sábado, 25 de maio de 2024

BANHO DE CIVILIZAÇÃO

Texto de autoria de Austmathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Muita gente desinformTexto de autoria de Austmathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98ada diz que Londres é uma cidade chata e arrogante. Esta não parecia ser a opinião do ex-presidente Jânio Quadros, tão inteligente quanto matusquela. O homem público ciclotímico que condecorou Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, renunciou à presidência com pouco menos de sete meses de governo, teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar em 1964, e curtiu um ostracismo grego de 10 anos. Regressou em 1978 e elegeu-se prefeito de São Paulo em 1985. O homem dos factoides mediáticos, pendurou, literalmente, as chuteiras na porta do gabinete da prefeitura em 1986 e faleceu em 1992. Jânio tinha fama de cachaceiro – bebia pinga pura durante seus comícios em suas campanhas a cargos públicos -, adquiriu o hábito de Winston Churchill de se comunicar com seus ministros através de bilhetinhos, e, entre muitas de suas memoráveis frases, algumas eram sarcásticas e hilárias - bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia. Este culto biriteiro era conhecido também por fazer constantes viagens ao exterior e, curiosamente, sempre fazia uma parada em Londres antes do seu retorno. Certa vez um jornalista perguntou-lhe por que ele sempre visitava a capital inglesa por último. A resposta foi contundente e enfática: Porque preciso tomar um banho de civilização antes de voltar ao Brasil. Na escola aprendemos que a Mesopotâmia é o berço da civilização do mundo, e que a herança cultural e moral do ocidente deve-se à Grécia. E onde Londres entra nas sentenças  dos oráculos? Eu iria descobrir nos anos 90, quando precisei fazer inúmeras viagens a países europeus, exceto à Inglaterra. Adotei os costumes do homem da vassourinha. Ao final de cada longa jornada de trabalho, arrancava terno e gravata, vestia jeans, camiseta e tênis, e ficava até três dias vadiando pelas ruas e metrôs da Londinium fundada pelos romanos na década de 60 de dois mil anos atrás. Não demorei mais que um dia para descobrir que em todo canto da cidade se respirava cultura, civilidade, educação e disciplina. Esqueçam os pontos turísticos como o Big Ben, o Palácio de Buckingham, o Museu de Cera de Madame Tussauds, a Torre que decepava cabeças de inimigos do rei e outros que só servem aos colecionadores de fotos para serem exibidas aos amigos. Você só não deve deixar de visitar o Museu Britânico, onde se encontra o Livro dos Mortos dos Egípcios, escrito em 1300 a.e.c., e a Carta Magna de 1215, andar pela faixa de pedestres na Abbey Road, em frente aos estúdios da Apple, onde os Beatles tiraram aquela clássica e lendária foto, e visitar a Carnaby Street, ponto de encontro dos gênios psicodélicos que transformaram Londres no centro da efervescência cultural e artística do mundo e a cidade mais Avant-Garde do planeta. A Inglaterra não era assim. Conservadora e puritana, até os anos 50 o homossexualismo masculino era punido com castração química. Tudo mudou com os Beatles no início dos anos 60. Aliás, os Beatles e seus pares britânicos da música mudaram o mundo. Na minha busca por acomodações, descobri que os preços de estadia não eram muito civilizados. Mas quem tem boca vai a Roma e entra no banheiro do papa no Vaticano. Papeando com gente de vários estabelecimentos comerciais e hotéis, acabei recebendo a indicação de uma pensão familiar, na Earl´s Court Garden, que ficava a algumas quadras da avenida e da estação de metrô homônimas. Para lá me encaminhei por volta das 21:00 horas. As ruas estavam completamente desertas. Enquanto as áreas mais centrais da cidade fervilhavam com shows de rock em várias casas noturnas, o pessoal da periferia se recolhia bem cedo. Estava com dificuldades para encontrar a pensão. Então, algo impensável no Brasil aconteceu. Interpelei uma jovem que vinha pela calçada em minha direção. Ela, educadamente, levou-me de volta à esquina de onde viera, e mostrou que a pensão ficava do lado direito da segunda quadra mais adiante. Lá chegando, fui acolhido com extrema hospitalidade. E aqui faço uma homenagem poética a este momento prazeroso que não repete aos 67 anos o doce começo da vida à aventura aos 40: A estação me recebe como as andaluzas em flor, Do outro lado da avenida, As ruas estão desertas, A noite caída tarde ainda em baixas e boas horas, Ao longo de uma aleia de buxos aparada e de cheirosos canteiros de alfazema, Lá adiante, a lividez do luar ilumina vagamente tudo à volta e meu passo até uma alemoa que, Gentilmente, Mostra-me uma alameda  de casas simétricas, Feita milharal, Levando-me ao casarão plantado numa das duas estreitas vias transversais, Separadas pelo elegante jardim quadrilátero, Centralizado e cercado de grades. A pensão me recebe como em meu lar, Minha casa, Meus amores, Minhas flores dos trópicos, Cá nesta terra fria e acolhedora, Como a cama aconchegante, O sorriso aberto e familiar do café da manhã tão rico e caseiro, Os primeiros raios de sol iluminam esta parte da superfície terrestre sob sombraO Earl´s Court Garden é um daqueles típicos quadriláteros de sobrados simétricos, com um jardim central, ao qual só os moradores locais têm acesso, exatamente como se vê no filme UM LUGAR CHAMADO NOTTING HILL. A recepção fechava às 22:00 horas, e só abria às 07:00 horas. Neste intervalo, só adentrava quem lá estivesse hospedado e tivesse a chave da porta de entrada. Certa vez, lá cheguei cedo demais, por volta da 06:00 horas. Eu carregava duas malas pesadas, uma contendo material de trabalho, outra com artigos pessoais. Larguei as duas na calçada, na frente da porta, e fui fazer hora num barzinho na Earl´s Court Avenue. Ao retornar às 07:00 horas, você não precisa me perguntar se as malas permaneciam no mesmo lugar. Talvez, nos dias atuais, elas fossem tomadas como suspeitas bombas terroristas e recolhidas. Londres é famosa pelas chuvas que caem quase todos os dias. Por isso, o inglês é muito precavido. Sempre sai de casa com um guarda-chuva. Eu não me preocupava com isso. Naquela época eu já não usava relógio nem cueca. A chuva podia se demorar por apenas meia hora, mas sempre vinha, de surpresa, a qualquer hora. Logicamente, Jânio não se referia às águas que desabavam das nuvens quando falava sobre o banho de civilização londrina. Eu preferia pensar nas palavras de John Lennon em sua música pelos Beatles chamada I´M THE WALRUS: sentado num jardim inglês, esperando pelo sol, e se o sol não vem, você pega um bronzeado de pé na chuva inglesa. Eu preferia esperar a chuva passar, sentado na calçada de um boteco da Oxford, saboreando um sanduíche, regado à Coca-Cola, e olhando o espetacular mulheril desfilando de sombrinhas. Houve uma ocasião em que a chuva parou de repente, paguei a conta e não esperei pelo troco. Atravessei a avenida e entrei numa loja de CDs do outro lado. O garçom veio atrás de mim e me devolveu o troco em moedas. Quando se fala em arte e cultura em Londres, as primeiras palavras que vêm à mente são música e literatura. É covardia falar sobre a música popular britânica, a melhor de todos os tempos. Consternado fiquei de jamais poder ver nenhuma das muitas e melhores bandas do mundo ao vivo porque elas só tocavam em grandes estádios e os ingressos sempre eram, e continuam sendo, esgotados com 4 a 6 meses de antecedência - só pude assistir a algumas delas passando dos 70 aqui no nosso inferno. Restava-me, então, me extasiar com as bandas amadoras que tocavam ao vivo todas as noites em dezenas de casas de show, esperançosas de serem descobertas por um Brian Epstein que as levassem a uma gravadora para lançar o primeiro disco e ter exposição no rádio. E cá entre nós, estes principiantes eram bem melhores do que muitos dos chamados músicos profissionais. Como diziam Keith e Jagger na música STREET FIGHTING MAN: o que pode fazer um garoto pobre, a não ser tocar numa banda de rock. Eu era pobre - e ainda sou - e não tinha talento para tocar numa banda. Então me lambuzava nas mega lojas de CDs. Só a fileira de prateleiras contendo artistas com a letra ´A´ na HMV era maior do que a maior loja brasileira de CDs. Nas minhas dezenas de passagens por Londres, minha obsessão sempre foi a busca por cultura. Na livraria Foyles da Oxford, eu perambulava pelo departamento de história. Encontrei um interessante livro de mitologia e folclore nórdicos. Folhei o livro e logo reparei que ao lado dele havia outros sobre o mesmo tema. Olhei o preço e não acreditei: 1,99 libras(R$ 10 na cotação de hoje) por um livro com cerca de 500 páginas. Perguntei à vendedora se o preço estava correto. Sim, estava. O baixo preço não era uma promoção, mas uma simples liquidação, porque a editora estava prestes a lançar uma nova coleção revisada da coletânea. Não tive dúvidas: comprei e enciclopédia de 16 livros contendo a mitologia, folclore, religião e costumes de todas as civilizações da humanidade. Um verdadeiro tesouro por apenas R$ 160,00. Nesta época de muitas idas a Londres eu estava finalizando meus estudos sobre mitologia cristã, e costumava comprar muitos livros acadêmicos sobre o assunto. Na estação de metrô Marylebone há uma igreja cristã com sua livraria chamada SPCK.  Nos fundos vendem-se livros usados e raros. Eu tive um enorme prazer ao procurar e lá encontrar a primeira edição, traduzida para o inglês em 1904, do livro UMA INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO, escrito em 1894, por Adolf Julicher, um alemão catedrático e teólogo, um acadêmico especializado em estudos científicos da mitologia cristã, fazendo uso da Crítica Literária e da Forma. Na parte da frente vendem-se livros novos, predominantemente religiosos, muitos dos quais desafiavam a própria crença cristã. O polêmico pau d'água que proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, proibiu as rinhas de galo, o lança-perfume em bailes de carnaval, e fechou os oito cinemas que iriam exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, em 1989, por considerá-lo desrespeitoso à fé cristã, ficaria escandalizado com sua Londres libertina se lesse um livro que comprei na SPCK, chamado JESUS E A POLÍTICA DOS SEUS DIAS, uma antologia de ensaios diversos, um dos quais descreve Jesus como um agente político, infiltrado na Palestina, a serviço dos romanos. Logicamente, o autor desse ensaio é tão porra loca quanto Jânio foi. Nas minhas andanças por Londres, eu aproveitava para comprar roupas masculinas e femininas dos anos 60 em butiques e lojinhas de esquina descoladas. Em Londres, você pagava – e deve ainda pagar – apenas 7% de imposto sobre tudo que você compra. Você pode ter o imposto estornado se o produto sair da Inglaterra. O logista preenche um formulário, descrevendo os produtos e os preços. Basta apresentar este formulário e os produtos que você comprou na alfândega no aeroporto e você recebe, na hora, a devolução dos impostos em dinheiro. Uma loja onde comprei muitas roupas não tinha o formulário. O logista me pediu para voltar na manhã seguinte. Não era possível, pois eu estava embarcando para o Brasil naquela noite. Então ele me pediu meu endereço no Brasil para estornar o imposto. Não acreditei nesta história. Dei meu endereço só por educação. Duas semanas após ter voltado ao Brasil, recebi pelo correio, da Inglaterra, um envelope contendo o formulário e os impostos em dinheiro, em notas de libras esterlinas. Estive em Londres tantas vezes e lá tomei tantos banhos de civilização que, às vezes, acabava esquecendo que sou brasileiro, vivo no paraíso dos ladrões e tomo banho de corrupção todos os dias. Meu asseio físico e moral continua quase imaculado. 

