e, antes de chegar ao meu local de trabalho, paro num local familiar, Um outro pavilhão onde há um estande da nossa Petrobras com tudo no devido lugar, Mulheres lindas, bar completo, cachaceiro do Rio, pinga, limão e açúcar brasileiros, Uma caipirinha dupla esquenta o peito e a mente e deixa os membros bem ligeiros, Já sei onde vou completar todos os dias meu café das sete da manhã a semana inteira, Já sei onde farei uma parada no final do dia para falar português e tomar uma saideira,

De volta ao lar da menina que teve férias forçadas para que os pais fizessem um bico, Ainda preciso trabalhar, escrever relatórios à mão e enviá-los ao meu patrão rico, Vou até uma sala que tem um sofá, uma mesa de centro e uma redonda com cadeira, Ela fica entre meu quarto e o resto da casa e dá passagem obrigatória a uma geladeira, Antes de terminar, ouço uma porta ranger, levanto-me para ver que é numa hora destas, Vejo um vulto distanciando-se lentamente e que espreitava-me por entre as frestas,

Mais um dia de trabalho, hoje abençoado com um encontro com um velho amigo meu, Morou no Brasil, voltou à sua pátria, a Suíça, e estava fazendo em Leipzig o mesmo que eu, Ele ajuda-me a encontrar-me com a Ministra de Economia da Alemanha Oriental, A reunião é no estande de outra empresa brasileira conspirada com aquele país ditatorial, O dono tem que comer a Ministra todos os dias e depositar sua comissão numa conta na Suíça, A corrupção deles não é mais sofisticada do que a nossa e perde em questões de injustiça,

Meu amigo Suíço convida-me para sair para jantar com outros companheiros europeus, A noite de Leipzig é triste, solitária, deserta, um lugar desconhecido por Deus, Os velhos prédios ainda conservam todos os buracos de balas da segunda guerra mundial, Encontrar um restaurante é coisa rara, só com dia e hora marcada e expectativa mortal, Fomos  rechaçados por vários deles, até que um aceitou como suborno um valioso pó, A gente esquece todos esses inconvenientes tomando um copo cheio de vodca num gole só,

De volta ao meu ‘lar’, sou surpreendido com uma máquina de escrever sobre a mesa na sala, Ao lado dela, há um maço de papel sulfite caprichosamente alinhado com um pacote de bala, Imaginando minhas mãos calombentas e minha boca seca, meu anfitrião compadeceu-se, De propósito, deixou a porta da sala aberta, passou rapidamente pelo seu vão e escondeu-se, Tirei o paletó, afrouxei a gravata, arregacei as mangas compridas e pus me a trabalhar, Ouço passos macios do outro lado onde fica a cozinha e sinto que há alguém a me perscrutar,

Gostaria de dar uma escapada até a Escola de Tubinen para manifestar uma honraria, A Ferdinand Christian Baur que defendeu pela primeira vez o estudo científico da Bíblia, Mas o tempo é exíguo, então vou logo ali à famosa Universidade de Leipzig, Por onde passaram Wilhelm Leibniz, Goethe, Nietzsche, Wagner e só faltou Ludwig, Lá no campus e no refeitório conheço duas patrícias em busca do que não há em Portugal, Elas só sabem falar de dialética marxista e do iminente fim do ocidente imperial,

Em casa tenho outra surpresa: um par de abotoaduras peroladas e fingidas de mortas, Meu anfitrião continua tentando acerta-se comigo por linhas que me pareciam tortas, Primeiro foram minhas mãos calejadas, e agora são minhas mangas compridas sem botões, Eu sei que persegue-me uma inevitável amizade e logo abriremos nossos corações, E meus pensamentos são corroborados com sua entrada segurando duas garrafas de cerveja, Aqui começam as mimicas e o esforço paciente quando é fraternidade que se almeja,

Hoje resolvi sair mais cedo, andar a pé pela cidade para conhece-la melhor antes do sol se pôr, É hora do rush, as ruas estão inquietas, mas nos semblantes das pessoas há sinais de torpor, Todos andam de cabeça baixa, como se estivessem cuidando onde pisam para não tropeçar, Olham para o alto procurando a posição do sol para ver quanto falta para o dia terminar, Não há sorrisos, movimentos espontâneos, olhares maravilhados, nenhuma descontração, As pessoas parecem ainda viver em clima de guerra com a vida que flui por obrigação,

Lá em casa, meu anfitrião recebe-me com sua esposa e mais déjà vu, Iniciamos uma conversa baseada numa frase universal: I love you, Eles ensinam-me alemão e eu português e sobra um pouquinho para o inglês, As mãos falam pelas bocas e os olhos convertem tudo em humanês, Não existe fronteira, nem país, nem ideologia, só um fraterno apego, O silêncio imposto pelos mandatários é rompido por um livre aconchego,

Última noite em Leipzig num restaurante cubano com a turma da Petrobras, Nas paredes posters de Fidel, Guevara, Lenin e Marx, Copos de tequila num só gole, piadas brasileiras, música e alegria, Alguns gritam viva a revolução, outros não ao neo fascismo, outros viva a democracia, Todos embriagam-se, dançam e já não sabem de onde são, Todos amam-se uns aos outros, mas no dia seguinte de nada se lembrarão,

Último dia no meu lar em Leipzig e tenho a honra de almoçar com toda a família, Comida simples e farta, regada a vinho e aberta com uma homília, Meu anfitrião fez um cambalacho na antena para captar a rádio de Berlim Ocidental, Tento lhe mostrar que há muita coisa além de sua cortina de ferro prisional, Ele não me entende e me surpreende com uma coleção de discos dos Beatles original, Adquiridos através de contrabando e pagos em dólares do seu maior rival, 


Malas prontas, meu amigo alemão, que só tem primário, leva-as para mim até o ponto, Olha para mim ficando a imaginar se um dia teremos outro encontro, Eu lhe devolvo as abotoaduras, ele as aperta contra seu coração e as recola em minha mão, Entrega-me um papel com endereço, pede-me para escrever e não contém a emoção, Estamos quase derramando lágrimas, e, de irmão para irmão, damos abraços calorosos, Adeus Leipzig, adeus dias inesquecíveis, adeus meu amigo alemão, adeus tempos impiedosos.


TRADUÇÃO DA VIDA




Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 


Neste mundo material não se pode ser apenas espiritual, mas não é necessário ser sensual, olhar com sagacidade, não é necessário ter poder sobre o corpo, cobiçá-lo sem a alma, basta trazer beijos puros de volta dos lábios que os ungiram, sair da terra possuída e entrar na carne santificada, moldar existências em mãos com centelhas vestidas de crepúsculos espargindo flores das montanhas que conquistam as enchentes, maiores que pesadelos milionários e maquiavélicos que abominam o toque aveludado do pêssego, o encontro carinhoso entre a água e a calha do rio despido, deslizando por entre seios, penetrando-os, enterrando-se neles, bem fundo, tão fundo que faz calar, como se fosse tirar um momento da sanidade, e o que poderia tirar momentos de ternura poderia também tirar uma eternidade de animosidade, e pouco se pode fazer sem os dois, sem a corda da esperança a qual se pendura, que lança devaneadores do presente sobre o vão que separa o passado do futuro, deixando pedras e paus fora do caminho, revelando tudo para Deus e o mundo, entrando em sintonia como duas cordas afinadas na mesma melodia, amadurecida para aprender a chorar e amar sem se ferir, para ter desejos instintivos e quase infantis, procurando por mãos estendidas, por estrelas que explodem, pelo cosmos que abraça, por papai e mamãe, por proteção contra os tiranos, contra as danças dos demônios, contra os computadores que aprisionam em noites solitárias, entregando-se a um entendimento mais intenso, deixando o pêndulo do destino balançar entre homem e mulher, levando-os e trazendo-os para onde se deseja estar, mesmo sabendo que nenhum lugar jamais pertencerá a alguém, nem em toda dor, nem em toda felicidade, mas somente em sonhos, porque sendo eles uma tradução do despertar da vida, esta é também a tradução de um sonho, não passa de um sonho do qual acordamos morrendo.



