quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O ÚLTIMO SURTO DE AMOR

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 




Todos foram embora, Deixaram-nos sós, Levaram, Naquela imensidão de soberanos da escuridão absoluta, A vida sem horizonte, E apagaram o fogo do amor que ardia sem se ver, E nossa irmã que a nós se juntou, Movida por irresistível encantamento, Nos somou, Nos dispersou, Nos desequilibrou, E todos nós nos amalgamamos, Como rios descendo em carreiras desabaladas, Nos agarrando, Sem sussurro, A oásis que rebrilham no deserto, Enquanto os restos mortais de nossa fonte da vida combinaram seu tempo de ciranda com seu rodopio de bailarina, E nos deram as costas, Ocultando-se para sempre, Perdendo-se nas trevas, E nos prendendo a ela, Sem saber que sentimos frio, Que queimamos de febre, Sem o amor que nos acalma, Que nos endouda, Que nos eleva, E que nos abate, E nos vemos diante da estrela moribunda e negra, Que não brilha e nem aquece, E tantas outras que vão apagando suas luzes, E vagamos, Assustados, À deriva, Carregados pela caligem que se expande, Incertos e delgados, Cintilações que mal bruxuleiam pequeninas diante do abismal, Vogando num oceano sem fronteiras, À mercê da Providência, Na esperança de que uma  nova eclosão de amor recomece de onde parou, Rezando para que isso tudo não seja o fim do começo, Para que o milagre que nos surtou volte a nos equilibrar, A nos reencontrar com Deus onde ele se perdeu e deve estar a nos procurar.  

terça-feira, 19 de novembro de 2024

INGLESA'S HYBRID CLONE MULTIPLICATION OF IDENTICAL TWINS TO FIGHT THE DYNAS' INVASION


[Verse 1]

I lift my lips from kissing you

To kiss the sky, clouds soft and blue

And slow the sun melts down into

Your golden words for me

 

[Verse 2]

I lift my hands from touching you

To touch the wind that whispers through

This twilight garden turns into

A world where dreams are real

 

[Chorus]

No one will ever take your place

I am lost in you

No one will ever take your place

So in love with you

 

[Verse 3]

I lift my eyes from watching you

To watch the star rise shine onto

Your dreaming face and dreaming smile

You're dreaming worlds for me

 

[Chorus]

No one will ever take your place

I am lost in you

No one will ever take your place

So in love with you

See upcoming rock shows

Get tickets for your favorite artists

 


[Verse 4]

I lift my lips from kissing you

And kiss the sky wide deepest blue

And slow the moon swims up into

Your golden words for me

 

[Chorus]

No one will ever take your place

I am lost in you

No one will ever take your place

So in love with you

 

[Refrain]

No one will ever take your place

I am lost in you

No one will ever take your place




PORQUE GOSTO DE VOCÊ



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 

Como é maravilhosa esta vida, Enquanto você estiver neste mundo, Com este olhar encantador, Sempre presente neste seu sorriso contido, Escondido em alguma estrela, Embuçado nos céus e em suas mãos, E não me consta que você se presta a perder corações esperançosos que se sentem apaixonados com sua meiguice que os levam às sendas das decepções, Outra maravilha de se ver, É você descendo ladeiras até a praça por veredas torcidas e espremidas, Apinhadas de olhos curiosos, E não me consta que você se presta a promover cenáculos de jovens no cio que se reúnem por trás das grades e que se sentem gratificados com fotos de seu todo que os levam a imaginar que estão assistindo à troca da guarda de uma rainha, Enquanto das janelas e dos terraços parece cair um monte de flores, E das alturas águas que molham só você, A única que não carrega uma sombrinha, A única que tem cor, No meio de uma multidão só com a monocromia da chuva, Porque o arco-íris parece se curvar só para você, Como eu me curvo todos os dias, Como toda santa noite me perco em rezas, Em oratórios, Em recados, E até em contos de carochinha, Porque gosto de você, E apesar de quase não termos uma história, Daríamos um ótimo romance.  


A PRESENÇA

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Tantos sóis vêm se escondendo nas minhas noites desacompanhadas, como joias nas quais se encrava uma única pedra preciosa, Sem promessas e sem respostas a preces, resplandecem raios florais no alto de minha alma em tempos rigorosos, como vasos que se sustentam sobre um único andor, Muitas estações vêm se revezando diante de meus olhos visionários, como rochedos entre os quais se engasta uma única casa, Sem ruídos e sem réplicas de imagens, anunciam ressurreições às mortes no cerne de meu espírito em momentos de desespero, como palcos que encenam um único mistério, Tantas passagens vêm ornamentando meus dias instáveis, como melodias nas quais se embute um único fragmento de escala, Sem comunicações e sem passadeiras de transições, ligam divinos portais à minha mente adormecida em sonhos reveladores, como bilhetes que dão direito a uma única viagem, Muitos espectros vêm povoando meus pensamentos inquietos, como fantasmas nos quais se insere um único toque mágico, Sem sustos e gemidos penados, emanam raios coloridos em minha aura bruxuleante em horas revoltosas, como trabalhadores que conhecem um único amor.