O ANO DO MACACO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Cito aqui um parágrafo da crônica ‘O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas’, de Marcos Augusto Gonçalves, publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 26 de Outubro de 2023: '‘A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki’'. Neste conto, escrito por AustMathr há muitos anos, ele ‘não acha que talvez’, mas afirma, categoricamente, que as duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki são, sem dúvida nenhuma, não apenas um crime de guerra, mas o maior genocídio já praticado na história da humanidade. E os americanos NUNCA foram levados a júri. O pior é o cinismo americano ao dizer que praticaram aquela atrocidade para encurtar a guerra e poupar vidas de seus heroicos soldados, e continuam, como diz Marcos Augusto Gonçalves, ‘'com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do "mundo livre". Somente em Hiroshima, das 150,000 pessoas que foram mortas, 95% eram mulheres e crianças! Os americanos queriam apenas testar os efeitos que uma arma nuclear causam ao ser humano. E conseguiram! Agora eles sabem quantas mulheres e crianças eles podem assassinar em massa! Há mais motivações desumanas e consequenciais horríveis dessa perversidade que os americanos varrem debaixo do tapete hipócrita da mentirosa e charlatã democracia que eles inventaram para os ingênuos. Muito bem, vou parar de dar spoilers sobre mais este conto de AustMathr. Ainda não encontrei a palavra correta para definir esta experiência de AustMathr. É uma mistura de sonho lúcido com viagem no tempo e com convergência de 3 conceitos humanos que não existem: presente, passado e futuro. 

Inglesa Luso-Chinesa 

28 de Outubro de 2023.


