Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Muita gente desinformTexto de autoria de Austmathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98ada diz que Londres é
uma cidade chata e arrogante. Esta não parecia ser a opinião do ex-presidente
Jânio Quadros, tão inteligente quanto matusquela. O homem público ciclotímico
que condecorou Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul,
renunciou à presidência com pouco menos de sete meses de governo, teve seus
direitos políticos cassados pelo regime militar em 1964, e curtiu um ostracismo
grego de 10 anos. Regressou em 1978 e elegeu-se prefeito de São Paulo em 1985. O
homem dos factoides mediáticos, pendurou, literalmente, as chuteiras na porta do
gabinete da prefeitura em 1986 e faleceu em 1992. Jânio tinha fama de cachaceiro – bebia pinga pura durante seus comícios em suas campanhas a cargos públicos -, adquiriu o hábito de Winston Churchill de se comunicar com seus ministros
através de bilhetinhos, e, entre muitas de suas memoráveis frases, algumas eram sarcásticas e hilárias - bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia.
Este culto biriteiro era conhecido também por fazer constantes viagens ao exterior e, curiosamente, sempre fazia uma parada em Londres antes do seu
retorno. Certa vez um jornalista perguntou-lhe por que ele sempre visitava a capital inglesa por último. A resposta foi contundente e enfática: Porque
preciso tomar um banho de civilização antes de voltar ao Brasil. Na escola
aprendemos que a Mesopotâmia é o berço da civilização do mundo, e que a herança
cultural e moral do ocidente deve-se à Grécia. E onde Londres entra nas sentenças dos oráculos? Eu iria descobrir nos anos 90, quando precisei fazer inúmeras
viagens a países europeus, exceto à Inglaterra. Adotei os costumes do
homem da vassourinha. Ao final de cada longa jornada de trabalho, arrancava
terno e gravata, vestia jeans, camiseta e tênis, e ficava até três dias vadiando
pelas ruas e metrôs da Londinium fundada pelos romanos na década de 60 de dois
mil anos atrás. Não demorei mais que um dia para descobrir que em todo canto da
cidade se respirava cultura, civilidade, educação e disciplina. Esqueçam os
pontos turísticos como o Big Ben, o Palácio de Buckingham, o Museu de Cera de Madame
Tussauds, a Torre que decepava cabeças de inimigos do rei e outros que só servem aos colecionadores de fotos
para serem exibidas aos amigos. Você só não deve deixar de visitar o
Museu Britânico, onde se encontra o Livro dos Mortos dos Egípcios, escrito em
1300 a.e.c., e a Carta Magna de 1215, andar pela faixa de pedestres na Abbey
Road, em frente aos estúdios da Apple, onde os Beatles tiraram aquela clássica e
lendária foto, e visitar a Carnaby Street, ponto de encontro dos gênios
psicodélicos que transformaram Londres no centro da efervescência cultural e
artística do mundo e a cidade mais Avant-Garde do planeta. A Inglaterra não era
assim. Conservadora e puritana, até os anos 50 o homossexualismo masculino era punido
com castração química. Tudo mudou com os Beatles no início dos anos 60. Aliás,
os Beatles e seus pares britânicos da música mudaram o mundo. Na minha busca por
acomodações, descobri que os preços de estadia não eram muito civilizados. Mas
quem tem boca vai a Roma e entra no banheiro do papa no Vaticano. Papeando com gente de vários estabelecimentos
comerciais e hotéis, acabei recebendo a indicação de uma pensão familiar, na
Earl´s Court Garden, que ficava a algumas quadras da avenida e da estação de
metrô homônimas. Para lá me encaminhei por volta das 21:00 horas. As ruas
estavam completamente desertas. Enquanto as áreas mais centrais da cidade
fervilhavam com shows de rock em várias casas noturnas, o pessoal da periferia
se recolhia bem cedo. Estava com dificuldades para encontrar a pensão. Então,
algo impensável no Brasil aconteceu. Interpelei uma jovem que vinha pela calçada
em minha direção. Ela, educadamente, levou-me de volta à esquina de onde viera,
e mostrou que a pensão ficava do lado direito da segunda quadra mais adiante. Lá
chegando, fui acolhido com extrema hospitalidade. E aqui faço uma homenagem
poética a este momento prazeroso que não repete aos 67 anos o doce começo da vida à aventura aos 40: A estação me recebe como as andaluzas em flor, Do outro