ANALISE ESTE GRITO DE GUERRA


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Segundo dia da semana, Dia de inadimplir a promessa de tornar menos precárias as condições do corpo, É também o primeiro dia do ano, Dia para descumprir o voto de mudança, Desandando tudo que fora ajustado para ver a dura sorte que não muda, Uma semana e doze meses passam logo, Como as águas murmurando, Como a mocidade e a vida que se acabam, Como o meu tempo com você que não esperava ver-me aqui novamente, Porque você deve ter pensado que foi o dinheiro que nos separou, Mas com o ar de minha graça que agora lhe dou, Você se surpreende e se satisfaz, Estende-me os braços, Para me abraçar, E afasta-se para lançar sobre este garoto, O sorriso de adulta que exterioriza uma gama numerosa de sentimentos, Mas por ora nele só enxergo sinceridade, E uma indisfarçável curiosidade, E curioso é que nunca te falei de minha admiração pela sua bravura, Pois no seu lugar teria sucumbido para sempre, Talvez seja por isso que você não me pede mais para escolher um nome para minha libertação, Como se soubesse que, Quando morto, Pedirei para poupar-me à sepultura, Pois odeio a claustrofóbica cova fria e escura, Mas eu tenho um nome, E não sei por onde começar, Embora a semana tenha começado fresca, E terminará horrivelmente cálida, Menos adiantada em anos que exausta e rendida dos mesmos desacertos, Na verdade não quero começar, Aqui voltei só para enganar-me, Porque me canso de tanto enganar os outros, E como nas vezes anteriores, Você tentará trazer-me para terra firme, Mas terá que se conformar vendo-me nadando com alegria e galhardia na superfície das águas confortantes do oceano, Longe da praia, Cercado pelo verde exuberante que me dá esperança por todos os lados, Coberto de cor prussiana do céu sem nuvens e de sol alto que me traz paz de espírito na solidão e na imensidão, Eu não mergulho mais em águas profundas, Nem que você me dê uma generosa mão, Isto eu fazia quando meus medos nas águas eram menos dilacerantes do que no continente, Portanto você não conseguirá penetrar no meu universo, Quanto muito me ouvirá discorrer sobre os meus projetos que nunca serão executados, Fingirá interesse por eles, Para cativar-me, E alucinar-me com uma diabólica solicitude, E logo se cansará deles, Mas não vai desistir de mim enquanto eu estiver pagando-te para ouvir-me dizer-lhe o que não interessa a ninguém, Só a uma bruxa como você, Livre da inquisição, Que joga tarô e adivinha algumas poucas coisinhas bênticas que ficam enterradas nas profundezas do mar, Mesmo assim você quer que eu fale, E eu vou falar-te, Mas não de mim, De outras pessoas, Antes de você houve um homem que me livrou do exército porque eu estava habilitado a exercer atividades civis, Mas não militares, Na verdade, Eu mesmo livrei-me dos milicos da ditadura com uma presença de espírito que só pode ser atribuída a um anjo da guarda, Ele deu-me um par de asas, Mas não me ensinou a voar, Procurei um professor de alçar voo que adotava um procedimento meio confuso, Deixava escapar aos ouvidos dos outros que eu era tão inteligente que poderia ser um presidente, E esquecia-se do que me propunha, Mas suas ajudantes não se esqueciam do que eu lhe devia, Pensei: ‘A vinda de um filho é um bom momento para superar tudo isso e nunca mais voltar’, Mas o problema não vai embora, A doença nasce e morre com a gente, E ele concordou: ‘Gente assim sempre volta’. Será que ele quis dizer que eu preferia enfrentar o mundo dele ao invés de resistir a mim mesmo lá fora? Uma mulher mais esquisita que você, Que não cobrava para dar conselhos e nem os dava sem que lhe fossem solicitados, Disse-me que numa vida anterior fui um soldado alemão e morto em guerra, Outra mulher sofrida ajuntou as mesmas palavras, E meu último amigo também falou-me algo semelhante, E os três nunca se conheceram, Nem em vida, Nem depois dela, Talvez só nas encruzilhadas do inconsciente coletivo, Uma falava com voz de homem, Que o fruto só cai da árvore quando está maduro, E que quem morre em guerra é sempre revoltado, A outra, mais calma, Lamentava-se por terem levado seu bambino, O outro dizia que enquanto sobrevoava a área inimiga foi derrubado por uma rajada de balas, Será que tudo seria diferente se eu tivesse feito um pedido, Como minha mãe recomendou, Quando atirei meu primeiro dente de leite no telhado? E todas aquelas estrelas cadentes que eu deixei passar sem nada lhes rogar? Uma mulher muito diferente de você, Que preferia perder dinheiro e passar por privações para salvar uma vida humana, Disse-me que eu seria um coadjuvante anônimo num livro que pretendia escrever, Porque, Dizia ela, Num teste de livre associação de ideias, A única coisa na qual uma adolescente jamais pensaria é num pai vagando solitário e cabisbaixo pela praia, E quando meu pai morreu, Fiz o mesmo algumas noites, Coadjuvado pelas estrelas, E o que mais você quer que eu diga? Quer que eu te lembre de todas as promessas que eu fiz e não cumpri? Quando volto ao passado, Rezo para que ele tenha ficado somente com uma vaga recordação de mim, Ah sim, Antes que eu me esqueça, Naquela noite eu era mais criança, Minha alegria transbordava no quarto do hotel onde acionei todos os brinquedos que eu traria para minhas filhas quando eu voltasse para casa, Aquele sorriso no meu rosto, Sim, Aquele sorriso poderia ser um grito de guerra, Mas ela acabou, Sem vencedor, Com baixas dos dois lados, E outra começou, E apesar de sempre combater comigo contra o mundo, Continuei viajando por ele inteiro, E por muito tempo, E muitas vezes estive no Louvre em Paris, E cada vez que eu o visitava, Havia sempre uma aglomeração disputando o sorriso de Mona Lisa, Mas lá mesmo, Um dia, Vi um sorriso de uma natureza tão pura que Da Vinci gostaria de tê-lo só para si, Fora da tela, Somente nas mais internas camadas de seus olhos, E por hoje chega, Chega por esta vida, Estou indo embora, Jamais deixarei meu mundinho escroto, Onde minha dor oculta-se sob os véus mais finos, E ao mesmo tempo indevassáveis, Ninguém verá meu sentimento inquieto, Magoado, Escondido, Aterrador, Secreto, Que o coração me apunhalou neste mundão, Onde já espalhei toda minha devassidão, No entanto jamais contaminei as suaves ondulações salinas que me dão paz interior e que nunca sairão do lugar, Mas só queria lá voltar com a certeza de que nunca permitiria que aquele sorriso genuíno e divino se desvanecesse por um só instante, É somente por isso que continuo sobrevivendo, É a única razão para eu continuar neste conflito, E como a guerra é de mais de cem anos, Como Inglaterra contra França, Estou voltando para o mar, E vou morrer num campo de batalhas novamente.