Estávamos na selva há quase dois meses, desde o começo de Dezembro, molhados das torrentes que não distinguiam o dia da noite, das águas encorpadas de barro dos rios que empastavam a roupa no corpo, o cabelo sob o capacete, cheirando a mofo. Estávamos esgotados, infectados e até mesmo imunizados por todos insetos da região que deviam nos identificar pelo tipo sanguíneo. Dormíamos poucas horas a cada dois, três dias. Eu ficava sempre olhando para o céu nublado esperando ver queima de fogos celebrando a passagem do ano. Quem sabe um de nossos espanadores passasse pela área cegando a escuridão com mil e quinhentas labaredas por minuto. Ou então umas de nossas mortes sussurrantes com suas enormes línguas de fogos em forma de leque que viajavam longe e deixavam rastros resplandecentes até desparecerem como estrelas cadentes, depois de, literalmente, dizimarem todas as formas de vida num raio de um km. Já devíamos estar no final de Janeiro e não vi nenhuma comemoração, nem do ano novo solar, nem do novo ano lunar. As nuvens que desaguavam estacionavam nas alturas e esperavam ver um espetáculo de artifícios pirotécnicos. Eu tinha cocaína e papelotes de maconha suficientes para mais umas duas semanas. Deviam faltar poucos quilômetros para chegarmos ao principal posto de comando. A mata fechada começava a se abrir, as árvores mais grossas espaçavam-se e bem lá no fundo do horizonte já se podia ver pequenos clarões de civilização pulsando por entre a vegetação. De repente, sofremos mais um daqueles ataques súbitos. Atiramo-nos ao chão e fizemos dos arbustos rasteiros trincheiras improvisadas. Não tínhamos nenhuma ideia de onde partiu o bombardeio. Estranho foi que este não era como as costumeiras investidas de nossos adversários e mais parecia uma  das nossas, como fogo amigo. Mas a prova de que não era foi a forma como fomos facilmente identificados naquele negrume e alvejados com precisão, com a certeza de que não estávamos sendo confundidos com os nossos inimigos. À noite, costumávamos varrer o perímetro com holofotes infravermelhos que nos permitiam identificar a localização exata dos nossos adversários sem que eles soubessem que haviam sido descobertos. Em seguida, os holofotes eram revertidos à luz visível, deixando nossas presas sob a mira implacável de nossos morteiros. Agora, estávamos na posição inversa. Eu via até mesmo holofotes sendo usados para rebater luz nas nuvens para melhorar a visão de patrulhas em terra e pelotões próximos utilizando telescópios. Eu me via cercado de claridades por todos os lados e as bombas que caiam sobre nossas cabeças sem parar transformavam aquele sedimento úmido, infestado, abafado e caliginoso no verdadeiro inferno do qual falavam-me quando era criança. O meu companheiro do lado esquerdo disse-me:
Temos que fazer alguma coisa rapidamente senão vamos morrer. Eu sei como sair daqui. Siga-me.
Ele falou-me com voz de superior, mas bem amistosa. Eu tremia de medo e agarrei-me ao uniforme daquele que parecia ser de patente mais alta e deixei-me ser arrastado por ele. Talvez só ele percebeu que todos estavam mortos e que sobraram só nós dois. Borrei as calças de pavor e não largava de meu companheiro. Rastejamos por quilômetros, noite adentro, feito répteis ainda não adaptados ao chão da floresta, nos esfolando, com bocas abertas e esbaforidas, engolindo mato e insetos e eu socando cocaína nas narinas. Os insetos também estavam mais preocupados em bater em retirada do que em fazer a habitual refeição noturna. O estouro dos foguetes impulsionava-os à nossa frente. Num dado momento, meu companheiro ergueu-se com serenidade. Ainda deitado, olhei para trás e percebi que não havia mais bolas de fogo no céu. Só ouvia a cantoria dos costumeiros noctâmbulos e famintos parasitas, agitados com  o atraso do jantar. Começamos a caminhar. Notei que a selva havia ficado para trás. Abrira-se à nossa frente uma enorme clareira, mas não era um vilarejo. Era uma imensa área desolada, com apenas um sinistro edifício bombardeado e abandonado. Meu companheiro fez sinal para que eu esperasse e, com cautela, olhando para os lados, aproximou-se furtivamente do prédio e, à sua entrada, deu sinal para que eu viesse e despareceu ao subir as escadas. Apertei os passos com as pernas bambas para alcançá-lo. Quando cheguei no topo do primeiro andar, surgiram dois cachorros dobermann atrás de mim, galgando dois degraus de cada vez, prontos para atacar-me. Eram bem mais velozes do que eu e iam devorar-me. Gritei. E o meu companheiro falou lá de cima
Feche a porta atrás de você.
E de fato havia portas de metal que separavam os andares. As duas feras, bravas, raspavam a porta, ensandecidas, com unhas ruidosas, como se soubessem que podiam abrir um buraco através dela. Continuei a subir. Percebi que as escadas eram feitas de metal sólido, com várias perfurações circulares que permitem enxergar através delas, como aquelas escadas e andaimes dentro de fábricas. Enquanto passava de um degrau para outro, sentia firmeza e segurança. Cheguei ao último andar. Um enorme salão vazio, sujo, com vários objetos quebrados e espalhados pelo chão. E lá estava meu companheiro, sentado no que sobrou do batente da janela, uma perna para fora, outra sobre o beiral e dobrada, servindo de apoio para seu cotovelo que levava a mão à cabeça de olhar perdido, estático, contemplando a paisagem. Assim que esbocei dirigir-lhe a palavra, ele saltou, assustado, levou o indicador aos lábios a  pedir-me silêncio, e apontou a metralhadora para a porta que dava acesso à escada. Ouvi passos acelerados e destemidos de quem sabe onde quer chegar. Bem à nossa frente despontou um jovem soldado, com menos de 20 anos, louro, uniforme intacto e limpo. Sorridente, mas respeitoso, ele bateu continência e disse:
Recruta apresentando-se ao comandante para ser levado ao front.
Descansar, recruta. Por que você quer ir ao front?
Senhor, meu avô morreu na primeira guerra mundial, meu pai na segunda e, seguindo a tradição da família, eu devo lutar até a morte nesta.
Está bem, amanhã cedo te levarei ao front. Descansar!
Obrigado, senhor!
Como se estivessem seguindo o script de um filme, cada um, naturalmente, procurou um canto para se recostar. Mantive-me de pé, aproximei-me do companheiro que passei a chamar de comandante, pois era clara sua ascendência sobre nós, mas ele antecipou-se às minhas perguntas.
Soldado, estamos cansados e precisamos dormir. Amanhã temos uma longa jornada. Temos que levantar cedo para levar este herói ao front e depois voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. Boa noite.