terça-feira, 15 de outubro de 2024

SERIADO: ESPORA ORIONIS: SPOILER: SEMPRE (CLAUDIA, AOS 25 ANOS, RECEBE DEDICATÓRIA DE ANÔNIMO)

Texto de autoria de AustMathr Viking Dublinense e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  MÚSICA, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Na hora suave do nascer de mais um dia, A bolsa-d'água se rompeu, De súbito, Fui jorrado num mundo que eu desconhecia, Como a mim mesmo, Onde o inexorável prazo de permanência tem esta redundante validade, Entre alegrias e dissabores, E se neles não pude vislumbrar uma boa proporção, Achei em você, Espreguiçando e sorrindo sua graça descontraída, A única razão para não amofinar-me sobre o que fora antes de ser, Hão de levar-me os desígnios em sobras do tempo, Mas ainda não vou, Como a guerreira Arya que recebeu da bruxa Melisandre esta pergunta: O que dizemos ao Deus da Morte?, E Arya respondeu: Hoje não!, Não até te amar tudo o quanto posso, Se nossas vidas fossem incontáveis como as estrelas no universo, Eu faria arte com o acaso e sortilégios com a providência, E viajaria até a última galáxia, Para lhe trazer uma flor impensável, Tanto quanto é inigualável seu corpo abstraído alinhando-se com seu meigo olhar, E quando voltasse numa fração de eternidade, Encontraria sua beleza interior ainda ao meu lado, Mas como não somos donos de nossos destinos, E não sabemos se teríamos um ao outro se retornássemos de nossas mortes, Só podemos nutrir o amor presente, Aumentando-lhe as proeminências que acalmam, Endoidam, Elevam, Se entregam, E cantam esta sublime melodia, Que transcende de nós para fora do cosmos, Jamais diga agora ou nunca, Diga Sempre!





segunda-feira, 14 de outubro de 2024

THE CLOGS ARE OPEN

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Grandes tristezas resignadas no recôndito da sede de todos sentimentos, De amarga história ainda não cicatrizada, Entra ano, Sai ano, Fundem-se sonhos e realidades em luz e escuridão, Passado patente ao espírito do presente, Futuro com data marcada, Secam ao sol rios de ardentes aspirações, Murcham falto de claridade pastos de apaixonados desejos, Permanecem nuas árvores de frutos deiscentes, Amarga ainda é à solitária a saudade que embarga a voz, E no peito, Escaldante lava, Pousa errante nuvem, Passageira como calendário na parede, Correndo mais rápido que o tempo, Mais lenta que noites insones, De olhos brancos afogueados, Veem o nascer do dia por sombra de cortina, Fechada à queima pelos raios de Coaraci, Oh, Como doce à desacompanhada é o sussurro do anjo anunciando-lhe the clogs are open no isolamento, Abrindo livros empoeirados na prateleira, Dissipando as escórias da mesmice ralo abaixo, Deitando-lhe sob um céu protetor, Que não deixa a precipitação entrar, Nem vento uivante varrendo detritos, Nem luzes de ruas escuras borbotando formas laranjas através da janela, Nas horas do crepúsculo, Nas horas do céu noturno vermelho que apraz os pastores, Nem ladrões da madrugada, Que lhe foram caros e lhe venderam, E antes de chegado o momento de sentar-se numa cadeira de balanço com uma manta cobrindo os joelhos, Vai a um cemitério, Pensar em todas as esperanças e sonhos perdidos que jazem sob o solo, Vai a uma igreja, Pensar nas imagens e nas preces vivas que procuraram atributos que nunca existiram, Vai ao santuário da alma, Pensar nas pessoas que só se importavam com o corporal, De amor de água poluída, Enquanto se esperava pelos seus corações, Sai da touceira, Passa por uma ampla campina, Por onde a lua, Sozinha no firmamento liso, Estende sua triste luminosidade, Sai da touceira, Passa por uma vereda macia e fecunda, Por onde a primeira estrela da manhã, Radiante no horizonte, Estende sua alegre calidez, Sai do encarceramento de um casulo de algodão que se abre, Rebento com um grito de incontido alívio e felicidade, Na melodia de sua liberdade, Na harmonia de sua delicadeza, No reconhecimento de um mundo que acabou.