E

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Meu amigo Zen, espero que você não se importe de chamá-lo de brother depois de seus 14 anos de afastamento, rompendo uma amizade de 20 anos. Somente no último dia 12 de Setembro de 2014 descobri, por acaso, na internet, que você morreu no dia 16 de Fevereiro deste ano. Acho que não foram poucas nem simples as razões que o levaram a se afastar, e creio que conheço algumas delas, mas somente você pode dizer quais foram os verdadeiros motivos. Na última vez que tivemos um encontro formal, na minha casa, por ocasião de minha festa de bodas de prata com minha ex-esposa em Abril de 2000, você estava muito bem, depois de ter se curado do alcoolismo. Estava magro, esbelto, elegante, só tomava refrigerante e vestia roupas incrementadas, próprias do gosto que temos em comum: calça jeans, camiseta preta e um colete descolado. Mas naquele dia eu já desconfiava que você estava de partida, pois isolou-se no quintal da casa e mal pude conversar com você. Talvez você não se sentisse à vontade sem a presença de  meu irmão Armando, seu amigo antes de me conhecer. Como você deve ter sabido, através de alguns membros de minha família que me lançou no mercado da parentela como astro do mau-caratismo, dois anos mais tarde minha vida deu uma guinada de 360 graus. Divorciei-me e logo em seguida casei com a Cecília. Moramos um ano em Belo Horizonte, lá tivemos a Ana Carolina, e em Outubro de 2003 voltamos para São Paulo. No primeiro semestre de 2004, eu passeava com a Cecília e a Ana no Shopping Center Norte e, de repente, topei com você e a Fátima numa casa de sucos. Ao nos abraçarmos, pela primeira vez você deixou de ser espontâneo e proferiu uma frase rebuscada:
'Ah, o Alceu é uma pessoa que não dá para esquecer.'
Mas você tinha me esquecido e eu não estava chateado com isso. No entanto, você me surpreendeu com sua resposta à minha pergunta sobre como andava sua saúde:
'Alceu, nunca imaginei que depressão fosse assim tão terrível. Nunca imaginei que um dia ficaria semanas deitado numa cama, sem tomar banho, sem trocar de roupa, sem escovar os dentes, e fazendo um esforço hercúleo para poder ir ao banheiro.'
Na hora lembrei-me do dia em que sua mãe morreu. Você estava indignado com minha falta de consideração por não ter ido nem ao velório e nem ao enterro. Você perguntou ao meu ao Armando:
'Por que o Alceu não veio?'
Ocorre, fratello, que naqueles dias minha  depressão, que nasceu e vai morrer comigo, tinha atingido o auge do sofrimento humano, a dor da alma, e como você eu estava deitado num sofá havia muitos dias, sem chuveiro, sem creme dental, com o mesmo pijama encardido, comendo e engordando como um porco, e me arrastando para chegar ao vaso sanitário. Nunca te contei isso porque você não iria acreditar e, como você, eu também não gostava de me justificar. Como sempre fiz, não por mera formalidade, mas por afeição mesmo, anotei num papel meu novo endereço e meu novo telefone e fiquei esperando você aparecer em casa, como nos velhos tempos. Mas eu sabia que nunca mais o veria. Para falar a verdade, não sentia saudades de você. Só falta de nossos encontros aos sábados, desde o meio da tarde até além da meia-noite, vendo vídeos e ouvindo rock britânico, jogando conversa fora e bebendo todas: vodca, uísque e cerveja, e é por isso que a maior parte dos nossos papos acabavam na lata de lixo. Obviamente, se estou escrevendo sobre você e para você é porque sua morte  deixou-me, no mínimo, triste, e porque quero prestar-lhe uma homenagem em agradecimento por você ter me concedido o privilégio de sua amizade por duas décadas. Mas não espere de mim a falsidade das pessoas que costumam elogiar à exaustão uma pessoa só quando ela morre. Sei que você teve uma juventude traumática e que nunca gostou de falar sobre isso. Foi meu irmão quem me disse que quando você fazia nosso antigo científico do ensino médio no GEPEF em Jaçanã, onde também estudei, você já tinha nobres ideais e se engajou no movimento estudantil contra a ditadura militar. Você foi detido, interrogado, liberado, mas perseguido e vigiado durante dez anos. Todas as manhãs quando você saía para trabalhar, sempre havia um homem do outro lado da calçada te observando. E às vezes até dentro do ônibus que você tomava. E quando voltava para casa lá estava do outro lado calçada outro homem de olho em você. Foi também meu irmão quem me disse que você queria ser médico. Tentou o vestibular três anos seguidos, mas não conseguiu passar. Talvez tenhamos perdido um grande médico, mas ganhamos um extraordinário jornalista. Eu também queria ser jornalista como você, mas desisti por medo e covardia. Tinha receio de enfrentar um vestibular com provas de ciências exatas, matemática, física e química. Então, simplesmente escolhi um vestibular que tivesse ciências humanas com maior peso nas notas. Fiz faculdade de Cultura, Língua e Literatura Americana e Britânica e depois Administração de Empresas na PUCSP, a mesma onde você fez jornalismo. Daí que ao final dos anos 70 estamos formados e trabalhando e vamos nos conhecer através de meu irmão. Durante nosso primeiro encontro eu estava obcecado com minhas pesquisas sobre discos voadores e torrei seu saco por mais de uma hora contando histórias sobre os misteriosos UFOs. Qualquer pessoa teria evitado um chato como eu para sempre, mas você não o fez, e não sei o porquê. Talvez porque você descobriu que tínhamos algo em comum, como você tinha com o meu irmão: a música, mas  não qualquer uma: o rock, mas não qualquer um: o britânico e a Santíssima Trindade: o Pai (Beatles), o Filho (Rolling Stones) e o Espírito Santo (The Who). Apesar da relação de parentesco entre Pai e Filho, ninguém era cria de ninguém. Cada um inventou seu próprio estilo, e cada um de nós tinha sua banda favorita. Cada um de nós tinha seus problemas e suas carências. A sua percebi logo no início dos anos 80, quando você ainda trabalhava na prefeitura de São Paulo. Na tarde de um dia de semana você ligou da prefeitura para minha casa e eu atendi:
'Pô, Alceu, você esqueceu de mim? Não liga mais para mim? Não quer mais me ver? Vamos nos encontrar, pô!'
Você era solteiro e morava com seus pais e eu não tinha seus telefones. Quem os tinha era meu ex-irmão. Então te convidei para vir à minha casa no sábado, para a festa de aniversário de uma de minhas filhas do meu primeiro casamento. Era uma festa só para crianças, mas você veio e juntos tomamos de tudo, menos refrigerante. Em descompensação, te flagelei como na paixão de cristo. Quantas vezes te obriguei a assistir ao mesmo vídeo do show do The Who de 1982? Perdi a conta. Não sei como você me aguentava. Meu irmão contrabalançava as coisas e colocava vídeos de shows do Rolling Stones. Era divertido quando você me provocava.
'Alceu, o The Who é bom, mas os Stones são imbatíveis.'
Minha vantagem era ter o melhor baixista e o melhor baterista do mundo, a cozinha da banda e, para piorar, um compositor à altura de Lennon. Em nossos encontros nunca rolou música brasileira, mas sei que você gostava, e muito. Quando você pegava no violão, você tocava e cantava bem, sempre bossa nova, às vezes Jorge Ben Jor, e às vezes, radicalizava com músicas do ‘tremendão’. Você nunca se arriscava a tocar Beatles, Stones e The Who como eu. Às vezes você tinha acessos de loucura como, por exemplo, me dizer que a bossa nova foi a maior revolução na história da música no mundo. Toda pessoa super culta e inteligente como você tem um pouco de louco, embora exista por aí muita gente que é burra e doida ao mesmo tempo. Até meu pai sabia que foram os Beatles que revolucionaram e reinventaram a música e mudaram o mundo. Até o Pete, que ficou careta depois que criou a obra prima Tommy, surtou ao responder a uma pergunta sobre os Beatles: ‘Eles são iguais ao Herman Hermits’. E o repórter comentou: ‘Por favor, Pete, volte a beber e a se drogar’. Antes dos Moptops só havia Mozart, Beethoven, Bach e outros gênios da música clássica. E cá entre nós, bossa nova é música para boi dormir, para gente velha que pega no sono sentado jogando dominó. E nós não somos velhos? Já passamos dos 60! Mas este terquijo ainda tem dentro dele o mesmo jovem de 20 anos, rebelde, radical, ingênuo e cada vez que ele vai a Londres sempre traz novidades britânicas, novas bandas de rock formadas por garotos de 18 anos. Não sei que estado de espírito você levou consigo quando partiu, mas sei o que você deixou: um competente trabalho editorial no jornal da TV Bandeirantes: uma verdadeira revolução no telejornalismo esportivo quando você assumiu o comando do programa Vitória na TV Cultura e colocou somente nosso rock como música de fundo, algo que a Rede Globo copiou de você e usou no programa Esporte Espetacular como se fosse ideia original dela. E não foi por isso que você recusou um convite para trabalhar para ela, mas porque você a achava hipócrita e manipuladora da opinião pública. Mesmo assim, quando o Serginho Grossman veio lhe pedir um conselho sobre se deveria aceitar ou não um convite para trocar o SBT pela Plim-Plim, você, percebendo nos olhos dele o alto salário que lhe fora oferecido, simplesmente respondeu:
'Vá em frente, Sérgio, faça o que lhe dá prazer!'
Como esquecer as vezes em que você me dizia:
'Alceu, no próximo domingo vou abrir o programa Vitória com a primeira faixa do álbum Tommy do The Who, especialmente para você?'
Como esquecer o dia que você fez um programa especial sobre Eric Clapton em visita ao Brasil e enviou a equipe da Cultura à casa de meu irmão para nos entrevistar na condição de fãs deste grande músico britânico. Como esquecer a entrevista histórica que você fez com o Pelé quando ele completou 50 anos? Quantas pessoas sabem (ou fingem não saber) que a revista Veja, nos seus áureos tempos, lhe concedeu o prêmio de melhor tele jornalista e produtor pelo seu trabalho original e inteligente? E só eu conheci a sua dignidade e integridade quando pediu demissão da ESPN Brasil porque lhe pediram para bater de porta em porta nas empresas para encontrar patrocinadores para seu programa.
‘Olha aqui, José Trajano, este não é meu trabalho, não é minha função, sou jornalista, por isso estou caindo fora. Isto vai ser bom para mim e para você também’.
Nunca fui inteligente, mas também tinha meus acessos de loucura. Certa vez, quando elogiei demais a banda britânica Cocteau Twins, de quem tenho o repertório completo, você me gozou:
‘Por que você não divide uma quitinete com eles?’
Que é isso, companheiro? Eles criaram seu próprio estilo, mesclando psicodelismo com sons celestiais e rock áspero, nada comercial. Quer saber de uma coisa, pouquíssimos músicos são capazes de compor uma canção como Fifty-Fifty Clown, tão complexa para os amantes do poeta Jean Cocteau, como Strawberry Fields Forever de John Lennon foi para os Fab Four. Há outras reprovações suas que aceitei de bom grado. Nos anos 90 andei me envolvendo com espiritualistas e, como de costume, te aporrinhei mais uma vez, sempre sob seu olhar de desaprovação, e acrescentei que eles, pelo menos, faziam caridade, formando grupos todos os fins de semana para levar alimento e roupas aos moradores de rua.
‘E daí, Alceu?’
Bem daí que ao menos eles tinham a consciência tranquila.
‘Que consciência, Alceu’?
Então me toquei. E como seriam suas vidas noite adentro ao relento, e durante o dia inteiro sob sol escaldante, frio e chuva, sem nenhuma perspectiva, sem um lar? Percebi, então, que meu trabalho de entrar em favelas para fazer triagens de famílias que iriam receber cesta básica durante um ano era uma tremenda cretinice. Eu não dava peixe e nem ensinava a pescar. Era muito cômodo esperar que os pobres viessem a mim de longe para buscar uma cesta de alimentos. Eles voltariam para seus casebres de madeira e de chão de terra, sem banheiro, urinando e defecando nos fedorentos esgotos a céu aberto, enquanto eu voltaria para casa de carro, deitaria confortavelmente num sofá, e assistiria TV a cabo, petiscando e bebericando. Só para mim você contou histórias tão íntimas.
‘Alceu, eu fiz algo diferente há muito tempo, num pequeno convento de freiras católicas que deixavam o hábito de lado, vestiam jeans, tênis e camiseta, pegavam ônibus e iam de encontro aos pobres, não para lhes dar alimento e roupas, mas para ajudá-los a construir uma vida. Alceu, você precisa conhecer mais gente.’
E precisava mesmo. Estou falando de um Zen cristão? Não! Até onde sei você é ateu como eu e, além de falarmos de música, tínhamos altos papos sobre política, filosofia, sociologia, antropologia e até psicologia – sorry por meu descalabro, nunca esqueço quando você me disse que comeu sua terapeuta em cima da mesa dela.  E você não escondia sua simpatia pelo regime socialista dos soviéticos e cubanos.
‘O povo não deveria gastar dinheiro com saúde, educação, habitação, transporte e nem alimentação. Isso é obrigação do governo.’
E você tinha ojeriza aos imperadores americanos que estão a mais de um século à nossa frente, não só em tecnologia, mas também em moralidade. Mas é claro que eles não são santos. Ninguém é santo neste planeta, nem o papa, nem o rabino que afanava gravatas de grife em Miami, nem o Dalai Lama e nem Madre Tereza. Você chegou a ouvir falar de suas ‘noites escuras’ quando, já na velhice, ela colocou em dúvida a existência de Deus? Oras, dirá você, ser ateia não a transforma numa pessoa menos caridosa. E você sempre teve razão: um ateu é muito mais útil que um religioso. Seu talento é proporcional à sua modéstia. Você nunca falou de si mesmo para ninguém. E quando descobri, por acaso, que você tem uma página no Facebook, ao contrário de muita gente de TV, jornal e revista que se acha uma celebridade, você jamais postou o que você fez, o que faz e o que vai fazer, jamais escreveu sobre tudo que você realizou na sua carreira de grande sucesso, jamais postou onde você esteve e onde estará, jamais disse quem você é. Você nunca foi aparecido, nem materialista, nem ambicioso. Nunca se vendeu por dinheiro. E deixou o estrelismo contagioso das grandes emissoras para ganhar menos e trabalhar em emissoras desconhecidas, como a TVT, seu penúltimo emprego e, antes de morrer, o SESC onde você estava realizando um projeto de música instrumental brasileira. Lembra-se quando, numa de nossas bebedeiras, lhe perguntei: ‘Vamos escrever um livro em parceria?’ E você, com aquele sorriso de um canto da boca, retrucou:
‘Alceu, você precisa parar de beber.’
Não sei se você referia-se somente à minha presunção ou à sua humildade também. Escrever um livro é tão fácil como juntar letrinhas, como você dizia. Difícil é ter uma grande ideia como Ulisses de James Joyce, A Clockwork Orange de Anthony Burguess, 2001: A Space Odyssey de Arthur Clarke, 12 Monkeys, filme  inspirado no curta-metragem francês La jetée, de Chris Marker.   Enfim, o fato é que já escrevi alguns livros que serão condensados num pretensiosao seriado que pretendo terminar, chamado ESPORA ORION. Um deles, chamado Vale Da Amoreira, é promissor. Inspirei-me numa de minhas experiências extrassensoriais, e reservei um lugar nele para você. O narrador diz que Tilly, personagem coadjuvante, conheceu você e ele lhe pôs o apelido de Mensageiro da Enganação. Isto não é uma crítica ou uma ofensa a você, mas apenas uma gozação, porque continuo sendo um gozador como você. Eu (e outras pessoas de meu convívio que você conheceu) achava engraçado o hábito que você adquiriu de marcar encontros, não comparecer e nem se justificar. Nunca  fiquei chateado com isso, apenas lamentava ter perdido mais uma oportunidade de desfrutar de sua boa companhia. A ideia para este apelido veio de um livro que li em inglês, chamado MESSENGERS OF DECEPTION, do cientista francês Jacques Vallée, com quem conversei na NASA nos EUA. Este livro foi mais tarde traduzido no Brasil com sua alcunha, MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO, e o achei apropriado para nós dois, porque somos todos ‘Deception Messengers’, ‘Midnight Ramblers’, mas não daqueles serial killers como os famosos ‘Boston Stranglers.’. Em todos os textos que escrevo sempre incluo uma música, porque, como você sabe, aquele grande filósofo que nós dois tanto admiramos escreveu que sem música a vida seria um erro. Por isso até hoje não entendo como os gregos da época clássica, do século de Péricles, escreviam coisas tão inteligentes sem poderem se inspirar nas músicas que temos hoje. Não é à toa que eles são considerados os mais inteligentes deste planeta, o berço de nossa civilização ocidental. Portanto, estou incluindo um vídeo de sua banda favorita, os Rolling Stones. A música que escolhi é de um show ao vivo quando eles estavam no auge no final de nossos gloriosos anos 60. Tenho certeza que você venderia sua alma ao diabo se ele pudesse te levar para assistir àquele show. Resolvi incluir uma outra música que você vai achar um pé no saco como a bossa nova é para mim. Ela não é muito boa, mas, enigmaticamente, ela traduziu meu estado de espírito enquanto escrevia este texto e me lembrava de nossos tempos juntos. Talvez ela seja apenas mais uma de minhas muitas carências. Mande um abraço aos nossos ídolos: os seus: Brian Jones e Jimi Hendrix; os meus Keith Moon e John Entwistle; e nossos unânimes: John Lennon e George Harrison. Até breve, se você ainda quiser voltar a ser meu amigo.
São Paulo, Setembro de 2014.