Eu deveria estar morto porque é impossível sobreviver a uma investida tão implacável como a desta noite. É impossível acreditar em tudo que ocorreu desde a ofensiva de nosso inimigo até chegarmos neste prédio. Se estou morto então sou um daqueles espíritos que, segundo os adeptos da vida após a morte, permanece no local de desencarne e segue vivendo normalmente. Será este também o caso daquele jovem herói e deste estranho comandante que continuam existindo sem saber que já morreram? Depois de tantos acontecimentos utópicos que vivenciamos não há nada mais quimérico do que este comandante planejar um retorno a este edifício para me mostrar algo que nunca vi antes. Pior do que morrer sem saber é sentir o gosto amargo de uma impensável derrota. Quando me alistei voluntariamente para esta guerra estava preparado para tudo, logicamente para uma vitória inapelável em primeiro lugar, mas não para morrer. Vim aqui para lutar pela liberdade dos povos, para evitar que um efeito dominó alastrasse o mal por toda uma região e a subjugasse. Meus governantes me passaram a certeza de que esta é uma guerra já vencida e que precisamos só de um pouco de tempo e paciência para voltarmos para casa com mais louros de nossos sucessivos triunfos. Foi a plena consciência de nossa esmagadora superioridade no mundo, comprovada pelos nossos êxitos em conflitos mundiais e regionais recentes, que levou a maioria de jovens como eu a se apresentar para servir minha nação por livre e espontânea vontade. Apesar de nossa supremacia, teremos baixas. Numa guerra sempre há baixas dos dois lados. As nossas serão mínimas. De acordo com meus superiores, bem menos de meio por cento retornará em caixões e no máximo dez por cento sofrerá ferimentos, graves e leves. Menos de meio por cento é um número desprezível, mas sempre rezei para não fazer parte dele. Seria o mesmo que ter a sorte de ganhar sozinho na loteria. Não desejo nem este azar nem esta sorte na vida. Estes dez por cento de inválidos me dão calafrios. É um percentual considerável. Uma em cada dez pessoas é canhota, e eu conheço muitos canhotos. De acordo com alguns pseudo cientistas, é de uma em dez as chances de eu estar sonhando neste momento. E se estes fanáticos por fantasias científicas estiverem certos? Posso estar inconsciente após ter sido gravemente ferido e tendo pesadelos. Se não estou morto e nem sonhando, então tudo isso se deve aos alucinógenos que tomo em grandes quantidades todos os dias. E hoje abusei na quantidade de tanto medo de morrer. Eles são imprescindíveis. No início me revoltei com a necessidade de ter que usá-los, mas hoje não mais suportaria estar aqui sem eles. Apesar de nossa determinação e valentia, os soldados,  recrutas e veteranos, receberam um arsenal de drogas para poder enfrentar o inimigo. Como pode uma superpotência como a nossa ter que tomar drogas para ter coragem de enfrentar nossos inimigos? Eles são pequenos e frágeis, ratos de esgotos que fazem tocas nas florestas tropicais e nos surpreendem com frequentes emboscadas. Eles são covardes. Não têm coragem de lutar em campo aberto como  nós. Poderíamos dar uma solução final a este paizinho, sair daqui e jogar bombas atômicas sobre eles, como já fizemos com outra nação. Fui para um dos cantos e me recostei. Não esperava dormir nesta noite. Minha adrenalina estava muita alta e meu coração batia forte. Estava extremamente aturdido e não atinava direito para o que estava acontecendo. Voltar para cá para ver algo que nuca vi? Depois de tudo pelo que passei, de tudo que vi, agora espero ver apenas o paraíso. A noite ainda não tinha terminado para mim. Na verdade, não tinha certeza se minha  vida ainda não tinha terminado também. Pela primeira vez estive frente a frente com a morte e, em virtude da sucessão de eventos misteriosos que me acompanharam até aqui, não sei se morri e estou em alguma outra dimensão, mas ainda preso à guerra, ou se escapei e estou delirando com o trauma de ter chegado tão próximo do fim, se estou sonhando ou se estou endoidecendo com uma overdose. Sentei-me num canto como fizeram os outros dois e eles já pareciam ter entrado em sono profundo em poucos minutos. O comandante tinha um sono sereno, mas um rosto sofrido e judiado, rosto de muitas guerras, longe de casa. De onde será que ele veio? Não conseguia dormir e continuei refletindo sobre tudo que aconteceu. Participei de muitas batalhas, sempre em posição de vantagem em relação ao inimigo, embora algumas vezes estivesse perto de ser atingido. Mas desta vez, nesta noite, fui surpreendido e completamente dominado pelo inimigo, à mercê dele, esperando morrer a qualquer instante. Meu pelotão todo foi impiedosamente dizimado neste ataque surpresa, exceto eu e este estranho soldado que fala e age como um oficial e que jamais tinha visto em toda minha companhia que se dividiu em três grupos rumo a diferentes posições estratégicas na mata. O horror da guerra esteve sempre presente em minha mente a cada segundo de nossas incursões pela selva, mesmo nas raras e poucas horas de sono, sempre atormentado por pesadelos fragmentados e assustadores. Quando a gente se vê em meio a um inferno como eu me vi nesta noite, cercado de explosões ensurdecedoras e intermitentes, você não espera outra coisa senão a morte. Não há tempo para rezar e você se despede rapidamente da família que nunca mais verá e se encolhe torcendo para que a morte seja bem rápida, com balas ou uma granada na cabeça. Os segundos que antecedem a morte parecem uma eternidade queimando numa fogueira medieval. Não há tempo e nem esperança por um milagre. Nem mesmo o desespero incontrolável traz à mente qualquer ideia de um possível milagre. Mas este portento surgiu na figura deste sinistro soldado que sabia como me tirar daquele martírio. Em meio ao pânico, você se agarra à menor possibilidade de sobreviver. E eu agarrei-me àquele desconhecido soldado. Mas como ele conhecia o caminho pela mata fechada, ainda mais se rastejando na escuridão? Como ele sabia como chegar a este prédio assombroso numa clareira tão distante e que lhe parecia tão familiar? E aqueles dois cães que me ameaçaram à entrada e, aparentemente, não importunaram o comandante? O que fazem dois dobermanns guardando um edifício abandonado? E este jovem recruta que surge misteriosamente do nada e sabe onde e a quem se apresentar para ser levado ao front? Nesta guerra não há front. Ela está em toda parte. Na selva, nos vilarejos e nas áreas urbanas. E o que dizer da estranha tranquilidade deste recinto e destes dois companheiros, especialmente do comandante, que não é, de fato, comandante do meu pelotão? Acabei vencido pelo cansaço e dormi com a última frase do comandante em minha mente: voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. O sol ainda não tinha nascido quando fui acordado com uma chacoalhada do comandante.