ANO 2446

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

A paisagem não era um esplendor, e a terra parecia um pouco desolada, com pouca vegetação, solo pedregoso e arenoso, como um sertão de pedras. Nosso guia turístico nos escoltava numa caminhada por lugares históricos e ecológicos. A ideia era praticar trekking com espírito de aventura, mas alguns lugares por onde passamos tinham aspecto inóspito. Eu deveria ser o único brasileiro num grupo de estrangeiros de diferentes países. Nossa excursão incluía escaladas. Logo surgiu uma colina, um tanto íngreme, e nosso guia gritou:
- Vamos lá, pessoal, força nas pernas!
A trilha era de chão batido, espaçosa, da largura de uma ruela. Uns caminhavam mais rápidos que os outros, mas o grupo não se dispersava. Subitamente, ouvi um alvoroço vindo de baixo. Olhei para trás e vi um urso subindo a ladeira a largas passadas, abrindo alas entre os humanos, esbravejando, ameaçando com patadas no ar e bramidos nervosos. Ao passar por mim, tive que sair de lado rapidamente para que ele não me arranhasse. O urso era jovem, esbelto, andava como um ser humano, e logo chegou ao alto do monte e sumiu. Poucos minutos depois todos nós chegamos ao cume e nos deparamos com uma visão magnífica: um antigo templo em ruínas que lembrava um pouco o santuário egípcio de Debod localizado no centro de Madri, sustentado e coberto por pesadas lajes de pedras semelhantes às encontradas em Stonehenge na Inglaterra. Todos estavam deslumbrados, mas ninguém fez qualquer comentário sobre o estranho urso que passou por nós. Imaginei que ele estivesse escondido dentro daquele monumento. O guia nos convidou a entrar. O interior era pouco iluminado e afigurava um salão central ladeado por várias reentrâncias em forma de labirintos. Enquanto admirávamos aquelas majestosas e rústicas paredes de rocha, começaram a surgir enormes ursos de todos os cantos, vindo para cima de nós, formando um círculo à nossa volta e fechando o cerco. Abraçados uns aos outros à espera da morte, ouvimos um urso gritar:
- Surpresa, humanos! Fechem os olhos!
Nunca imaginei que morreria assim, devorado por ursos que falam como gente. E o mesmo urso tornou a gritar:
- Agora já podem abrir os olhos!
Para nossa surpresa, surgiu, como num passe de mágica, uma enorme mesa cheia de comes e bebes, um verdadeiro banquete.
- Aproximem-se, humanos! Vamos nos confraternizar. Fiquem à vontade!
Incrédulo, vi homens e ursos bebericando, comendo e conversando! O guia juntou-se a mim e antes que eu pudesse indagá-lo um urso adolescente veio até nós. Ele tinha pendurado no pescoço uma corrente com a estrela de David. Amistoso e sorridente, ele solenizou:
- Espero que vocês estejam gostando da recepção. Não se acanhem. Comam e bebam à vontade. Embora todos nós pareçamos iguais, temos ideologias diferentes. Sintam-se em casa!
O urso foi cumprimentar outros humanos e eu, estupefato, fui puxado pela mão do nosso guia. Ele me levou a um canto do labirinto, apertou o dedo contra uma parede e portas abriram-se. Era um elevador. Ele entrou e me trouxe para dentro. As portas fecharam-se e o elevador começou a descer rapidamente. O guia nada falava e eu não sabia nem mesmo o que falar de tão pasmado. O elevador parecia estar em queda livre. Com a voz embargada, perguntei ao guia:
- Demora muito ainda para chegarmos à superfície?
- Já chegamos a ela. Agora estamos descendo ao subterrâneo.
Pela velocidade e o tempo decorrido imaginei que já tivéssemos descido mais de 200 andares. Finalmente o elevador parou. As portas se abriram, e surgiram diante de nós duas moças gêmeas, muito bonitas, com sorrisos simpáticos, olhando-nos com ternura. Elas tinham a pele mais branca que leite, cabelos lisos e negros, aparados na altura da nuca, a la chanel, e olhos negros e cintilantes. Vestiam um tipo de macacão, dos pés ao pescoço, um colante bem justo e apertado no corpo, aderente como se fosse a mesma pele da face clara e translúcida. E elas permaneciam diante de nós, sem falar nada, apenas sorrindo. Detive-me por vários segundos, hesitei e, então, arrisquei:
- Podemos entrar?
- Você perguntou se podem entrar e te respondo que sim, vocês podem entrar.
Saí do elevador e adentrei um vasto salão todo branco, tão estranho quanto às duas moças que se mantinham ao meu lado. Percorri o ambiente com os olhos rapidamente e tudo o que via era uma imensidão branca. Não atinava para nada e decidi, então, fazer uma pergunta mais arriscada:
- Que planeta é este?
- Você perguntou que planeta é este e eu te respondo que este é o planeta terra.
- Mas isso aqui não se parece com a terra! Vi ursos na superfície falando e se comportando como humanos e este ambiente em nada se parece com qualquer coisa que conheço. Este não é meu tempo, é?
- Você perguntou se este não é seu tempo e eu te respondo que este não é seu tempo.
- Em que ano estamos?
- Você perguntou em que ano estamos e eu te respondo que estamos no ano de 2446.
Fiquei completamente sem ação, sem saber o que fazer e o que mais perguntar. As duas moças mantinham seus olhos fixos nos meus, sem hesitar, sem piscar. Sentindo-me meio perdido, mas com um sensação de bem-estar incomum, resolvi fazer a primeira pergunta que me veio à mente:
- Posso dar uma volta por aí, para conhecer o lugar?
- Você perguntou se pode dar uma volta por aí para conhecer o lugar e eu te respondo que você pode.
Qualquer pessoa se sentiria incomodada com a maneira da moça sempre repetir minha pergunta antes de respondê-la, no entanto, estranhamente, eu achava isso natural. A moça tinha uma voz humana suave, falava com extrema delicadeza, sempre solícita e educada, e cada vez que respondia seus olhos denunciavam um notório e sincero interesse por mim e minhas perguntas. Pedi licença às duas moças e comecei a caminhar pelo ambiente. Logo percebi que havia várias moças idênticas transitando através daquele imenso recinto. Ele tinha assoalho, paredes, portas, janelas, teto, e móveis, mas não era possível vê-los à distância, no entanto eu sentia que tudo estava lá. Não era possível divisar contornos como cantos de paredes ou a altura do teto, mas, de uma maneira que não sei explicar, eu conseguia perceber as delimitações dos espaços. Tinha uma perfeita noção espacial da área que certamente se dividia em muitos ambientes separados. Depois de muito andar finalmente me deparei com algo sólido, uma parede com uma porta. Tudo branco. Só era possível enxergá-las estando bem próximo delas. Decidi abrir a porta e, no exato momento que eu ia colocar a mão numa especie de maçaneta, outra moça idêntica às outras gentilmente se colocou entre mim e a porta e abriu um irradiante e cativante sorriso.
- Me desculpe, não tive intenção de me intrometer. Só queria conhecer outros cômodos. Posso abrir esta porta?
- Você perguntou se pode abrir esta porta e eu te repondo que hoje você não pode, mas um dia  poderá.
- Então eu vou ser trazido de volta a este lugar, quero dizer, a este tempo?
- Você perguntou se será trazido de volta a este lugar, querendo dizer, a este tempo e eu te respondo que sim, você um dia aqui voltará, porém por livre e espontânea vontade,  da mesma maneira como aqui chegou hoje.
Agradeci a moça e achei que o melhor a fazer era voltar. Só neste momento me dei conta que meu guia não estava comigo. Olhei em todas as direções e lá num fundo indistinto vi meu guia recostado em alguma coisa sólida, talvez uma parede, com uma perna dobrada e a sola do pé escorada contra esta coisa sólida. Fui em direção a ele e quando me aproximei percebi que ele estava recostado na porta do elevador. Ele me olhou com um ar de motorista apoiado em seu táxi esperando seu cliente voltar. As portas do elevador se abriram, o guia entrou e com apenas uma olhadela pediu-me para entrar. O elevador começou a subir rapidamente. Olhei para o guia e perguntei:
- Me diga uma coisa. Essas pessoas daqui são todas assim? Lindas, branquelas, de cabelos e olhos negros?
- Sim, todas, mas algumas têm olhos coloridos, verdes, azuis, amarelos, vermelhos, cinzas, castanhos...
- E são todas gêmeas e clonadas?
- A maioria é, mas há híbridas também, não repetidoras, não questionadoras, adutoras da sua vontade de descer, entrar e ficar, de perguntar, de querer saber e aprender, de descobrir, partir, subir e compartilhar com seu tempo tudo o que você viu aqui. Elas são atemporais, não robotizadas, não controladas, humanadas na sua vontade de subir, entrar e ficar, de ouvir, de querer entender e respeitar, de confraternizar com os não humanos, como os ursos da superfície, de voltar, descer e esperar. Elas são acólitas, não anacrônicas, não icônicas, sincrônicas de seus desejos de subir, descer e igualar, de escrever, de querer transmitir e disponibilizar, de dividir, de aqui voltar um dia, descer de novo e desvendar tudo.
- Você é muito estranho. Sabe tudo sobre este mundo subterrâneo. Enquanto estivemos lá em baixo com aquelas mulheres clonadas você não demonstrou nenhuma surpresa e agora, com essa conversa estranha sobre descer, subir, ficar, voltar, está claro para mim que você é daqui, é um deles! Como você conseguiu me trazer aqui e por quê?
- Você assistiu ao filme DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS?
- Por que você responde minha pergunta com outra pergunta?
- Assistiu ou não?
- Sim, assisti. Faz muito tempo. Acho que foi em 1974. Por quê?
- No filme O PLANETA DOS MACACOS os símios dominaram a terra, escravizaram os humanos e os tratavam como animais. Na sequência, DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS, os símios vivem na superfície, mas descobrem que há uma pequena população remanescente de humanos super inteligentes, que vivem debaixo da terra, e desenvolveram poderes psíquicos que aterrorizam os macacos. Eles controlam tudo e todos só com a mente.
- Já entendi. Você está querendo dizer que tudo isso não passa de um sonho. Que eu o criei a partir de imagens de um filme que ficaram retidas no meu inconsciente. É simples assim?
- E por quê não?
- E você, onde você entra nessa história?
- Você assistiu ao filme A ORIGEM? Este é bem recente, de 2010.
- Sim, assisti, e daí?
- Daí que uma pessoa pode fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas. Uma pessoa, como uma arquiteta, projeta um mundo num sonho e leva com ela várias pessoas para esse mundo. Uma delas age como seu guia e se incumbe de povoar o mundo criado pela arquiteta com pessoas de seu subconsciente. Você nunca se lembra como seu sonho começou. Você só se dá conta quando já está no meio dele. É por isso que, de repente, você surgiu no meio de um grupo de turistas guiados por mim.
- Quer dizer, então, que eu sou o arquiteto que fabricou este mundo do futuro e você é meu guia que o povoou com ursos e pessoas clonadas. Como isso é possível se eu nem te conheço na vida real. Como eu poderia compartilhar um sonho com uma pessoa que eu não conheço. Afinal de contas, quem é você?
- Depende do que você quer acreditar. Que tudo isso é um sonho ou que tudo isso é real. O elevador parou. Chegamos à superfície. Vamos descer e não nos veremos mais. Será como acordar de um sonho, nada mais. Uma última informação. As duas coisas são possíveis: fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas e conhecer o futuro só com a mente através de um sonho espontâneo, não fabricado por você, mas pelo inconsciente coletivo que é patrimônio da humanidade. Quando você voltar aqui talvez se encontre com uma híbrida. Não se preocupe, ela estará te guiando o tempo todo!
- Então, me diga: estou sonhando ou tendo uma visão do futuro?
- Você está no futuro agora! 2446!
- E que negócio é esse de me encontrar com uma híbrida?
- Eu sou um mero servidor, dando uma de guia turístico para você e todas aquelas pessoas que mergulharam no inconsciente coletivo durante o sono e vieram parar aqui. Me pediram para levar somente você lá para baixo, não me pergunte por quê, e me disseram que da próxima vez você será guiado por alguém do topo da hierarquia deste tempo. Uma híbrida! Agora, me dá licença. Há mais turistas chegando.