sábado, 16 de novembro de 2024

O ANO DO MACACO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Cito aqui um parágrafo da crônica ‘O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas’, de Marcos Augusto Gonçalves, publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 26 de Outubro de 2023: '‘A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki’'. Neste conto, escrito por Alceu Natali há muitos anos, ele ‘não acha que talvez’, mas afirma, categoricamente, que as duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki são, sem dúvida nenhuma, não apenas um crime de guerra, mas o maior genocídio já praticado na história da humanidade. E os americanos NUNCA foram levados a júri. O pior é o cinismo americano ao dizer que praticaram aquela atrocidade para encurtar a guerra e poupar vidas de seus heroicos soldados, e continuam, como diz Marcos Augusto Gonçalves, ‘'com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do "mundo livre". Somente em Hiroshima, das 150,000 pessoas que foram mortas, 95% eram mulheres e crianças! Os americanos queriam apenas testar os efeitos que uma arma nuclear causam ao ser humano. E conseguiram! Agora eles sabem quantas mulheres e crianças eles podem assassinar em massa! Há mais motivações desumanas e consequenciais horríveis dessa perversidade que os americanos varrem debaixo do tapete hipócrita da mentirosa e charlatã democracia que eles inventaram para os ingênuos. Muito bem, vou parar de dar spoilers sobre mais este conto de Alceu. Ainda não encontrei a palavra correta para definir esta experiência de Alceu. É uma mistura de sonho lúcido com viagem no tempo e com convergência de 3 conceitos humanos que não existem: presente, passado e futuro. 

Inglesa Luso-Chinesa 

28 de Outubro de 2023.