Levante-se, soldado, temos que partir agora.
Duvido que eu tenha dormido mais do que duas horas. No entanto, levantei com uma disposição de quem dormiu as 20 horas de um leão. O jovem herói esbanjava saúde e determinação e um enorme sorriso no rosto. Incontinenti, descemos as escadas até o térreo. Os dobermanns já não estavam lá. O comandante tomou um caminho deslumbrante. Uma larga trilha aberta no meio da mata e por onde se podia caminhar sem ser incomodado por ninguém e ainda poder admirar a linda flora que adornava os dois lados da rota pavimentada com terra macia. O comandante certamente lia pensamentos ,pois eu mal esbocei lhe falar e ele antecipou-se.
Soldado, deixe para conversar outra hora. A prioridade agora é levar este herói ao front. Temos algumas horas de uma árdua e longa caminhada.
Seguimos andando a passos acelerados como numa maratona. Eu devia estar cansado, mas estava em ótima forma e suportava muito bem o ritmo. E, estranhamente, não sentia falta das drogas nas quais estava viciado. Nenhum de nós tinha um relógio. Mas tive a nítida impressão de termos percorrido vários quilômetros, em, pelo menos umas duas horas. Logo avistei à nossa frente um lugar muito incomum. Não era uma pequena cidade, nem um povoado, nem um pequeno vilarejo. Parecia-se muito com aquele cenário de uma passagem da mitologia cristã onde uma multidão se aglomerava em torno do rio Jordão para ser batizada por João. Só que ali não havia um rio, nem homens. Só mulheres e crianças. O que causava esquisitice era um longo corredor com grades, dos lados e no teto, muito parecido com aqueles longos corredores em forma de jaulas de prisões, especialmente reservados às pessoas condenadas a pena capital para tomar um banho de sol no pátio, isoladas dos presos comuns para que elas não fossem tocadas. Começamos a atravessar este corredor. Dos dois lados muitas mulheres com crianças no colo vociferavam contra nós, aos gritos. Não era preciso entender o que elas diziam na língua estranha a mim. O ódio contra nós estava estampado em seus olhos. Ao final do corredor, paramos. O comandante disse ao jovem herói que ele estava entregue e lhe desejou boa sorte. O jovem loiro bateu continência todo feliz, nos deu as costas e se pôs a marchar para além daquele lugar onde havia somente mato, mais nada. Eu e o comandante voltamos pelo mesmo corredor, ouvimos os mesmos gritos de lamento e ira, e voltamos pelo mesmo caminho que nos trouxe até aqui. Sabendo que teríamos mais de duas horas de andança, eu não iria esperar chegar até aquele velho edifico sinistro para cobrar explicações do comandante.
Comandante, o que significa tudo isso?
Significa que esta guerra já está perdida e devemos nos retirar.
Perdida? Impossível! Estamos esmagando nossos inimigos Eles fogem de nós como ratos pelos esgotos. A nossa superioridade é flagrante. Eles só sabem nos tocaiar e sair correndo para dentro de suas tocas. Eles não aguentam nossos armamentos. Logo eles se renderão. Como pode o senhor dizer que perdemos esta guerra?
Soldado, torno a lhe dizer que esta guerra está perdida.
Então me explique como eles estão sucumbindo todos os dias aos nossos pesados armamentos, impondo-lhes grandes baixas?
Soldado, sobre este paizinho já foram despejadas oito milhões de toneladas de bombas. 4 vezes mais do que as despejadas na guerra mundial de décadas atrás. 80% caíram em zonas rurais, matando apenas civis, principalmente mulheres e crianças. Apenas 20% atingiram alvos militares. Estas bombas abriram cerca de dez milhões de crateras no solo deste paizinho. Além das  bombas, foram lançadas 400 mil toneladas de agentes químicos sobre vilarejos, indiscriminadamente. Mais um vez matado mais civis dos que solados. Além disso, foram lançados 80 milhões de litros de agentes químicos para devastar a natureza deste paizinho e que vai causar muitas deficiências de nascença nas futuras gerações. Estão sendo deixadas sob o solo deste paizinho quase quatro milhões de minas e cerca de 300 mil bombas que não explodiram, e juntas, estas minas e bombas irão matar cidadãos deste paizinho todos os dias, durante muitas décadas. Foram mortos cerca de 1 milhão de solados inimigos, mas o número de civis mortos, principalmente mulheres e crianças, é 5 vezes maior, 5 milhões de inocentes. Então, soldado, contra quem estamos lutando e quem estamos vencendo nesta guerra?
Comandante, como você sabe numa guerra baixas de civis é sempre inevitável e esta desproporção de baixas entre civis e militares deve-se a fato destes covardes esconderem-se entre civis para nos surpreender com emboscadas. Se quiséssemos, poderíamos simplesmente jogar uma bomba atômica sobre eles e isto não faria diferença nenhuma sobre o número de mortos civis e militares, bastando o fato de que teríamos posto um fim aos homens do mal.
Soldado, você é adepto do genocídio?
Genocídio? Do que você está falando comandante?
Não preciso explicar. Você sabe do que estou falando.
Espere um pouco, comandante. Aquelas duas bombas atômicas que lançamos no passado teve o objetivo de abreviar uma guerra sangrenta e poupar as vidas de milhares de nossos soldados. E surtiu efeito porque o inimigo logo se rendeu.
Soldado, você acha que aquelas duas cidades foram escolhidas aleatoriamente?
Elas foram escolhidas porque eram fontes de produção de armamentos de nossos inimigos e com as bombas nós cortamos o fornecimento de armas que os abasteciam e, no final das contas, elas serviram de avisos a eles sobre o que poderíamos fazer com o resto do país. Por isso a rendição veio em poucos dias.
Soldado, mais de 60 cidades daquele pais foram bombardeadas com armas convencionais e apenas duas  foram deixadas intactas. Você sabe porquê?
Porque eram justamente estas duas cidades que produziam armas e para destruí-las por completo era preciso lançar bombas atômicas sobre elas.
Soldado, elas foram deixadas intactas apenas para medir o poder de destruição de seres humanos e suas habitações por uma bomba atômica. Se estas duas cidades tivessem sido bombardeadas por armas convencionais como as outras 60 não seria possível diferenciar que estrago era causado por armas convencionais e armas nucleares. Todos os civis que morreram nestas duas cidades, principalmente mulheres e crianças, deram aos idealizadores deste holocausto a resposta que eles procuravam.