ZHONGGUÓ 30 YEARS AGO

 Written by Alceu Natali . Copyright protected by Law # 9610/1998
 
In the 90's I went to China several times. They say that in the last 25 years this nation has changed a lot, which I believe will be the greatest world power, perhaps in another 20 or, at most, 30 years. Even some American sci-fi, futuristic and time-travel films like Looper, set in 2044's USA, and 2074's Zhōngguó, prophesy, China is the future. If one day I go back there, definitely not for work, I don't expect to support the same series of hilarious episodes from more than 25 years ago, which advanced in 5 seasons, and impelled me, with pleasure, to reduce them to spoilers, word that is in vogue, although vogue is out of fashion. Guangzhou, the Canton of the Portuguese, was the stage for my Avant Premiere. I had a problem when I arrived, too small for this great land of despicable inconveniences. My suitcase was left there in Bangkok. The airline promised to deliver it to the hotel in two days. Later, I would find that this promise was nothing like the word-of-mouth invitations we usually receive around here: 'Drop by my place anyday', hoping you'll never show up. The hotel I booked was very close to the airport. I could get there on foot, but as it was raining heavily, I took a taxi, and I was caught by the only smart ass I could find among more than a billion simpletons and sweet slanted eyes. He charged me 10 dollars to drive less than 500 meters. Bad feelings: Lost luggage and a cheating taxi driver. I had appointments on the next day, and I needed to change clothes and buy toiletries. The hotel receptionist recommended a mall nearby. I walked about four blocks to reach the small two-story building. It had everything I needed. I just didn't know if the pants I picked fit. I passed along the ways looking for a fitting room, but I couldn't find it. I asked a young woman who appeared to be a saleswoman for help. No one spoke English or Portuguese there, and I spoke neither Mandarin nor Cantonese. Apparently, she understood my gestures. She nodded, explained in Chinese, but she didn't point to any direction. I had the strangest feeling that she was saying something like, ''you should put on one leg at a time, lift your pants up to your waist and button them.'' I kept wandering, looking in all directions. I went back to the men's clothing section, and at the end of the hall I saw a Chinese man choosing a pair of pants. This one could definitely show me where the men's private cabin was. Suddenly, he took off his pants and was down to his underwear and calmly tried on various models, while the comings and goings of customers and salespeople, men and women, ignored him. I began to realize that the saleswoman's explanation was not as strange as I thought. That scene reminded me of the American proverb: 'When in Rome do as the Romans do'. So, there I was, in a public space, in a shirt, socks, shoes and boxer shorts, taking my time, why hurry?, to find the pants that best fit my body. I was the only Westerner in that department store. The chinese people just looked at my face. They'd all seen many men in underwear in public many, many times. I wondered where women tried on underwear and tops, panties, bras, dresses, skirts and blouses. I discovered, through an Aristotelian syllogism alone, that the mall had no dressing rooms or bathrooms. Wearing only his underwear was the minor premise. The major one was another Chinese man, next to me, trying on a swim trunks in the blink of an eye. I used my reason because any kind of gesture asking for the location of a toilet could be risky. It was too early to be excited about the freedom of bodily expression, naked for incomplete, in a culture I was just beginning to probe. It was difficult to resist the temptation to hang around in the women's section, waiting, unscrupulously, to witness what I was tired of seeing, in broad daylight, in some corners of the Forest Garden near home and on the benches of London's Hyde Park. Fatigue, due to the long 22-hour trip, alerted me that duty was calling me. I arrived at the hotel, exhausted, collapsed into bed, got a good night's sleep, and woke up feeling refreshed for my first day at work in the middle country. This is the meaning of China. This story goes way too far. You ain't seen nothing yet!



domingo, 13 de outubro de 2024

O QUE NOS TROUXE AO MUNDO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Tantas odisseias, Tantas guerras homéricas, Eternizadas por mentes epopeicas para esta parte única do mundo que chamamos de civilizada, E as mãos desprovidas de armas clamam por palavras que aproximem de nossos corações a natureza pacífica, À medida que chispam metais riscando os campos de batalhas, Próximos à água fria murmurando a brisa, Farfalhando pelos galhos de macieira, Enquanto folhas trêmulas escorrem num sono profundo, E estas letras épicas e líricas, Juntas com tantas outras com o mesmo ideal de beleza e conhecimento, Abrigam-se num único recinto público, Escritos como vinhos, Quanto mais velhos mais sábios, Porém o barbarismo, Não satisfeito com tantos estupros, Assassinatos, E pilhagens, Tudo extingue com fogo, E ninguém tem o direito de destruir um único pensamento humano, E se um deus pagão pede vingança, Não se luta por um reino ou por riquezas, Mas como pessoas comuns, De liberdade perdida, De corpos dilacerados, E de filhas difamadas, E se um deus de batismo também quer sua desforra, Faz-se necessário obedece-lo, Nem que se tenha cem pais e cem mães, E não carece saber que amor ou ódio este deus tem por invasores, Suficiente é saber que todos eles serão reconduzidos às suas terras, Exceto aqueles que aqui morrerão, E em toda a glória das que vencem por amor, Muito melhor é ser mendigas solteiras do que rainhas casadas, E sendo pobres aqueles que querem prestar honrarias às vitoriosas que lhes inspiram, Não tendo eles nos céus tecidos bordados, Decorados com luzes douradas e prateadas, panos azuis, indistintos e escuros da noite e do lume da meia-luz, Faça-se, então, deitar sob os pés destas valiosas mulheres vossos sonhos, E elas cuidarão de neles andar suavemente, Pois sabem que caminham sobre o que lhes restam.

sábado, 12 de outubro de 2024

MEDULA


Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela lei 9610/98. 


Medula Medusa, Intrusa nessa metástase óssea, Não me ignore, Como pode? Uma baleia encalhada na areia! Não sou veículo quebrado irreboqueável, Peça ajuda, A quem deus cuida, E não atrapalhe, Quem não precisa que você trabalhe, Deixa os briguentos retidos no chão, E o meliante com as amarras nas mãos, Os homens da lei lhes darão detenção, Coluna Medeia, Incólume nessa metamorfose vertebral, Veja quanta plateia, À espera de ideia, Eu sou uma delas, Plano pensado nunca iniciado, E acabado, Que se demora, Arregace minha manga da mesmice, Isso alguém me disse, Reinvente-me agora, Nesta hora crepuscular, Antes que seja tarde para ir embora, Antes do seu tempo acabar, Rainha Pandora, Sem espinha, Alinha minha postura dorsal, Não encare a cabra, Antes que sua mente se abra, Veja quem te contempla, Quem não te inventa e te adora, Medula Cunha, Jovem mulher da Amazônia, Calce-me para não cair, Como você melhor quiser, Você é testemunha, Do meu cansaço, Do meu fracasso, Me dê um abraço, Na minha insônia, Ansiedade e depressão, Não precisa partir, Só do pequeno santuário de simplórias oferendas, Que mantém prendas para um morto na estrada deserta, Aberta na sua imensidão.