Estávamos na selva há quase dois meses, desde o começo de Dezembro, molhados das torrentes que não distinguiam o dia da noite, das águas encorpadas de barro dos rios que empastavam a roupa no corpo, o cabelo sob o capacete, cheirando a mofo. Estávamos esgotados, infectados e até mesmo imunizados por todos insetos da região que deviam nos identificar pelo tipo sanguíneo. Dormíamos poucas horas a cada dois, três dias. Eu ficava sempre olhando para o céu nublado esperando ver queima de fogos celebrando a passagem do ano. Quem sabe um de nossos espanadores passasse pela área cegando a escuridão com mil e quinhentas labaredas por minuto. Ou então umas de nossas mortes sussurrantes com suas enormes línguas de fogos em forma de leque que viajavam longe e deixavam rastros resplandecentes até desparecerem como estrelas cadentes, depois de, literalmente, dizimarem todas as formas de vida num raio de um km. Já devíamos estar no final de Janeiro e não vi nenhuma comemoração, nem do ano novo solar, nem do novo ano lunar. As nuvens que desaguavam estacionavam nas alturas e esperavam ver um espetáculo de artifícios pirotécnicos. Eu tinha cocaína e papelotes de maconha suficientes para mais umas duas semanas. Deviam faltar poucos quilômetros para chegarmos ao principal posto de comando. A mata fechada começava a se abrir, as árvores mais grossas espaçavam-se e bem lá no fundo do horizonte já se podia ver pequenos clarões de civilização pulsando por entre a vegetação. De repente, sofremos mais um daqueles ataques súbitos. Atiramo-nos ao chão e fizemos dos arbustos rasteiros trincheiras improvisadas. Não tínhamos nenhuma ideia de onde partiu o bombardeio. Estranho foi que este não era como as costumeiras investidas de nossos adversários e mais parecia uma  das nossas, como fogo amigo. Mas a prova de que não era foi a forma como fomos facilmente identificados naquele negrume e alvejados com precisão, com a certeza de que não estávamos sendo confundidos com os nossos inimigos. À noite, costumávamos varrer o perímetro com holofotes infravermelhos que nos permitiam identificar a localização exata dos nossos adversários sem que eles soubessem que haviam sido descobertos. Em seguida, os holofotes eram revertidos à luz visível, deixando nossas presas sob a mira implacável de nossos morteiros. Agora, estávamos na posição inversa. Eu via até mesmo holofotes sendo usados para rebater luz nas nuvens para melhorar a visão de patrulhas em terra e pelotões próximos utilizando telescópios. Eu me via cercado de claridades por todos os lados e as bombas que caiam sobre nossas cabeças sem parar transformavam aquele sedimento úmido, infestado, abafado e caliginoso no verdadeiro inferno do qual falavam-me quando era criança. O meu companheiro do lado esquerdo disse-me:
Temos que fazer alguma coisa rapidamente senão vamos morrer. Eu sei como sair daqui. Siga-me.
Ele falou-me com voz de superior, mas bem amistosa. Eu tremia de medo e agarrei-me ao uniforme daquele que parecia ser de patente mais alta e deixei-me ser arrastado por ele. Talvez só ele percebeu que todos estavam mortos e que sobraram só nós dois. Borrei as calças de pavor e não largava de meu companheiro. Rastejamos por quilômetros, noite adentro, feito répteis ainda não adaptados ao chão da floresta, nos esfolando, com bocas abertas e esbaforidas, engolindo mato e insetos e eu socando cocaína nas narinas. Os insetos também estavam mais preocupados em bater em retirada do que em fazer a habitual refeição noturna. O estouro dos foguetes impulsionava-os à nossa frente. Num dado momento, meu companheiro ergueu-se com serenidade. Ainda deitado, olhei para trás e percebi que não havia mais bolas de fogo no céu. Só ouvia a cantoria dos costumeiros noctâmbulos e famintos parasitas, agitados com  o atraso do jantar. Começamos a caminhar. Notei que a selva havia ficado para trás. Abrira-se à nossa frente uma enorme clareira, mas não era um vilarejo. Era uma imensa área desolada, com apenas um sinistro edifício bombardeado e abandonado. Meu companheiro fez sinal para que eu esperasse e, com cautela, olhando para os lados, aproximou-se furtivamente do prédio e, à sua entrada, deu sinal para que eu viesse e despareceu ao subir as escadas. Apertei os passos com as pernas bambas para alcançá-lo. Quando cheguei no topo do primeiro andar, surgiram dois cachorros dobermann atrás de mim, galgando dois degraus de cada vez, prontos para atacar-me. Eram bem mais velozes do que eu e iam devorar-me. Gritei. E o meu companheiro falou lá de cima
Feche a porta atrás de você.
E de fato havia portas de metal que separavam os andares. As duas feras, bravas, raspavam a porta, ensandecidas, com unhas ruidosas, como se soubessem que podiam abrir um buraco através dela. Continuei a subir. Percebi que as escadas eram feitas de metal sólido, com várias perfurações circulares que permitem enxergar através delas, como aquelas escadas e andaimes dentro de fábricas. Enquanto passava de um degrau para outro, sentia firmeza e segurança. Cheguei ao último andar. Um enorme salão vazio, sujo, com vários objetos quebrados e espalhados pelo chão. E lá estava meu companheiro, sentado no que sobrou do batente da janela, uma perna para fora, outra sobre o beiral e dobrada, servindo de apoio para seu cotovelo que levava a mão à cabeça de olhar perdido, estático, contemplando a paisagem. Assim que esbocei dirigir-lhe a palavra, ele saltou, assustado, levou o indicador aos lábios a  pedir-me silêncio, e apontou a metralhadora para a porta que dava acesso à escada. Ouvi passos acelerados e destemidos de quem sabe onde quer chegar. Bem à nossa frente despontou um jovem soldado, com menos de 20 anos, louro, uniforme intacto e limpo. Sorridente, mas respeitoso, ele bateu continência e disse:
Recruta apresentando-se ao comandante para ser levado ao front.
Descansar, recruta. Por que você quer ir ao front?
Senhor, meu avô morreu na primeira guerra mundial, meu pai na segunda e, seguindo a tradição da família, eu devo lutar até a morte nesta.
Está bem, amanhã cedo te levarei ao front. Descansar!
Obrigado, senhor!
Como se estivessem seguindo o script de um filme, cada um, naturalmente, procurou um canto para se recostar. Mantive-me de pé, aproximei-me do companheiro que passei a chamar de comandante, pois era clara sua ascendência sobre nós, mas ele antecipou-se às minhas perguntas.
Soldado, estamos cansados e precisamos dormir. Amanhã temos uma longa jornada. Temos que levantar cedo para levar este herói ao front e depois voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. Boa noite.
Eu deveria estar morto porque é impossível sobreviver a uma investida tão implacável como a desta noite. É impossível acreditar em tudo que ocorreu desde a ofensiva de nosso inimigo até chegarmos neste prédio. Se estou morto então sou um daqueles espíritos que, segundo os adeptos da vida após a morte, permanece no local de desencarne e segue vivendo normalmente. Será este também o caso daquele jovem herói e deste estranho comandante que continuam existindo sem saber que já morreram? Depois de tantos acontecimentos utópicos que vivenciamos não há nada mais quimérico do que este comandante planejar um retorno a este edifício para me mostrar algo que nunca vi antes. Pior do que morrer sem saber é sentir o gosto amargo de uma impensável derrota. Quando me alistei voluntariamente para esta guerra estava preparado para tudo, logicamente para uma vitória inapelável em primeiro lugar, mas não para morrer. Vim aqui para lutar pela liberdade dos povos, para evitar que um efeito dominó alastrasse o mal por toda uma região e a subjugasse. Meus governantes me passaram a certeza de que esta é uma guerra já vencida e que precisamos só de um pouco de tempo e paciência para voltarmos para casa com mais louros de nossos sucessivos triunfos. Foi a plena consciência de nossa esmagadora superioridade no mundo, comprovada pelos nossos êxitos em conflitos mundiais e regionais recentes, que levou a maioria de jovens como eu a se apresentar para servir minha nação por livre e espontânea vontade. Apesar de nossa supremacia, teremos baixas. Numa guerra sempre há baixas dos dois lados. As nossas serão mínimas. De acordo com meus superiores, bem menos de meio por cento retornará em caixões e no máximo dez por cento sofrerá ferimentos, graves e leves. Menos de meio por cento é um número desprezível, mas sempre rezei para não fazer parte dele. Seria o mesmo que ter a sorte de ganhar sozinho na loteria. Não desejo nem este azar nem esta sorte na vida. Estes dez por cento de inválidos me dão calafrios. É um percentual considerável. Uma em cada dez pessoas é canhota, e eu conheço muitos canhotos. De acordo com alguns pseudo cientistas, é de uma em dez as