lado da avenida, As ruas estão desertas, A noite caída tarde ainda em baixas e
boas horas, Ao longo de uma aleia de buxos aparada e de cheirosos canteiros de
alfazema, Lá adiante, a lividez do luar ilumina vagamente tudo à volta e meu
passo até uma alemoa que, Gentilmente, Mostra-me uma alameda de casas
simétricas, Feita milharal, Levando-me ao casarão plantado numa das duas
estreitas vias transversais, Separadas pelo elegante jardim quadrilátero,
Centralizado e cercado de grades. A pensão me recebe como em meu lar, Minha
casa, Meus amores, Minhas flores dos trópicos, Cá nesta terra fria e acolhedora,
Como a cama aconchegante, O sorriso aberto e familiar do café da manhã tão rico
e caseiro, Os primeiros raios de sol iluminam esta parte da superfície terrestre
sob sombra. O Earl´s Court Garden é um daqueles típicos quadriláteros de
sobrados simétricos, com um jardim central, ao qual só os moradores locais têm
acesso, exatamente como se vê no filme UM LUGAR CHAMADO NOTTING HILL. A recepção
fechava às 22:00 horas, e só abria às 07:00 horas. Neste intervalo, só adentrava quem lá estivesse hospedado e tivesse a chave da porta de entrada.
Certa vez, lá cheguei cedo demais, por volta da 06:00 horas. Eu carregava
duas malas pesadas, uma contendo material de trabalho, outra com artigos
pessoais. Larguei as duas na calçada, na frente da porta, e fui fazer hora
num barzinho na Earl´s Court Avenue. Ao retornar às 07:00 horas, você não precisa me perguntar se as
malas permaneciam no mesmo lugar. Talvez, nos dias atuais, elas fossem tomadas
como suspeitas bombas terroristas e recolhidas. Londres é famosa pelas chuvas
que caem quase todos os dias. Por isso, o inglês é muito precavido. Sempre sai
de casa com um guarda-chuva. Eu não me preocupava com isso. Naquela época eu já
não usava relógio nem cueca. A chuva podia se demorar por apenas meia hora, mas
sempre vinha, de surpresa, a qualquer hora. Logicamente, Jânio não se referia às águas que desabavam das nuvens
quando falava sobre o banho de civilização londrina. Eu preferia pensar nas
palavras de John Lennon em sua música pelos Beatles chamada I´M THE WALRUS: sentado num jardim inglês, esperando pelo sol, e se o sol não vem, você pega um
bronzeado de pé na chuva inglesa. Eu preferia esperar a chuva passar, sentado na
calçada de um boteco da Oxford, saboreando um sanduíche, regado à Coca-Cola, e
olhando o espetacular mulheril desfilando de sombrinhas. Houve uma ocasião em
que a chuva parou de repente, paguei a conta e não esperei pelo troco.
Atravessei a avenida e entrei numa loja de CDs do outro lado. O garçom veio
atrás de mim e me devolveu o troco em moedas. Quando se
fala em arte e cultura em Londres, as primeiras palavras que vêm à mente são
música e literatura. É covardia falar sobre a música popular britânica, a melhor
de todos os tempos. Consternado fiquei de jamais poder ver nenhuma das muitas e melhores bandas do mundo ao vivo porque elas só tocavam em grandes estádios e
os ingressos sempre eram, e continuam sendo, esgotados com 4 a 6 meses de
antecedência - só pude assistir a algumas delas passando dos 70 aqui no nosso inferno. Restava-me, então, me extasiar com as bandas amadoras que tocavam
ao vivo todas as noites em dezenas de casas de show, esperançosas de serem descobertas por um Brian Epstein que as levassem a uma gravadora
para lançar o primeiro disco e ter exposição no rádio. E cá entre nós, estes
principiantes eram bem melhores do que muitos dos chamados músicos profissionais. Como
diziam Keith e Jagger na música STREET FIGHTING MAN: o que pode fazer um garoto
pobre, a não ser tocar numa banda de rock. Eu era pobre - e ainda sou - e não
tinha talento para tocar numa banda. Então me lambuzava nas mega lojas de CDs. Só a fileira de prateleiras contendo artistas com a letra ´A´ na HMV
era maior do que a maior loja brasileira de CDs. Nas minhas dezenas de passagens
por Londres, minha obsessão sempre foi a busca por cultura. Na livraria Foyles
da Oxford, eu perambulava pelo departamento de história. Encontrei um
interessante livro de mitologia e folclore nórdicos. Folhei o livro e logo
reparei que ao lado dele havia outros sobre o mesmo tema. Olhei o preço e
não acreditei: 1,99 libras(R$ 10 na cotação de hoje) por um livro com cerca de 500 páginas.