SENSIBILITATE ET SENSUALITAS SINE RATIONE CERTA ARTICLE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 

Põe-se a caminho sensualidade de sensibilidade, Faz vento soprar rente a um gênero frágil deitado em solo fértil, Esparrama cabelos, Pontas de tirso de hera e pâmpanos, Carregadas de pinhas com arranjo de flores de celofane, Cingidas de tijolo e salmão, Embrenhados por mãos entre fios emaranhados, Acariciados por suaves toques de veludo, Por lagartixas deslizando em vidraças como Jesus em água, E deixam mechas pendularem sobre olhos de caleidoscópio, vidros multicoloridos refletindo milhões de sóis, Milhões de escravos carregando bastões em círculos em torno de suas escravas, Negras do mundo que atraem seus brancos em trevas de dias findos, Fazendo-se acompanhar igualmente por bacos e tíades, Levando uns a sentirem-se o que é estar morto, Como se nunca tivessem nascidos, E outras a sentirem-se o que é ser lasciva e sentimental, Como se nunca atinassem para sexo oposto, E bastam-se por sua sensibilidade, E extravasam-se por sua sensualidade, E acoplam-se por leis naturais do sexo forte, Aliado de ruim com elas, De pior sem elas, Adversário de inconcebibilidade  sem feminilidade, De previsibilidade com masculinidade, Privando vivedores de cores, Flores de odores, Provadores de sabores, Trovadores de amores.      

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

ALGO ASSIM

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Véspera de Natal de 2008, Ruth deixa o apartamento, Como quem deixa por enquanto uma tragédia, E pega o elevador, Como quem já sabe que não pegará cadeia perpétua, Terá tudo confiscado, Até suas roupas íntimas, E quase nada sobrará para pagar um advogado, Ela vai ao cabeleireiro, Uma persistência caturra numa rotina estúpida, O salão não leva em conta sua inocência, E ela paga pela contagiosa trapaça do marido Bernie, Um dos melhores American Hustles,

Na mesma noite, Eu, minha esposa e minha filha de 5 anos estamos dirigindo pela New York State Thruway 90, Já passamos por Erie, Buffalo e Rochester, Estamos indo em direção a Syracuse, Antes da solenidade e do júbilo que nos espera no Brasil em Janeiro, Na estrada reina precipitação que não cria caso com a perfeição, Porque o rigoroso inverno do hemisfério norte, Abaixo de zero, Apressa a noite que cai com a tempestade de neve, Extrema alvura que embaça e, Ao mesmo tempo, Estatela a escuridão,

Ruth volta para casa resmungando queixas ao companheiro, Enxotada pelos amigos, Sem nada, Sem nunca ter trabalhado, Desenganada por tantas mentiras, Ela prefere a morte, Sem esperar por Deus, Sugestão a qual o homem aquiesce sem hesitar, Eles têm dois tipos de metanfetamínicos em quantidade suficiente para prover uma farmácia, A cama é aconchegante, O filme na TV é antigo e traz boas lembranças, Levaram uma vida as good as it gets, Agora é só esperar o sono vir e dormir,

Syracuse está próxima, Decidimos entrar na cidade junto à rodovia, A pequena Liverpool, Onde já estivemos, Tão pequena que nem aparece no mapa, O Homewood Suites que nos acolherá parece estar perdido, Escondido no meio de coisa alguma, Nada de suas habitações e suas gentes que parecem terem saído para passar as festas de fim de ano no calor da Flórida e da Califórnia, Lá dentro, Como lá fora, Só há uma alma viva, Lá fora, Um guarda fantasmagórico sob luzes de neon neblinadas como lampiões com gás no fim, Lá dentro, Aquele que recebe hóspedes e cobra deslumbrantes US$ 150 a diária, Por uma câmara-ardente no sepulcrário, Onde se houve o som do silêncio, Amanhã é dia 25, Será que haverá café da manhã?, Isso é tão certo quanto o aparecimento de uma alma feminina desacompanhada, Embutida em calça, blusa de moletom e tênis, Pronta para o Cooper matinal,

O sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria americana no dia seguinte, Dia de abrir presentes e reunir a grande família, Mas a providência interrompeu o sonho de sono eterno do casal, Ao amanhecer, Dormiram uma inércia quieta e acordaram surpresos, Nunca se imaginou que uma boa mulher e um mau homem pudessem despertar ainda casados com a vida, Meio atordoados, Menos ressacados que um grande porre, E agora enfrentam o resto da dura realidade, A maldição da legião dos que foram lesados, A prisão eterna de um, A pobre liberdade de outra, O trágico suicídio de um filho envergonhado,

Sentados à mesa de um dos cômodos do enorme hotel residência, Tão grande quanto a solidão de um menino num internato, Nós três ceamos comida congelada do freezer e requentada, Regada a sucos, E fazemos planos, Deixar que tudo se perca, Os sacrifícios de tantos anos foram inúteis, Nem mesmo recebemos qualquer gesto de reconhecimento e gratidão de tantos beneficiados, Nem retaliação dos que foram prejuicados, Já naquele tão esperado evento no mês que inicia um novo ano, Fomos homenageados com um primor de indiferença e ojeriza, Que só perdem para uma ameaça psicológica de execução de fundamentalistas, Que decepam suas vítimas ao vivo e postam os vídeos nas redes sociais.

Não temos nenhuma importância, Nossas vidas não fazem diferença nenhuma no mundo, Somos apenas um pouco excêntricos, Como num filme cult, Uma desunanimidade deseinteligente, Aqueles que os alienígenas marcaram por engano e foram descartados, Porque ligamos para algo ao qual possamos recorrer, Alguém que possamos tocar e abraçar, Algo com o qual possamos se importar, Alguém de quem possamos sentir falta, Beijar e amar, Algo assim, Ver uma filha tão jovem tentando o suicídio é o mesmoo que morrer. Ver uma mãe padecendo de tanta tristeza e ainda reunindo forças para seguir adiante com toda essa amargura, medo e insegurança, pôs fim ao último resquício do medo que eu tinha de morrer. Já estou morto por dentro e meu invólucro é descartável como uma casca de banana. Dezesseis anos depois, O padrão de solidão ganhou nova roupagem, palavras que roubei de alguém no facebook: Fiz de mim mesmo meu amigo íntimo e, assim, nunca me sinto sozinho.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

VOCÊS NÃO SÃO TÃO IDIOTAS COMO PARECEM!