chances de eu estar sonhando neste momento. E se estes fanáticos por fantasias científicas estiverem certos? Posso estar inconsciente após ter sido gravemente ferido e tendo pesadelos. Se não estou morto e nem sonhando, então tudo isso se deve aos alucinógenos que tomo em grandes quantidades todos os dias. E hoje abusei na quantidade de tanto medo de morrer. Eles são imprescindíveis. No início me revoltei com a necessidade de ter que usá-los, mas hoje não mais suportaria estar aqui sem eles. Apesar de nossa determinação e valentia, os soldados,  recrutas e veteranos, receberam um arsenal de drogas para poder enfrentar o inimigo. Como pode uma superpotência como a nossa ter que tomar drogas para ter coragem de enfrentar nossos inimigos? Eles são pequenos e frágeis, ratos de esgotos que fazem tocas nas florestas tropicais e nos surpreendem com frequentes emboscadas. Eles são covardes. Não têm coragem de lutar em campo aberto como  nós. Poderíamos dar uma solução final a este paizinho, sair daqui e jogar bombas atômicas sobre eles, como já fizemos com outra nação. Fui para um dos cantos e me recostei. Não esperava dormir nesta noite. Minha adrenalina estava muita alta e meu coração batia forte. Estava extremamente aturdido e não atinava direito para o que estava acontecendo. Voltar para cá para ver algo que nuca vi? Depois de tudo pelo que passei, de tudo que vi, agora espero ver apenas o paraíso. A noite ainda não tinha terminado para mim. Na verdade, não tinha certeza se minha  vida ainda não tinha terminado também. Pela primeira vez estive frente a frente com a morte e, em virtude da sucessão de eventos misteriosos que me acompanharam até aqui, não sei se morri e estou em alguma outra dimensão, mas ainda preso à guerra, ou se escapei e estou delirando com o trauma de ter chegado tão próximo do fim, se estou sonhando ou se estou endoidecendo com uma overdose. Sentei-me num canto como fizeram os outros dois e eles já pareciam ter entrado em sono profundo em poucos minutos. O comandante tinha um sono sereno, mas um rosto sofrido e judiado, rosto de muitas guerras, longe de casa. De onde será que ele veio? Não conseguia dormir e continuei refletindo sobre tudo que aconteceu. Participei de muitas batalhas, sempre em posição de vantagem em relação ao inimigo, embora algumas vezes estivesse perto de ser atingido. Mas desta vez, nesta noite, fui surpreendido e completamente dominado pelo inimigo, à mercê dele, esperando morrer a qualquer instante. Meu pelotão todo foi impiedosamente dizimado neste ataque surpresa, exceto eu e este estranho soldado que fala e age como um oficial e que jamais tinha visto em toda minha companhia que se dividiu em três grupos rumo a diferentes posições estratégicas na mata. O horror da guerra esteve sempre presente em minha mente a cada segundo de nossas incursões pela selva, mesmo nas raras e poucas horas de sono, sempre atormentado por pesadelos fragmentados e assustadores. Quando a gente se vê em meio a um inferno como eu me vi nesta noite, cercado de explosões ensurdecedoras e intermitentes, você não espera outra coisa senão a morte. Não há tempo para rezar e você se despede rapidamente da família que nunca mais verá e se encolhe torcendo para que a morte seja bem rápida, com balas ou uma granada na cabeça. Os segundos que antecedem a morte parecem uma eternidade queimando numa fogueira medieval. Não há tempo e nem esperança por um milagre. Nem mesmo o desespero incontrolável traz à mente qualquer ideia de um possível milagre. Mas este portento surgiu na figura deste sinistro soldado que sabia como me tirar daquele martírio. Em meio ao pânico, você se agarra à menor possibilidade de sobreviver. E eu agarrei-me àquele desconhecido soldado. Mas como ele conhecia o caminho pela mata fechada, ainda mais se rastejando na escuridão? Como ele sabia como chegar a este prédio assombroso numa clareira tão distante e que lhe parecia tão familiar? E aqueles dois cães que me ameaçaram à entrada e, aparentemente, não importunaram o comandante? O que fazem dois dobermanns guardando um edifício abandonado? E este jovem recruta que surge misteriosamente do nada e sabe onde e a quem se apresentar para ser levado ao front? Nesta guerra não há front. Ela está em toda parte. Na selva, nos vilarejos e nas áreas urbanas. E o que dizer da estranha tranquilidade deste recinto e destes dois companheiros, especialmente do comandante, que não é, de fato, comandante do meu pelotão? Acabei vencido pelo cansaço e dormi com a última frase do comandante em minha mente: voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. O sol ainda não tinha nascido quando fui acordado com uma chacoalhada do comandante.
Levante-se, soldado, temos que partir agora.
Duvido que eu tenha dormido mais do que duas horas. No entanto, levantei com uma disposição de quem dormiu as 20 horas de um leão. O jovem herói esbanjava saúde e determinação e um enorme sorriso no rosto. Incontinenti, descemos as escadas até o térreo. Os dobermanns já não estavam lá. O comandante tomou um caminho deslumbrante. Uma larga trilha aberta no meio da mata e por onde se podia caminhar sem ser incomodado por ninguém e ainda poder admirar a linda flora que adornava os dois lados da rota pavimentada com terra macia. O comandante certamente lia pensamentos ,pois eu mal esbocei lhe falar e ele antecipou-se.
Soldado, deixe para conversar outra hora. A prioridade agora é levar este herói ao front. Temos algumas horas de uma árdua e longa caminhada.
Seguimos andando a passos acelerados como numa maratona. Eu devia estar cansado, mas estava em ótima forma e suportava muito bem o ritmo. E, estranhamente, não sentia falta das drogas nas quais estava viciado. Nenhum de nós tinha um relógio. Mas tive a nítida impressão de termos percorrido vários quilômetros, em, pelo menos umas duas horas. Logo avistei à nossa frente um lugar muito incomum. Não era uma pequena cidade, nem um povoado, nem um pequeno vilarejo. Parecia-se muito com aquele cenário de uma passagem da mitologia cristã onde uma multidão se aglomerava em torno do rio Jordão para ser batizada por João. Só que ali não havia um rio, nem homens. Só mulheres e crianças. O que causava esquisitice era um longo corredor com grades, dos lados e no teto, muito parecido com aqueles longos corredores em forma de jaulas de prisões, especialmente reservados às pessoas condenadas a pena capital para tomar um banho de sol no pátio, isoladas dos presos comuns para que elas não fossem tocadas. Começamos a atravessar este corredor. Dos dois lados muitas mulheres com crianças no colo vociferavam contra nós, aos gritos. Não era preciso entender o que elas diziam na língua estranha a mim. O ódio contra nós estava estampado em seus olhos. Ao final do corredor, paramos. O comandante disse ao jovem herói que ele estava entregue e lhe desejou boa sorte. O jovem loiro bateu continência todo feliz, nos deu as costas e se pôs a marchar para além daquele lugar onde havia somente mato, mais nada. Eu e o comandante voltamos pelo mesmo corredor, ouvimos os mesmos gritos de lamento e ira, e voltamos pelo mesmo caminho que nos trouxe até aqui. Sabendo que teríamos mais de duas horas de andança, eu não iria esperar chegar até aquele velho edifico sinistro para cobrar explicações do comandante.
Comandante, o que significa tudo isso?
Significa que esta guerra já está perdida e devemos nos retirar.
Perdida? Impossível! Estamos esmagando nossos inimigos Eles fogem de nós como ratos pelos esgotos. A nossa superioridade é flagrante. Eles só sabem nos tocaiar e sair correndo para dentro de suas tocas. Eles não aguentam nossos armamentos. Logo eles se renderão. Como pode o senhor dizer que perdemos esta guerra?
Soldado, torno a lhe dizer que esta guerra está perdida.
Então me explique como eles estão sucumbindo todos os dias aos nossos pesados armamentos, impondo-lhes grandes baixas?
Soldado, sobre este paizinho já foram despejadas oito milhões de toneladas de bombas. 4 vezes mais do que as despejadas na guerra mundial de décadas atrás. 80% caíram em zonas rurais, matando apenas civis, principalmente mulheres e crianças. Apenas 20% atingiram alvos militares. Estas bombas abriram cerca de dez milhões de crateras no solo deste paizinho. Além das  bombas, foram lançadas 400 mil toneladas de agentes químicos sobre vilarejos, indiscriminadamente. Mais um vez matado mais civis dos que solados. Além disso, foram lançados 80 milhões de litros de agentes químicos para devastar a natureza deste paizinho e que vai causar muitas deficiências de nascença nas futuras gerações. Estão sendo deixadas sob o solo deste paizinho quase quatro milhões de minas e cerca de 300 mil bombas que não explodiram, e juntas, estas minas e bombas irão matar cidadãos deste paizinho todos os dias, durante muitas décadas. Foram mortos cerca de 1 milhão de solados inimigos, mas o número de civis mortos, principalmente mulheres e crianças, é 5 vezes maior, 5 milhões de inocentes. Então, soldado, contra quem estamos lutando e quem estamos vencendo nesta guerra?