No momento que ia refutar o comandante, ele me interrompeu e me pediu silêncio. Estávamos nos aproximando do edifico. Foi muito interessante o fato de termos uma breve conversa e não sentir o tempo passar tão rápido. Estranhamente, ele procedeu como na noite anterior. Pediu para eu esperar e foi sozinho até o edifício. Chegando lá ele fez um sinal para que eu viesse e, sem seguida, subiu as escadas. Quando cheguei à porta do edifício não vi os dois dobermanns. Subi tranquilamente e ao chegar ao salão no último andar, o comandante estava sentado naquela mesma janela e na mesma posição da noite passada. Quando aproximei-me dele ele fez algo inesperado e incrível. Saltou da janela para cometer suicídio. Mas ele não caiu. Flutuava no ar e ainda me convidou para saltar. Loucura total. Neste momento, pensei comigo: quer saber de uma coisa, devo estar morto mesmo e se eu saltar não tenho mais nada a perder. Então saltei, e flutuei. O comandante começou a voar e pediu-me para acompanhá-lo. Voávamos sem nenhuma resistência do ar. Uma suave brisa nos envolvia e nos acariciava da cabeça aos pés, como se estivéssemos dentro de uma bolha tão aconchegante como estar debaixo de lençóis acolhedores na noite acordada e calada. Não ouvia-se qualquer barulho. Nem de vento, nem de animais noturnos, nem de vida. Ouvia-se o som do silêncio absoluto sob a luz de um firmamento mais branco que negro e de uma lua maior que a cheia que nos guiavam através de um imenso tapete verde-escuro de vegetação abundante, salpicada por luzes tênues, amareladas, parecendo velas com chamas dançantes e bruxuleantes.
Comandante, estou surpreso. Não vejo nenhum sinal de guerra!
Você não surpreende-se por estar voando, mas admira-se por não ver uma guerra onde deveria haver uma.
O comandante imprimiu um pouco mais de velocidade ao voo e começou a assobiar uma melodia desconhecida. O som de seu sibilo chegava-me aos ouvidos em forma de palavras:
Nossos ascendentes são capazes de entoar hinos que sensibilizam os corações dos anjos. Eles cantam em seus lares e em terras estrangeiras, mas não permitem que seus habitantes os ouçam. Nós temos a vida que pedimos a Deus, mas sacrificamos parte dela para defender os nossos valores e os impomos a gente que os estranham. Dividimos nossa felicidade somente entre nossos pares, mas, mesmo entre nós, os mais fracos ficam com a menor parte dela. Nós oramos a Deus para que nos ajude a derrotar nossos adversários e a estes Deus reza para que não esmoreçam. Nós temos Deus de nosso lado e nossos inimigos do lado do mal. Eles não conseguem encontrar a paz entre seus iguais e nós queremos subtrair-lhes até suas últimas lágrimas de dor. Nesta luta desigual, Deus sente-se o maior de todos os perdedores. Só são capazes de perceber isso aqueles que nada Lhe pediram e estes são os verdadeiros vencedores.
De repente, o comandante começou a descer. E eu o segui sem vacilar. Fizemos um voo rasante e pairamos alguns metros acima de uma daquelas luzes cor de ouro velho. Ali havia uma choupana, abrigo de uma família, que reunia-se ao ar livre. Pai, mãe e filha, sentados, de mãos dadas, formando um círculo em torno daquela luminosidade áurea e quase divina. A mesma sublime mudez que acompanhou nosso voo também permeava aquele ambiente afetuoso, e eu esperava ouvi-los falar, ou, sussurrar, ou ouvir seus corações baterem. No entanto, embora muda, vida palpitante espalhava-se por toda parte e o que se ouvia era a harmonia e a paz que emanavam dos pensamentos daquelas criaturas de olhos puxados refletindo o brilho dos astros, tão naturalmente quanto nosso ato de respirar, a todo instante, a atmosfera que nos circunda, sem dar-nos conta.
Meu companheiro arremeteu e eu acelerei para acompanhá-lo.
Temos que voltar. Vou levá-lo para casa.
Minha casa. Por quê?
Meu companheiro sinalizou que deveríamos nos manter calados porque tínhamos uma longa viagem pela frente. Depois de um tempo imponderável, avistei uma enorme cidade, iluminada, que parecia-me familiar Meu companheiro puxou-me pelo braço e aterrissamos no meio dos prédios.
Você conhece este lugar?
Claro! Este é o marco zero de minha cidade!
Você sabe como voltar para casa daqui?
Claro. Logo ali tem um ponto de uma linha de ônibus que vai direto para meu bairro.
Meu companheiro disse adeus e preparou-se para alçar voo.
Mas, o que significa toda esta experiência que tivemos? Qual é a lógica de tudo isso? Quem é você?
Significados, identidades e coerências não têm importância, mas a experiência sim. Você a teve e é só isso o que tem valor.
Ele começou a afastar-se de mim e, lentamente, vi minha mão apartar-se da dele. Enquanto ela ainda pendurava-se em um de seus dedos e conformado com o fato de que ele jamais iria desvendar-me o mistério destas duas noites, resignado, despedi-me me dele.
Sabe, comandante, eu não estou preocupado se estou vivo ou morto. Sinto, no meu íntimo, que continuarei dormindo, sonhando e acordando todos os dias. Só tenho medo de uma coisa: de um dia acordar no meio de um inferno como o da noite passada e não ter ao meu lado alguém como você para me proteger.
Pela primeira vez o comandante falou-me olhando nos meus  olhos.
Aconchegue-se em meus braços, soldadinho, como um passarinho em seu ninho quentinho. Feche estes olhos maravilhados, solte de meu dedo esta mãozinha e repouse esta cabecinha cansada. Esta noite você vai dormir em paz. Nenhum mal perturbará seu sono. Não se  assuste com os sons que você ouvir. Alguns são apenas folhas de árvores levadas pela brisa de encontro à porta de sua casa. Outros, os murmúrios do mar, são apenas ondas solitárias lavando a praia. Você continuará sonhando como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos. Seu rosto resplandece sob o olhar do seu anjo que o assiste do alto. Seu amor manifesta-se em mim, desperta a esperança e faz jorrar alegria. Seu anjo desce e nos envolve com sua paz celestial.. Agora, soldadinho, é você quem me levará até o lugar do qual Eu gritei para ele esperar e ele se deteve a um metro do chão. Mais uma vez, ele antecipou-se às minhas perguntas.
Você não precisa de respostas para todas estas perguntas. Tudo o que você precisava ver e saber eu te mostrei esta noite.
É só isso que você tem a me dizer?
Sim. Não se preocupe. Você nunca mais me verá. Não sou seu anjo da guarda e nem aquele coelho enforcado na maçaneta da sua porta que lhe causava terror noturno na infância.
Você não pode, ao menos, dizer seu nome?
Nomes não são importantes.