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  


Era Fevereiro de 1964. Harold Conrad, promotor de lutas de boxe, estava em Miami para cobrir o tão aguardado combate entre o campeão mundial de peso pesado, Sonny Liston, e o jovem e promissor desafiante, Cassius Clay. No mundo inteiro não se falava em outra coisa. Aliás, na América falava-se noutra coisa sim. O coração dos americanos pulsava freneticamente com um fenômeno chamado Beatles que acabara de chegar na cidade, vindo do outro lado do Atlântico. Harold logo teve uma ideia: colocar juntos Cassius e os quatro moptops num poster promocional. Era como acertar os besouros e o fala muito com uma só cajadada. Harold até imaginava o sucesso que fariam os cartazes e as capas de revistas com as quatro celebridades e o candidato ao cinturão. Ele procurou o empresário dos britânicos, Brian Epstein, para pedir-lhe uma autorização. O fleumático inglês, meio lisérgico, disse não, por questões de segurança. Harold já tinha tudo planejado na cabeça e não iria desistir. Ele, Sonny e sua esposa foram convidados para ver a apresentação dos Beatles no programa do Ed Sullivan. O favoritíssimo Sonny fez uma rápida aparição apenas para receber os aplausos de praxe. Logo depois dos primeiros números do programa, entraram os Beatles. Quando eles terminaram de cantar a primeira música, Sonny cutucou Harold e disse: Fizeram todo esse fuzuê por causa destes vagabundos? Meu cachorro toca bateria melhor que aquele narigudo! Ao final do espetáculo, Sonny e sua mulher foram embora, mas Harold foi até os bastidores, procurou Ed e pediu a ele para apresentar-lhe aos Beatles. E não é que ele conseguiu! Harold perguntou aos four fab se eles não queriam assistir ao treino do Cassius Clay. Oras, por que não?, respondeu John Lennon. Porém, havia ainda a barreira imposta por Brian. Não se preocupe, nós damos um jeito nele, disse o debochado John. No treinamento propriamente não aconteceu nada de excepcional a não ser aquela foto que entrou para a história. Foi tudo engendrado e coreografado por Cassius. Ele pediu aos Beatles para deitarem-se no ringue, como se tivessem sido nocauteados, e Cassius ficou bailando e sapateando em volta deles, vangloriando-se. Com tantos holofotes convergindo para os levados à lona, Cassius olhou para eles e disse: Caras, vocês devem estar levando uma boa grana. Vocês não são tão idiotas como parecem. E John respondeu na lata: Nós não somos, mas você é! Sonny foi nocauteado no sexto assalto. Cassius Clay converteu-se ao islamismo, tornou-se Muhammad Ali e o maior campeão dos pesos pesados de todos os tempos. Harold abandonou a carreira de promotor de lutas e virou escritor. E os Beatles? Well, well, eles estavam só começando, mas já eram Hors Concours.



quarta-feira, 9 de outubro de 2024

HISTORICIDADE EM FILMES: O NOME DO PODER ABSOLUTO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Clique no link abaixo do texto e leia-o ao som da trilha sonora do filme

Embora seja um filme de ficção, O Nome da Rosa, uma adaptação do livro homônimo de Umberto Eco, contém uma rica historicidade que raríssimas pessoas percebem. Se você ainda não o viu ou se já o viu mais de uma vez, vai aqui uma dica. Assista a este filme novamente, mas com outros olhos e ouvidos. Deixe de lado as tradicionais resenhas de críticos cinematográficos de jornais e revistas e disponíveis em sites na internet. Esqueça também a complicada questão semiótica que envolve o título. Tente ir mais fundo na história. Enquanto você se diverte com o roteiro policial no estilo Sherlock Holmes, você pode também exercitar sua mente. Que tal, por exemplo, fazer uma abordagem filosófica para entender porque as pessoas agiam daquela maneira naquele tempo (século XIV)? Para começar, um bom exercício é procurar entender porque a igreja preocupava-se tanto em proteger o nome de Aristóteles.

Uma das questões centrais do filme refere-se ao monopólio do saber pela igreja que receava ter seu poder e influência social, política e econômica ameaçados e, para defender-se, bloqueava o acesso ao conhecimento e restringia o seu desenvolvimento, aplicando-lhe sua concepção de um universo estático e de uma ordem hierárquica imutável. Você vai constatar esta noção quando um monge beneditino, ao dar como solucionadas as mortes misteriosas que foram atribuídas a ação demoníaca de três pessoas acusadas de heresia (o ecônomo, seu ajudante e uma camponesa), anuncia, numa cerimônia noturna que precede a execução dos supostos hereges, a volta da normalidade, que para ele é a preservação do conhecimento e não a busca do mesmo, pois não existe progresso na história do conhecimento, mas meramente uma contínua e sublime recapitulação. Este conceito do clero está ligado à filosofia aristotélica que serviu para fundamentar os dogmas cristãos no início da alta idade média e, como se supunha que houvesse outras obras de Aristóteles que pudessem contrariar os preceitos da igreja, esta impedia qualquer contato com aquilo que ela chamava de conhecimentos inconvenientes contidos em tais obras e, consequentemente, se apoderava das mesmas. O frei franciscano, William, personagem central, já estava habituado com certas ideias retrógradas da igreja e, antes de encontrar o livro 2 de poética de Aristóteles, que é um elemento fictício no enredo, acabou por descobrir a biblioteca do mosteiro, ficando fascinado com seu tamanho e acervo, a maior da cristandade nas suas palavras, levando-o a fazer os seguintes comentários para o noviço Adso: Ninguém deveria ser proibido de consultar esses livros. Eles contêm uma sabedoria diferente da nossa e ideias que nos fariam colocar em dúvida a infalibilidade da palavra de Deus. É significativo, inclusive, o filme mostrar esta imensa biblioteca, pois confirma o fato historicamente conhecido de que, desde o século IX, os mais abundantes recursos disponíveis da época convergiam para a instituição monástica, levando-a aos postos avançados do progresso cultural. Para acumular tal acervo, a igreja valeu-se de apropriações indébitas e aquisições na base de doações espontâneas em abundância, encargos e tributos diversos em troca de proteção espiritual. Com essa concentração de riqueza, a igreja teve meios de obter e manter um patrimônio cultural vasto que lhe permitiu se impor como a única educadora formal. Para a igreja, o domínio do conhecimento informal poderia induzir o homem a desmistificar as crenças dogmáticas cristãs e colocar em dúvida esta infalibilidade da palavra de deus tal qual a igreja a apresentava ao mundo. A necessidade de supressão ao acesso do conhecimento produzido por grandes pensadores ao longo de séculos é mostrada logo no início do filme, de uma forma um tanto ameaçadora, quando, na eminência de ocorrer a segunda morte misteriosa, um monge noviço é visto, com sobreposição de imagem do monge Venerável Jorge, lendo uma escritura do clero com estas palavras: Na sabedoria há tristeza e quanto mais conhecimento se obtém mais tristeza advém.

E o que há de errado nesta concepção de Aristóteles que a igreja precisa esconder? Na verdade, nada! Ocorre que o filme sugere que Aristóteles teria escrito um segundo livro de Poética, mas totalmente voltado à comédia. Seria um livro que faz rir muito. Esta é outra grande ameaça à igreja e atinge o seu principal instrumento de influência, a inabalável fé que dispensa a razão, contagiada de orgulho e soberba, na opinião de um dos seniores do mosteiro, e incita uma inaceitável quebra da regra beneditina de ascetismo oriental, disciplina, retidão, virtuosismo, obediência e reverência a Deus, exemplo absoluto de tudo o que há de bom e sábio, a verdadeira perfeição que o homem deve buscar. Para os beneditinos, o simples riso já era uma quebra desta regra de conduta (é proibido rir), e isto está diretamente relacionado com o conceito de Deus como o criador divino, e com a igreja como seu representante na terra, e ambos deveriam levar a cabo suas missões com caras fechadas. Para a igreja, se Deus fosse desrespeitado, ela seria ridicularizada e correria o risco de ter seu domínio sobre os homens enfraquecido, pois, sendo ela o preposto de Deus no mundo, ela cairia em descrédito se o seu representado, a igreja cristã, deixasse de ser necessário. Esta associação entre o riso como violação de regra de conduta e ameaça à imagem de Deus, assim definida pela igreja, pode ser apreendida com clareza num trecho do filme no qual o frei William descobre que o livro cômico de Aristóteles existe e está em poder do Venerável Jorge, o beneditino que segue à risca as normas de conduta de sua ordem e que, por isso, não admite o riso em hipótese nenhuma, dando margem ao seguinte diálogo:

- Tantos livros falam de comédia, por que esse lhe causa medo?
- Porque é de Aristóteles!
- Mas o que há de tão alarmante no riso?
- O riso mata o temor e sem temor não pode haver fé. Se não se teme o demônio, Deus deixa de ser necessário. Se todos os homens rirem de Deus o mundo cairá no caos.