Perguntei à vendedora se o preço estava correto. Sim, estava. O baixo preço não
era uma promoção, mas uma simples liquidação, porque a editora estava prestes a
lançar uma nova coleção revisada da coletânea. Não tive dúvidas: comprei e
enciclopédia de 16 livros contendo a mitologia, folclore, religião e costumes de todas as
civilizações da humanidade. Um verdadeiro tesouro por apenas R$ 160,00. Nesta
época de muitas idas a Londres eu estava finalizando meus estudos sobre
mitologia cristã, e costumava comprar muitos livros acadêmicos sobre o assunto.
Na estação de metrô Marylebone há uma igreja cristã com sua livraria chamada
SPCK. Nos fundos vendem-se livros usados e raros. Eu tive um enorme prazer ao
procurar e lá encontrar a primeira edição, traduzida para o inglês em 1904, do
livro UMA INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO, escrito em 1894, por Adolf Julicher, um
alemão catedrático e teólogo, um acadêmico especializado em estudos científicos
da mitologia cristã, fazendo uso da Crítica Literária e da Forma. Na parte da
frente vendem-se livros novos, predominantemente religiosos, muitos dos
quais desafiavam a própria crença cristã. O polêmico pau d'água que proibiu o
biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, proibiu as rinhas de
galo, o lança-perfume em bailes de carnaval, e fechou os oito cinemas que iriam
exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, em 1989, por
considerá-lo desrespeitoso à fé cristã, ficaria escandalizado com sua Londres
libertina se lesse um livro que comprei na SPCK, chamado JESUS E A POLÍTICA DOS
SEUS DIAS, uma antologia de ensaios diversos, um dos quais descreve Jesus como
um agente político, infiltrado na Palestina, a serviço dos romanos. Logicamente, o autor desse ensaio é tão porra loca quanto Jânio foi. Nas minhas
andanças por Londres, eu aproveitava para comprar roupas masculinas e femininas
dos anos 60 em butiques e lojinhas de esquina descoladas. Em Londres, você pagava – e deve ainda pagar –
apenas 7% de imposto sobre tudo que você compra. Você pode ter o imposto
estornado se o produto sair da Inglaterra. O logista preenche um formulário, descrevendo os produtos e os
preços. Basta apresentar este formulário e os produtos que você comprou na
alfândega no aeroporto e você recebe, na hora, a devolução dos impostos em
dinheiro. Uma loja onde comprei muitas roupas não tinha o formulário. O logista
me pediu para voltar na manhã seguinte. Não era possível, pois eu estava
embarcando para o Brasil naquela noite. Então ele me pediu meu endereço no
Brasil para estornar o imposto. Não acreditei nesta história. Dei meu endereço
só por educação. Duas semanas após ter voltado ao Brasil, recebi pelo correio,
da Inglaterra, um envelope contendo o formulário e os impostos em dinheiro, em notas de
libras esterlinas. Estive em Londres tantas vezes e lá tomei tantos banhos de
civilização que, às vezes, acabava esquecendo que sou brasileiro, vivo no paraíso dos
ladrões e tomo banho de corrupção todos os dias. Meu asseio físico e moral continua quase imaculado.
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