EPÍLOGO

Estou no ônibus a caminho de casa, A saudade é imensa, O medo também, Não sei se a Gwen ainda me espera, Ou se me esqueceu para sempre e já está com outro, Se eu tiver a sorte de ainda encontrá-la, Será impossível fazê-la acreditar no que me aconteceu, Estou voltando como queria, Vivo, Sem mutilações, Mas não da maneira que esperava, Tudo é real, Mas não deveria ser, Deve passar da meia-noite, As ruas são as mesmas de sempre, O caminho é conhecido, Tudo é familiar, As poucas pessoas que viajam são verdadeiras, Uma delas tem um pequeno rádio junto ao ouvido e conversa com ele, Esta estranheza me fez lembrar quando entrei no ônibus, Na hora de pagar me dei conta que não tinha dinheiro e nem documento, Só meu uniforme, Quando tentei me explicar com o cobrador, Ele acenou com a cabeça pedindo-me para passar, Mas insisti em me justificar, E ele apenas respondeu que soldado que luta pela pátria não paga, Então perguntei-lhe como ele sabia que eu voltava de uma guerra, Ele limitou-se a dizer que eu sou um homem de sorte, Um espírito de muita luz, Retruquei dizendo que isso não era uma resposta à minha pergunta e que, Além do mais, Não lutei pelo meu país, Mas por um pais estrangeiro, E isto está errado, O cobrador respondeu que errado é matar civis, Mulheres e crianças, Mas eu matei soldados, Ele sorriu e acrescentou que o mundo está se matando todos os dias, Falei-lhe sobre minha preocupação, De minha mulher não saber onde estive, De achar que eu a abandonei, Porque já se passaram  muitos anos, O cobrador acrescentou que o que fiz não é abandono, Mas uma transcendência, Transcendência? O que ele quer dizer com isso? Perguntei-lhe se eu estava sonhando, Ele estendeu-me a mão e eu a apertei, Senti-a, Em seguida ele tirou sua carteira do bolso, E me mostrou uma foto de sua mulher e filhos, Eles estão dormindo agora, E minha esposa me aguarda sob lençóis quentes, E a sua também, Como você pode ter tanta certeza disso? Você não me conhece, Nem minha esposa, Não é preciso conhecer, Você não conhece a pessoa que te trouxe de volta, Mas acreditou nela, E confiou seu retorno a ela, Mas ela é tão estranha como você é para mim, É estranho este ônibus estar te levando para casa? Não! Qual é seu nome? Nomes não são importantes, Mas todo mundo fala seu nome quando se apresenta, O meu é AustMathr, E o seu? Homônimo, Você também se chama AustMathr? É coincidência demais! Meu nome não é comum, Não! Saiba que laço quer dizer laçada, E lasso quer dizer cansado, Entendi, E como se escreve seu nome? Como você quiser, Deus, Por exemplo, Mas Deus não é homônimo de AustMathr! Deus é homônimo do homem, Você está me dizendo que é Deus? Não, Não estou, Então por que você disse que seu nome é Deus? Eu não disse que meu nome é Deus, Então por que mencionou Deus como exemplo? Porque o homem inventou Deus, Todos nós somos deuses, Se eu sou Deus e AustMathr, Um soldado, Você é Deus e quem mais? Eu sou Deus e o cobrador deste ônibus, Acho que agora você está brincando comigo, Não quer dizer seu nome por quê? Quando você chegar em casa e contar à sua esposa tudo que lhe aconteceu você acha que ela vai pensar que você está brincando? Como posso saber? Nem sei se vou encontrá-la? Quer saber quando algo é brincadeira e quando não é? Sim, Como você chegou na cidade? Voando! Você está brincando comigo? Não, Não estou, Juro por Deus que cheguei voando! É por isso que acho que estou sonhando, A gente só voa em sonhos! Se você acha que está sonhando, Então continue sonhando, Sonhar é bom! Mas enquanto estive na guerra tudo era real, Quase morri durante um ataque surpresa do inimigo, Um soldado sinistro, Aparentemente de patente superior, Me salvou, E a partir daí tudo ficou esquisito, Ele me disse que havíamos perdido a guerra e que iria me trazer para casa, E o problema é que ele me trouxe de volta voando, Fora isso, Tudo parecia real, Lá no campo de batalha e agora aqui na minha cidade, Mas não deveria, O que é mais importante para você? Saber meu nome ou descobrir se você está sonhando ou não? É claro que preciso saber se continuo sonhando, Então prove esta barra de chocolate, Ela é real, E saborosa, Não? Sim, Você tem razão, Se você quiser mais uma prova, Te levo para minha casa, Acordo toda a minha família, E depois podemos ir à sua casa para apresentar minha família à sua mulher e marcamos um dia para jantarmos juntos, Meu turno acaba em uma hora, Quer ir? Não, Obrigado, Preciso ir direto para minha casa, Se eu encontrar minha mulher e tudo mais no devido lugar, Então acreditarei que não estou mais sonhando, Olha, Este é meu ponto, E minha casa fica a duas quadras daqui, Vou descer agora, Foi bom conversar com você, Mas não pense que me engano facilmente, Você não é um simples cobrador e não está aqui por acaso, Tenho outras prioridades agora, Mas um dia vou descobrir quem você é, Conheço esta linha de ônibus e sei onde fica a garagem de onde saem todos os veículos, Ele sorriu e acrescentou que todos nós estamos aqui por acaso, Me chamou de soldadinho, Como aquele desconhecido comandante que me tirou daquele inferno pelos ares, E desejou-me boa sorte, E à minha mulher também, Cheguei em casa, Graças a Deus tudo é real! É minha casa mesmo! Não estou sonhando! Mas a porta não está trancada, Isto não é normal, Minha mulher jamais deixaria a porta destrancada numa cidade tão perigosa como esta, Entrei, Subi até o quarto, Meu coração disparou, Lá estava ela dormindo serenamente, Deitei-me ao lado dela,  Cobri-me com o lençol, E chamei-a silenciosamente, Querida! Aí que susto! Meu Deus, Ainda bem que você me acordou, Você me tirou de um pesadelo horrível que parecia uma eternidade! Eu estava emocionado, Quase chorando, Tudo estava normal, Nada havia mudado, Que pesadelo, Querida? Meu amor, Você não vai acreditar, Sonhei que você decidiu entrar numa guerra, Não pelo nosso país, Mas por um país estrangeiro contra outro estrangeiro, Não entendi porque você fez isso, Você disse que voltaria logo e disse adeus, Mas passaram-se anos, Não tinha nenhuma notícia sua, Você não me escrevia, E nem sabia em que guerra você estava, Procurei amigos e perguntei-lhes se eles sabiam onde poderia estar ocorrendo uma guerra, E eles me disseram que havia um guerra em outro continente bem longe do nosso, E que já durava muitos anos, Me deram os nomes dos países envolvidos, Fui na embaixada dos dois, Dei seu nome a eles, Mas nenhum deles tinha qualquer registro seu como soldado servindo seus países, E acharam estranho eu procurar por você junto a eles já que você não é da mesma nacionalidade, A partir daí todos nossos amigos e parentes se mobilizaram para saber de seu paradeiro, E eu orava a Deus todas as noites, Por que ele fez isso? O que aconteceu com ele? Por favor, Meu Deus, Traga meu marido de volta para casa! Neste momento, Surgiu um homem alto e forte, De olhos penetrantes, Não se preocupe senhora, Seu marido está são e salvo, Eu o tirei da guerra, Trouxe-o para cá, E coloquei-o num ônibus, Ele está a caminho de casa, Logo ele estará aqui, Quem é o senhor, Deus? Sou a transcendência, Transcendência? O que o senhor quer dizer com isso? Sou um dos atributos do homem, Que lhe ressaltam a superioridade em relação a todas as criaturas irracionais do planeta, Mas só Deus tem esses atributos! Todos nós somos deuses, senhora, Me desculpe, Mas o senhor está blasfemando, A senhora pediu ajuda a Deus e ela já está a caminho, Agora preciso ir, Seu marido logo chegará e vai te tirar deste pesadelo, Ele é um espírito de muita luz, Um soldadinho de muita sorte, Qual é seu nome, senhor? Nomes não são importantes, senhora! Então, Meu amor, Neste exato momento você me chamou e me acordou, Não é incrível? Eu estava sem palavras, E sabia que iria passar o resto de minha vida refletindo sobre tudo o que me aconteceu e porquê, Estava um pouco aliviado também, Porque tudo continuava normal e eu não iria precisar explicar tudo à minha esposa, Mas de repente ela exclamou, Meu amor, Por que você tirou o pijama e vestiu este uniforme de soldado?