Comandante, como você sabe numa guerra baixas de civis é sempre inevitável e esta desproporção de baixas entre civis e militares deve-se a fato destes covardes esconderem-se entre civis para nos surpreender com emboscadas. Se quiséssemos, poderíamos simplesmente jogar uma bomba atômica sobre eles e isto não faria diferença nenhuma sobre o número de mortos civis e militares, bastando o fato de que teríamos posto um fim aos homens do mal.
Soldado, você é adepto do genocídio?
Genocídio? Do que você está falando comandante?
Não preciso explicar. Você sabe do que estou falando.
Espere um pouco, comandante. Aquelas duas bombas atômicas que lançamos no passado teve o objetivo de abreviar uma guerra sangrenta e poupar as vidas de milhares de nossos soldados. E surtiu efeito porque o inimigo logo se rendeu.
Soldado, você acha que aquelas duas cidades foram escolhidas aleatoriamente?
Elas foram escolhidas porque eram fontes de produção de armamentos de nossos inimigos e com as bombas nós cortamos o fornecimento de armas que os abasteciam e, no final das contas, elas serviram de avisos a eles sobre o que poderíamos fazer com o resto do país. Por isso a rendição veio em poucos dias.
Soldado, mais de 60 cidades daquele pais foram bombardeadas com armas convencionais e apenas duas  foram deixadas intactas. Você sabe porquê?
Porque eram justamente estas duas cidades que produziam armas e para destruí-las por completo era preciso lançar bombas atômicas sobre elas.
Soldado, elas foram deixadas intactas apenas para medir o poder de destruição de seres humanos e suas habitações por uma bomba atômica. Se estas duas cidades tivessem sido bombardeadas por armas convencionais como as outras 60 não seria possível diferenciar que estrago era causado por armas convencionais e armas nucleares. Todos os civis que morreram nestas duas cidades, principalmente mulheres e crianças, deram aos idealizadores deste holocausto a resposta que eles procuravam.
No momento que ia refutar o comandante, ele me interrompeu e me pediu silêncio. Estávamos nos aproximando do edifico. Foi muito interessante o fato de termos uma breve conversa e não sentir o tempo passar tão rápido. Estranhamente, ele procedeu como na noite anterior. Pediu para eu esperar e foi sozinho até o edifício. Chegando lá ele fez um sinal para que eu viesse e, sem seguida, subiu as escadas. Quando cheguei à porta do edifício não vi os dois dobermanns. Subi tranquilamente e ao chegar ao salão no último andar, o comandante estava sentado naquela mesma janela e na mesma posição da noite passada. Quando aproximei-me dele ele fez algo inesperado e incrível. Saltou da janela para cometer suicídio. Mas ele não caiu. Flutuava no ar e ainda me convidou para saltar. Loucura total. Neste momento, pensei comigo: quer saber de uma coisa, devo estar morto mesmo e se eu saltar não tenho mais nada a perder. Então saltei, e flutuei. O comandante começou a voar e pediu-me para acompanhá-lo. Voávamos sem nenhuma resistência do ar. Uma suave brisa nos envolvia e nos acariciava da cabeça aos pés, como se estivéssemos dentro de uma bolha tão aconchegante como estar debaixo de lençóis acolhedores na noite acordada e calada. Não ouvia-se qualquer barulho. Nem de vento, nem de animais noturnos, nem de vida. Ouvia-se o som do silêncio absoluto sob a luz de um firmamento mais branco que negro e de uma lua maior que a cheia que nos guiavam através de um imenso tapete verde-escuro de vegetação abundante, salpicada por luzes tênues, amareladas, parecendo velas com chamas dançantes e bruxuleantes.
Comandante, estou surpreso. Não vejo nenhum sinal de guerra!
Você não surpreende-se por estar voando, mas admira-se por não ver uma guerra onde deveria haver uma.
O comandante imprimiu um pouco mais de velocidade ao voo e começou a assobiar uma melodia desconhecida. O som de seu sibilo chegava-me aos ouvidos em forma de palavras:
Nossos ascendentes são capazes de entoar hinos que sensibilizam os corações dos anjos. Eles cantam em seus lares e em terras estrangeiras, mas não permitem que seus habitantes os ouçam. Nós temos a vida que pedimos a Deus, mas sacrificamos parte dela para defender os nossos valores e os impomos a gente que os estranham. Dividimos nossa felicidade somente entre nossos pares, mas, mesmo entre nós, os mais fracos ficam com a menor parte dela. Nós oramos a Deus para que nos ajude a derrotar nossos adversários e a estes Deus reza para que não esmoreçam. Nós temos Deus de nosso lado e nossos inimigos do lado do mal. Eles não conseguem encontrar a paz entre seus iguais e nós queremos subtrair-lhes até suas últimas lágrimas de dor. Nesta luta desigual, Deus sente-se o maior de todos os perdedores. Só são capazes de perceber isso aqueles que nada Lhe pediram e estes são os verdadeiros vencedores.
De repente, o comandante começou a descer. E eu o segui sem vacilar. Fizemos um voo rasante e pairamos alguns metros acima de uma daquelas luzes cor de ouro velho. Ali havia uma choupana, abrigo de uma família, que reunia-se ao ar livre. Pai, mãe e filha, sentados, de mãos dadas, formando um círculo em torno daquela luminosidade áurea e quase divina. A mesma sublime mudez que acompanhou nosso voo também permeava aquele ambiente afetuoso, e eu esperava ouvi-los falar, ou, sussurrar, ou ouvir seus corações baterem. No entanto, embora muda, vida palpitante espalhava-se por toda parte e o que se ouvia era a harmonia e a paz que emanavam dos pensamentos daquelas criaturas de olhos puxados refletindo o brilho dos astros, tão naturalmente quanto nosso ato de respirar, a todo instante, a atmosfera que nos circunda, sem dar-nos conta.
Meu companheiro arremeteu e eu acelerei para acompanhá-lo.
Temos que voltar. Vou levá-lo para casa.
Minha casa. Por quê?
Meu companheiro sinalizou que deveríamos nos manter calados porque tínhamos uma longa viagem pela frente. Depois de um tempo imponderável, avistei uma enorme cidade, iluminada, que parecia-me familiar Meu companheiro puxou-me pelo braço e aterrissamos no meio dos prédios.
Você conhece este lugar?
Claro! Este é o marco zero de minha cidade!
Você sabe como voltar para casa daqui?
Claro. Logo ali tem um ponto de uma linha de ônibus que vai direto para meu bairro.
Meu companheiro disse adeus e preparou-se para alçar voo.
Mas, o que significa toda esta experiência que tivemos? Qual é a lógica de tudo isso? Quem é você?
Significados, identidades e coerências não têm importância, mas a experiência sim. Você a teve e é só isso o que tem valor.
Ele começou a afastar-se de mim e, lentamente, vi minha mão apartar-se da dele. Enquanto ela ainda pendurava-se em um de seus dedos e conformado com o fato de que ele jamais iria desvendar-me o mistério destas duas noites, resignado, despedi-me me dele.
Sabe, comandante, eu não estou preocupado se estou vivo ou morto. Sinto, no meu íntimo, que continuarei dormindo, sonhando e acordando todos os dias. Só tenho medo de uma coisa: de um dia acordar no meio de um inferno como o da noite passada e não ter ao meu lado alguém como você para me proteger.
Pela primeira vez o comandante falou-me olhando nos meus  olhos.
Aconchegue-se em meus braços, soldadinho, como um passarinho em seu ninho quentinho. Feche estes olhos maravilhados, solte de meu dedo esta mãozinha e repouse esta cabecinha cansada. Esta noite você vai dormir em paz. Nenhum mal perturbará seu sono. Não se  assuste com os sons que você ouvir. Alguns são apenas folhas de árvores levadas pela brisa de encontro à porta de sua casa. Outros, os murmúrios do mar, são apenas ondas solitárias lavando a praia. Você continuará sonhando como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos. Seu rosto resplandece sob o olhar do seu anjo que o assiste do alto. Seu amor manifesta-se em mim, desperta a esperança e faz jorrar alegria. Seu anjo desce e nos envolve com sua paz celestial.. Agora, soldadinho, é você quem me levará até o lugar do qual Eu gritei para ele esperar e ele se deteve a um metro do chão. Mais uma vez, ele antecipou-se às minhas perguntas.
Você não precisa de respostas para todas estas perguntas. Tudo o que você precisava ver e saber eu te mostrei esta noite.
É só isso que você tem a me dizer?
Sim. Não se preocupe. Você nunca mais me verá. Não sou seu anjo da guarda e nem aquele coelho enforcado na maçaneta da sua porta que lhe causava terror noturno na infância.
Você não pode, ao menos, dizer seu nome?
Nomes não são importantes.