A igreja cristã assentou o seu modelo filosófico religioso nas ideias de Aristóteles e, consequentemente, não poderia admitir a existência de um livro de Aristóteles sobre comédia que faz rir e viola as regras da rígida moral beneditina. Lembre-se o que o Venerável Jorge sentencia numa discussão com o frei William na oficina de escrita: Um monge deve manter silêncio, não deve falar sobre seus pensamentos até que seja questionado. Não deve rir, pois para isso existe o bobo que levanta a voz em risos. No entanto, no decorrer do filme, fica evidente que o diálogo acima referido reflete uma preocupação muito mais profunda: não é apenas a regra beneditina que pode ser quebrada com o riso, mas é também o próprio poder da igreja no seu todo que pode ser abalado, pois a igreja governa as mentes com base na instituição da fé que dispensa explicação e demonstração, bastando-se pela sua autoridade que é inquestionável, e impondo-se pelo medo. Se o homem deixa de ter medo, do demônio ou de Deus, a igreja torna-se desnecessária e Deus também. Muito bem. Você deve estar se perguntando: mas o que é este conceito aristotélico de ‘ordem hierárquica imutável’ no modelo filosófico religioso da igreja cristã? Então aqui vai uma explicação bem prática. Suponhamos que eu faça parte do clero do século XIV. Nada me falta, tenho mordomias e não preciso trabalhar para o meu sustento. Você faz parte da maioria pobre, trabalha 16 horas por dia para sustentar a aristocracia ou o clero ou ambos e sobrevive das sobras de seus patrões. Um dia você vem a mim e pede-me para deixá-lo entrar para o clero e eu lhe respondo. Isso é inadmissível. Deus criou alguns para representá-lo na terra e guiar os demais que foram colocados no mundo para servir e obedecer. Se você nasceu como um camponês, você deve ser um camponês até o fim de sua vida. Se Deus quis que eu fosse um líder religioso, devo conformar-me com minha incumbência até o dia de minha morte. Se um de nós fizer qualquer mudança, estará transgredindo a lei de Deus e pagará caro no dia do juízo final, entende? Sim, você entende tanto quanto aquela camponesa que satisfazia os prazeres sexuais do ecônomo do mosteiro em troca de um rico alimento que era privilégio só dos monges, e teve que seguir vivendo, sempre servindo, se vendendo e se humilhando, sem sonhos e sem futuro. Mesmo que eu não pertencesse à minoria clerical, eu lhe daria a mesma resposta prática se eu tivesse a sorte de ter nascido como filho de outra minoria, a aristocracia, que andava de mãos dadas com o clero. Eu poderia ser o Adso do filme. Ele é filho do abastardo Barão de Melk. Somente os ricos podiam propiciar algum tipo de educação aos seus filhos e somente a igreja tinha autorização para educar. O Barão de Melk confiou seu filho, Adso, à ordem franciscana, e frei William foi indicado para seu tutor.

Preste atenção no cenário do filme, lembrando que o ano é 1327 e.c. É fácil perceber o modo de produção de bens agrícolas vigente. A estrutura desta produção é típica da fase em que o feudalismo já está com suas bases estabelecidas, e isso pode ser visto em uma das cenas em que vários camponeses formam fila para pagar tributos com alimentos tirados de sua produção agrícola. Para entender melhor, vamos lembrar o que era a ordem beneditina. Ela foi fundada por Bento de Nursia no limiar do século VI e era a difusão, no Ocidente, das normas de ascetismo oriental concebido por Santo Antão no Egito, no chamado movimento dos anacoretas, que fugiam das cidades para o deserto em busca de isolamento e profunda contemplação e oração como meio de salvação. Para ambos, Ocidente e Oriente, aquele era um momento terrível, de guerras, de carestia, de epidemias e de exploração agravada das massas trabalhadoras sobre as quais recaia o maior peso da crise resultante da decadência e cisão do antigo império romano. A regra de Bento acrescentava à oração e à contemplação o lema reze e trabalhe. Dentro desta regra, o trabalho devia ocupar o dobro do tempo reservado à oração e a comunidade devia ser autossuficiente e não se basear demasiadamente nas contribuições dos ricos que visavam condicioná-la. Assim, a produção agrícola, que havia descido a um nível bastante baixo, acabou até mesmo sendo melhorada pelos beneditinos com seus novos métodos de cultivo dos campos, promovendo, inclusive, a melhoria das condições econômicas do Ocidente. Com o decorrer dos séculos, os mosteiros beneditinos transformaram-se em castelos feudais, com seus servos de gleba que não eram tratados melhor que os outros até que a corrupção monástica se desenvolveu e atingiu um ponto intolerável, imitando o regime feudal externo, e exigindo uma reforma imediata, que se chamou Clunisiana, de Cluny, o francês que a idealizou. Tal reforma que, entre outras mudanças, abolia também a produção agrícola interna, sustentava que o ideal de suficiência deveria ser mantido, com a diferença que o abastecimento cabia às explorações satélites dispersas no campo, em torno das muralhas dos mosteiros. O mosteiro que você vê no filme é estruturado nos moldes da reforma Clunisiana quando já não havia mais produção agrícola interna e o abastecimento de alimentos é obtido à custa dos camponeses que, como é dito no filme, receberão 100 vezes mais no céu aquilo que deram na terra (dos espertos beneditinos, é claro).