VOS DEMOISELLES

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


A Linda já tinha dado provas de que não era nada difícil convence-la a se entregar por inteira, Mas você levou uma semana toda fazendo planos para arrancar dela pouco mais que um beijo selinho que durou menos tempo que o ruído de um pulsar! 

Oh minha querida, Sempre tive meus longes de que, Mais dia, Menos dia, Uma viração do mar de acariciar o rosto doidejaria num dia ensolarado, Indiscreta arregaçando o lenço àquela formosa donzela que veio graciosamente ao meu encontro, De olhos dependurados e de ver, Conforme ajustado, E ensejou-me a limitar-me ao deleite de roubar um beijo àquela gérbera deslumbrante da cor do topázio! 

A outra de cor topázio, A Sílvia, De pavio curto com sua inatividade, Ainda lhe entregou de bandeja sua prima, Aquela morenaça, Sedenta por uma nova e melhor experiência, E você deixou-a na mão, Literalmente! 

Oh minha querida, Eu não poderia contemplar, Com nobres sentimentos, Mais do que as mãos da preciosa Sônia, Marcada por Deus com uma pinta singular que misturava beleza e mistério, Não de corpo, Mas de olho, Cravejado por um verdadeiro diamante, Uma Sírio que se erguia grandiosa no céu líquido das noites de verão, Acompanhada de esplendores, Ricamente adereçada em Órion, A estrela das estrelas, Deixando todas demais desoladas, E a mim ofuscado e fascinado por sua luz cinérea! 

Que maravilha, Querido! E o que dizer das duas Célias? Uma fria e fleumática como uma inglesa, A outra do tipo tuareguesa, Quanto mais amantes, Melhor a sua reputação, Ambas propícias a novas aventuras, E não duvido que com elas seria possível um ménage à trois, Como o trio que o Odilon formava com a tia e a sobrinha e que você dispensou! 

Oh minha querida, As divinas Célias, Mais do que um dobro, Um triunvirato fulguroso, O clarão de um farol que apanhou-me em cheio, Cegando-me momentaneamente, Levando-me ao sétimo céu, Num mês de setembro, Oh Célia, Anagrama de minha saudosa Alice, Que fazia o sol brilhar num dia chuvoso, Que fazia a primavera se adiantar num dia friorento! 

E que lembranças você acha que aquela carioquinha guardou de você sem você nunca tocá-la? 

Oh minha querida, A bela moreninha do Rio, Cujo nome 
era impronunciável de tão divino, Como falar e escrever o nome de Deus é proibido aos judeus, E cuja companhia naquela inesquecível viagem do centro ao extremo norte pareceu durar dias, Como uma  peregrinação da Galileia a Jerusalém na semana da Páscoa, Dando-me o privilégio de admirá-la como o Templo de Salomão, E por ter visto a Cidade Santa uma única vez já poderia morrer feliz, Sem precisar adentrar o Santo dos Santos! 

Oras, Meu querido beato, Aquela magrela de andar desengonçado, A Márcia, Te ensinou a beijar de verdade, E sua Deusa queria te abrir mais que os lábios, Mas você em nada contribuiu, E nem mesmo aceitou seu perdão por ela ter sido obrigada a lhe deixar uma única vez! 

Oh minha querida, A Márcia foi minha grande iniciação, Mas minha Deusa, Se quisesse, Poderia ter me ensinado outros rituais que habitam sua tentação, Mas ela preferiu preservar meu romantismo, Alimentou-me com palavras emblemáticas, E sua vivacidade feminina transformou-me num trovador, Estimulando-me a fazer declamações ao longo dos caminhos que trilhamos juntos! 


Oh como você é sentimental, Meu amor, Tantas jovens bonitas para um menino tão acanhadinho e tolinho! 


Oh minha querida, Não é preciso ser um matemático para fazer uma simples conta de somar, Não é necessário ser um pastor alemão para mostrar o sol a um homem cego, Não é preciso ser um predador para notar a teia de aranha que você tece, Olho para o céu e, Com clareza, Vejo o sol, A lua, As estrelas, Júpiter, Vênus e marte, Não é necessário um telescópio para você me amar!



FLUIDEZ

 

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)
 
 
 

Um envelope leve como fio de seda e folha de magnólia, borboleteia no ar, carregado de mensageiros da alma, cambalhotando ao sabor do vento inquieto que o ergue em beleza, e  descai-o numa rasante, rodopia dentro de uma caixa de correio e arremete, deslizando, estabanado, resvalando nas teias de pensamentos que encontra pelo caminho à deriva no céu de rosas, refletindo milhões de sóis, e um deles desce à superfície, abaixo d’água, como miragem da lua iluminando veredas, feito lanterna de fulgor azul tremulante, lá do alto mar até a praia, e aqui da nascente do riacho até o rio caudaloso, põe minha mente a flutuar correnteza abaixo, na companhia de um pássaro que não sabe nadar, desarmando todos os aforismos, rendendo-me ao vazio onde nada parece ser real, onde nada faz sentido, onde os movimentos e as emoções não têm a mesma forma, onde tudo é seguro e fluindo da paz, que do amanhã nada se sabe, que da morte não se morre, que minhas preciosas posses já não me consomem mais, ouço o pássaro cantar que sabe o que é ser impalpável, sentir-se como se desde sempre estivesse desencarnado, e ele me alça num voo que meu inconsciente jamais sonhou, me transcende, me transporta para fora do meu ser, de meu isolamento e da minha alienação, para um despertar de meu espírito, uma conexão mágica e em êxtase, transformando-me num habitué das odisseias astrais, põe minha busca no lugar certo, fico um pouco perplexo, mas arrebatado e verdadeiro, com minha vida pregressa despoluída e em contato com o centro regulador de meu universo interior, fervilhando estrelas mil a engastar-me dentro de incontáveis e longínquas galáxias, que de perto resplandecem meigas luzes de candeias, dando-me uma sensação de unidade indivisível, uma singular entidade cósmica, tornando-me mais autêntico e autoconfiante, ligando-me a algo que está muito além do que tenho sido, e é neste além que vai parar um envelope de fluidez