EPÍLOGO

Estou no ônibus a caminho de casa, A saudade é imensa, O medo também, Não sei se a Gwen ainda me espera, Ou se me esqueceu para sempre e já está com outro, Se eu tiver a sorte de ainda encontrá-la, Será impossível fazê-la acreditar no que me aconteceu, Estou voltando como queria, Vivo, Sem mutilações, Mas não da maneira que esperava, Tudo é real, Mas não deveria ser, Deve passar da meia-noite, As ruas são as mesmas de sempre, O caminho é conhecido, Tudo é familiar, As poucas pessoas que viajam são verdadeiras, Uma delas tem um pequeno rádio junto ao ouvido e conversa com ele, Esta estranheza me fez lembrar quando entrei no ônibus, Na hora de pagar me dei conta que não tinha dinheiro e nem documento, Só meu uniforme, Quando tentei me explicar com o cobrador, Ele acenou com a cabeça pedindo-me para passar, Mas insisti em me justificar, E ele apenas respondeu que soldado que luta pela pátria não paga, Então perguntei-lhe como ele sabia que eu voltava de uma guerra, Ele limitou-se a dizer que eu sou um homem de sorte, Um espírito de muita luz, Retruquei dizendo que isso não era uma resposta à minha pergunta e que, Além do mais, Não lutei pelo meu país, Mas por um pais estrangeiro, E isto está errado, O cobrador respondeu que errado é matar civis, Mulheres e crianças, Mas eu matei soldados, Ele sorriu e acrescentou que o mundo está se matando todos os dias, Falei-lhe sobre minha preocupação, De minha mulher não saber onde estive, De achar que eu a abandonei, Porque já se passaram  muitos anos, O cobrador acrescentou que o que fiz não é abandono, Mas uma transcendência, Transcendência? O que ele quer dizer com isso? Perguntei-lhe se eu estava sonhando, Ele estendeu-me a mão e eu a apertei, Senti-a, Em seguida ele tirou sua carteira do bolso, E me mostrou uma foto de sua mulher e filhos, Eles estão dormindo agora, E minha esposa me aguarda sob lençóis quentes, E a sua também, Como você pode ter tanta certeza disso? Você não me conhece, Nem minha esposa, Não é preciso conhecer, Você não conhece a pessoa que te trouxe de volta, Mas acreditou nela, E confiou seu retorno a ela, Mas ela é tão estranha como você é para mim, É estranho este ônibus estar te levando para casa? Não! Qual é seu nome? Nomes não são importantes, Mas todo mundo fala seu nome quando se apresenta, O meu é AustMathr, E o seu? Homônimo, Você também se chama AustMathr? É coincidência demais! Meu nome não é comum, Não! Saiba que laço quer dizer laçada, E lasso quer dizer cansado, Entendi, E como se escreve seu nome? Como você quiser, Deus, Por exemplo, Mas Deus não é homônimo de AustMathr! Deus é homônimo do homem, Você está me dizendo que é Deus? Não, Não estou, Então por que você disse que seu nome é Deus? Eu não disse que meu nome é Deus, Então por que mencionou Deus como exemplo? Porque o homem inventou Deus, Todos nós somos deuses, Se eu sou Deus e AustMathr, Um soldado, Você é Deus e quem mais? Eu sou Deus e o cobrador deste ônibus, Acho que agora você está brincando comigo, Não quer dizer seu nome por quê? Quando você chegar em casa e contar à sua esposa tudo que lhe aconteceu você acha que ela vai pensar que você está brincando? Como posso saber? Nem sei se vou encontrá-la? Quer saber quando algo é brincadeira e quando não é? Sim, Como você chegou na cidade? Voando! Você está brincando comigo? Não, Não estou, Juro por Deus que cheguei voando! É por isso que acho que estou sonhando, A gente só voa em sonhos! Se você acha que está sonhando, Então continue sonhando, Sonhar é bom! Mas enquanto estive na guerra tudo era real, Quase morri durante um ataque surpresa do inimigo, Um soldado sinistro, Aparentemente de patente superior, Me salvou, E a partir daí tudo ficou esquisito, Ele me disse que havíamos perdido a guerra e que iria me trazer para casa, E o problema é que ele me trouxe de volta voando, Fora isso, Tudo parecia real, Lá no campo de batalha e agora aqui na minha cidade, Mas não deveria, O que é mais importante para você? Saber meu nome ou descobrir se você está sonhando ou não? É claro que preciso saber se continuo sonhando, Então prove esta barra de chocolate, Ela é real, E saborosa, Não? Sim, Você tem razão, Se você quiser mais uma prova, Te levo para minha casa, Acordo toda a minha família, E depois podemos ir à sua casa para apresentar minha família à sua mulher e marcamos um dia para jantarmos juntos, Meu turno acaba em uma hora, Quer ir? Não, Obrigado, Preciso ir direto para minha casa, Se eu encontrar minha mulher e tudo mais no devido lugar, Então acreditarei que não estou mais sonhando, Olha, Este é meu ponto, E minha casa fica a duas quadras daqui, Vou descer agora, Foi bom conversar com você, Mas não pense que me engano facilmente, Você não é um simples cobrador e não está aqui por acaso, Tenho outras prioridades agora, Mas um dia vou descobrir quem você é, Conheço esta linha de ônibus e sei onde fica a garagem de onde saem todos os veículos, Ele sorriu e acrescentou que todos nós estamos aqui por acaso, Me chamou de soldadinho, Como aquele desconhecido comandante que me tirou daquele inferno pelos ares, E desejou-me boa sorte, E à minha mulher também, Cheguei em casa, Graças a Deus tudo é real! É minha casa mesmo! Não estou sonhando! Mas a porta não está trancada, Isto não é normal, Minha mulher jamais deixaria a porta destrancada numa cidade tão perigosa como esta, Entrei, Subi até o quarto, Meu coração disparou, Lá estava ela dormindo serenamente, Deitei-me ao lado dela,  Cobri-me com o lençol, E chamei-a silenciosamente, Querida! Aí que susto! Meu Deus, Ainda bem que você me acordou, Você me tirou de um pesadelo horrível que parecia uma eternidade! Eu estava emocionado, Quase chorando, Tudo estava normal, Nada havia mudado, Que pesadelo, Querida? Meu amor, Você não vai acreditar, Sonhei que você decidiu entrar numa guerra, Não pelo nosso país, Mas por um país estrangeiro contra outro estrangeiro, Não entendi porque você fez isso, Você disse que voltaria logo e disse adeus, Mas passaram-se anos, Não tinha nenhuma notícia sua, Você não me escrevia, E nem sabia em que guerra você estava, Procurei amigos e perguntei-lhes se eles sabiam onde poderia estar ocorrendo uma guerra, E eles me disseram que havia um guerra em outro continente bem longe do nosso, E que já durava muitos anos, Me deram os nomes dos países envolvidos, Fui na embaixada dos dois, Dei seu nome a eles, Mas nenhum deles tinha qualquer registro seu como soldado servindo seus países, E acharam estranho eu procurar por você junto a eles já que você não é da mesma nacionalidade, A partir daí todos nossos amigos e parentes se mobilizaram para saber de seu paradeiro, E eu orava a Deus todas as noites, Por que ele fez isso? O que aconteceu com ele? Por favor, Meu Deus, Traga meu marido de volta para casa! Neste momento, Surgiu um homem alto e forte, De olhos penetrantes, Não se preocupe senhora, Seu marido está são e salvo, Eu o tirei da guerra, Trouxe-o para cá, E coloquei-o num ônibus, Ele está a caminho de casa, Logo ele estará aqui, Quem é o senhor, Deus? Sou a transcendência, Transcendência? O que o senhor quer dizer com isso? Sou um dos atributos do homem, Que lhe ressaltam a superioridade em relação a todas as criaturas irracionais do planeta, Mas só Deus tem esses atributos! Todos nós somos deuses, senhora, Me desculpe, Mas o senhor está blasfemando, A senhora pediu ajuda a Deus e ela já está a caminho, Agora preciso ir, Seu marido logo chegará e vai te tirar deste pesadelo, Ele é um espírito de muita luz, Um soldadinho de muita sorte, Qual é seu nome, senhor? Nomes não são importantes, senhora! Então, Meu amor, Neste exato momento você me chamou e me acordou, Não é incrível? Eu estava sem palavras, E sabia que iria passar o resto de minha vida refletindo sobre tudo o que me aconteceu e porquê, Estava um pouco aliviado também, Porque tudo continuava normal e eu não iria precisar explicar tudo à minha esposa, Mas de repente ela exclamou, Meu amor, Por que você tirou o pijama e vestiu este uniforme de soldado?