O filme inteiro é rodado num único cenário: o interior do mosteiro. Outro bom exercício é identificar algumas das várias unidades monásticas e as funções exercidas pelos moradores do mosteiro que o filme descreve com perfeição, só com imagens, e que são corroboradas pela excelente coletânea de livros chamada A História da Vida Privada, e que revelam uma interessante associação entre conceitos dogmáticos, a estrutura orgânica, hierárquica e funcional dos mosteiros e a relação interna de poder. No feudalismo, as casas dos senhores da aristocracia eram concebidas a partir de representações imaginárias da morada perfeita, a partir do paraíso, da morada dos eleitos do outro mundo. Os senhores do feudo imaginavam o paraíso cristão como uma morada abundantemente povoada, exultante, a casa perfeita, como um paraíso resplandecente, preparado para as felicidades da vida. Os mosteiros beneditinos eram como réplicas, na terra, da morada paradisíaca, e pretendiam ser sua projeção neste mundo, apresentando-se como cidades fechadas com muros, em primeiro lugar, um claustro, cujo acesso deveria ser estritamente controlado, uma porta única, aberta ou fechada em certas horas como as portas das cidades e, a importância maior de uma função, a hotelaria, governando toda a relação entre o interno e o externo. Os mosteiros eram, em primeiro lugar, casas, cada uma abrigando sua família, das mais perfeitas e ordenadas. O modelo beneditino guardava uma vontade de correspondência estreita com as harmonias universais. A nave da igreja é o ponto de articulação entre a terra e o céu; neste lugar operar-se uma ligação com o paraíso, quando a comunidade ali se une para cumprir a função maior, cantar os louvores de deus no uníssono coro litúrgico; a residência fraterna fica ao sul do espaço litúrgico com as seguintes disposições: o pátio, o celeiro, as reservas de alimento, a cozinha, a padaria, o refeitório com depósito para roupas acima, a sala, ladeada pelos banhos e latrinas e encimada por um dormitório que se comunica com a igreja. Contígua a esta morada, estendem-se anexos de oficinas de artesanato (que antes da reforma Clunisiana continha também anexos para a produção agrícola e granja), jardins, estrebarias, estábulos e as cabanas dos servidores domésticos. Mais tarde, a reforma Clunisiana eliminaria quase todos os anexos contíguos, mantendo apenas a estrebaria. Ao norte, para além da igreja, ficava o alojamento do abade, uma casa munida de sua própria cozinha, seu próprio celeiro e banhos próprios; com a reforma, o abade foi reconduzido para o meio dos monges. A nordeste, os excluídos temporariamente da comunidade fraterna, os doentes e os noviços, são isolados em uma outra morada, também autônoma, mas dividida em dois, o local destinado às purgações e às sangrias (este é fácil identificar). Finalmente, perto da porta, a noroeste, os estrangeiros são albergados em duas casas providas do mesmo equipamento completo: uma que acolhe visitantes e estudantes externos que não fazem parte da família, e outra reservada aos pobres e peregrinos. Vê-se que tal organização pretende refletir as estreitas hierarquias da corte celeste. No centro está o lugar de Deus, o santuário; à direita está o lugar do abade, o pai da família; à esquerda esta a parentela: os filhos, os irmãos, os monges, homólogos de anjos. No ponto mais distante da porta, fissura aberta para o mundo corrompido, estão isolados os inválidos, os jovens noviços, crianças, velhos e os mortos (o cemitério fica neste lugar); este ponto é a parte mais vulnerável da comunidade e, em razão de sua fraqueza, fica afastada, mas também protegida pela destra divina, pois nesta mesma direita ficam os lugares destinados às funções espirituais, a escola e a oficina de escrita, enquanto o material, o que sustenta o corpo, é relegado à esquerda de Deus. As  sepulturas estão dispostas na direção do leste, do lado da aurora, símbolo da ressurreição, e para o oeste, do lado do poente, da perversidade do século, permanecem encerradas as pessoas de passagem. A reforma Clunisiana da metade do seculo XI, conforme explicado no parágrafo anterior, trouxe mudanças com relação à produção agrícola interna, legada aos camponeses habitantes da cidade, e com relação ao lugar do abade. A partir dai, vê-se mais intensificado o fornecimento de peças de vestuário por parte do burgo estabelecido à porta (comunidade de comerciantes, de artesãos e de servidores assalariados), pois a comunidade começava a utilizar mais o instrumento monetário. Assim, o mosteiro, no seio de sua clausura, tornava-se mais homogêneo, uma só morada. O abade é o senhor, mas é assistido por um corpo constituído de seniores a quem os jovens monges estão subordinados. Os chefes de serviço são o prior, espécie de vice senhor, abaixo do qual estão o sacristão que cuida da igreja, dos acessórios litúrgicos e de todos os instrumentos sagrados, o camareiro, responsável pelo dinheiro, que não cessou de crescer nos séculos XI e XII, e tudo que entra no mosteiro por doação, tributo e compras (tecidos, vinho, metais preciosos), o ecônomo, que dorme no celeiro, também chamado de senhor do celeiro, responsável por todos os víveres, repartindo a cada dia as porções de alimento com a ajuda do zelador de vinho, do encarregado de cereais e água e pelo condestável responsável pela cavalaria do mosteiro, o hospedeiro e o capelão que dividem o quarto oficio que são as relações com pessoas do exterior menos puras e que se mantém abaixo da dignidade monástica e a distribuição dos excedentes entre os indigentes: lembra-se da cena na qual o frei William diz: lá vai mais uma doação da igreja aos pobres? O âmbito privado, reforçado onde habitavam os senhores, o núcleo da família, a fraternidade agrupada atrás de seu pai, dividia-se em quatro grupos acantonados em quatro abrigos distintos: o noviciado, a enfermaria, o cemitério e o claustro. Esse último abrigo pretendia mostrar a imagem daquilo que devia ser na terra uma vida perfeita, e por isso empenhava-se em aproximar-se das ordenações do mundo celeste, isto é a ordenação dos quatros elementos do universo visível: ar, fogo, água, terra, no espaço interno, o pátio inferior chamado claustro, forma introvertida da praça pública, inteiramente voltada para o privado.

Como você viu ou reviu, o que move a trama do filme são as mortes misteriosas dentro do mosteiro e, com exceção das investigações sherloquianas do frei William, o que se ouve o tempo todo são várias interpretações místicas para encontrar a razão para tais mortes, comentários típicos da igreja que está toda impregnada da noção de Deus como criador do mundo numa forma organizada e hierarquizada e voltada para o bem, e tudo que contraria esta ordem vem da ação do demônio, o símbolo do mal. No filme, as mortes em sequencia são atribuídas a um fenômeno sobrenatural específico: o demônio que resolveu habitar o mosteiro. Para os monges, a causa desses crimes não poderia ser atribuída a outro senão a ele, o demônio, por que tais tragédias no seio de uma comunidade governada por aquele que representa o bem absoluto não poderia ser obra de homens comuns, mas somente daquele que se opõe ao bem, ou seja, o anticristo. Os monges acreditavam na ação do demônio, incluindo-se entre eles até mesmo os franciscanos em visita ao mosteiro. Observe-se que os franciscanos eram menos ascéticos e rígidos do que os beneditinos no que diz respeito às normas de conduta e à condição humana de cristo, no entanto, como se  percebe no filme, até um líder espiritual dos franciscanos, perseguido pela inquisição católica como um herege, faz uso de especulações místicas e apocalípticas para explicar as referidas mortes, o que assusta o noviço Adso, apesar das constantes explicações racionais de seu tutor, o frei franciscano William, adepto do pensamento grego antigo, especialmente o de Aristóteles, e que, ao contrário dos seus irmãos de todas as ordens cristãs, só recorre a Aristóteles para por em prática a sua lógica, de forma coerente para, assim, provar que as mortes são apenas simples atos comuns de homens comuns. Tudo não passa de um suicídio e vários assassinatos por causa de um único livro que ri do mundo como o homem ri de si mesmo.

O frei William conhecia a verdade dos fatos e a revelou a todos os seus irmãos cristãos. Mas a verdade não lhe pertencia. Ela já tinha dono: um organismo jurídico da igreja que completava a humanística trindade: a santa inquisição como o espírito santo entre o pai (a igreja) e o filho (todos os pobres). Mesmo nos nossos dias, a igreja católica e seus seguidores ainda mal conseguem explicar a relação entre o pai e o espírito santo. No século XIV, a igreja e seus escravos que a sustentavam também não sabiam, ao certo, até onde ia o poder da santa inquisição em relação ao papa no vaticano. O que mais se sabia a respeito deste organismo brilhantemente presidido no filme por Bernardo Gui, é que ele exercia todos os poderes concebíveis: legislar em causa própria, julgar inocentes coerciva e arbitrariamente e executá-los sumariamente.

Você deve ter reparado no arsenal de instrumentos de tortura que a delegação da santa inquisição levava para onde ela era chamada para investigar. Mas você não faz ideia da criatividade desta santa no desenvolvimento de certos instrumentos e métodos com um requinte de crueldade que faria inveja aos romanos. Acrescento aqui um destes instrumentos não mostrado no filme que tinha função tripla: torturar, matar e intimidar quem  desafiasse seu poder. Na Espanha, minha tataravó testemunhou a ação de um exército da santa inquisição entrando em seu vilarejo e arrancando de uma das casas uma jovem suspeita de bruxaria. Ela foi completamente despida e montada sobre um cavalo de ferro oco e repleto de brasas incandescentes por dentro. Ela desfilou montada naquele cavalo por toda a vila até morrer, enquanto todo o povoado se trancafiava em suas casas e espreitava assustado pelas frestas das janelas. Este exemplo é uma herança romana aperfeiçoada pelo cristianismo que, afinal de contas, começou na antiga Roma e, em apenas três séculos, se tornou a religião oficial do império romano. Quando este caiu, a igreja católica tomou seu lugar central e todas as suas colônias, tornando-se um novo império em si, mais poderoso, mais extenso e muito mais duradouro. Ele começou pequeno como Roma, uma cidade-estado que se expandiu, se tornou uma república, rompeu suas fronteiras, conquistou outros povos e se transformou no maior império da história da humanidade. Todos os que desafiavam o poder de Roma eram crucificados em público para servir de exemplo. O cristianismo aprendeu muito com os romanos e atingiu o auge do exercício de seu poder absoluto com a instauração da santa inquisição. Assim como o império romano acabou, o cristianismo acabará também. Sua desintegração teve início na Europa no século XVIII, com o surgimento do Iluminismo e as primeiras análises científicas dos textos dos evangelhos, e sua extinção completa deverá ocorrer em menos de um século. Ele será substituído por outro poder que eu não estarei aqui para ver.