segunda-feira, 14 de outubro de 2024

THE CLOGS ARE OPEN

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Grandes tristezas resignadas no recôndito da sede de todos sentimentos, De amarga história ainda não cicatrizada, Entra ano, Sai ano, Fundem-se sonhos e realidades em luz e escuridão, Passado patente ao espírito do presente, Futuro com data marcada, Secam ao sol rios de ardentes aspirações, Murcham falto de claridade pastos de apaixonados desejos, Permanecem nuas árvores de frutos deiscentes, Amarga ainda é à solitária a saudade que embarga a voz, E no peito, Escaldante lava, Pousa errante nuvem, Passageira como calendário na parede, Correndo mais rápido que o tempo, Mais lenta que noites insones, De olhos brancos afogueados, Veem o nascer do dia por sombra de cortina, Fechada à queima pelos raios de Coaraci, Oh, Como doce à desacompanhada é o sussurro do anjo anunciando-lhe the clogs are open no isolamento, Abrindo livros empoeirados na prateleira, Dissipando as escórias da mesmice ralo abaixo, Deitando-lhe sob um céu protetor, Que não deixa a precipitação entrar, Nem vento uivante varrendo detritos, Nem luzes de ruas escuras borbotando formas laranjas através da janela, Nas horas do crepúsculo, Nas horas do céu noturno vermelho que apraz os pastores, Nem ladrões da madrugada, Que lhe foram caros e lhe venderam, E antes de chegado o momento de sentar-se numa cadeira de balanço com uma manta cobrindo os joelhos, Vai a um cemitério, Pensar em todas as esperanças e sonhos perdidos que jazem sob o solo, Vai a uma igreja, Pensar nas imagens e nas preces vivas que procuraram atributos que nunca existiram, Vai ao santuário da alma, Pensar nas pessoas que só se importavam com o corporal, De amor de água poluída, Enquanto se esperava pelos seus corações, Sai da touceira, Passa por uma ampla campina, Por onde a lua, Sozinha no firmamento liso, Estende sua triste luminosidade, Sai da touceira, Passa por uma vereda macia e fecunda, Por onde a primeira estrela da manhã, Radiante no horizonte, Estende sua alegre calidez, Sai do encarceramento de um casulo de algodão que se abre, Rebento com um grito de incontido alívio e felicidade, Na melodia de sua liberdade, Na harmonia de sua delicadeza, No reconhecimento de um mundo que acabou.







ANO 2446

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

A paisagem não era um esplendor, e a terra parecia um pouco desolada, com pouca vegetação, solo pedregoso e arenoso, como um sertão de pedras. Nosso guia turístico nos escoltava numa caminhada por lugares históricos e ecológicos. A ideia era praticar trekking com espírito de aventura, mas alguns lugares por onde passamos tinham aspecto inóspito. Eu deveria ser o único brasileiro num grupo de estrangeiros de diferentes países. Nossa excursão incluía escaladas. Logo surgiu uma colina, um tanto íngreme, e nosso guia gritou:
- Vamos lá, pessoal, força nas pernas!
A trilha era de chão batido, espaçosa, da largura de uma ruela. Uns caminhavam mais rápidos que os outros, mas o grupo não se dispersava. Subitamente, ouvi um alvoroço vindo de baixo. Olhei para trás e vi um urso subindo a ladeira a largas passadas, abrindo alas entre os humanos, esbravejando, ameaçando com patadas no ar e bramidos nervosos. Ao passar por mim, tive que sair de lado rapidamente para que ele não me arranhasse. O urso era jovem, esbelto, andava como um ser humano, e logo chegou ao alto do monte e sumiu. Poucos minutos depois todos nós chegamos ao cume e nos deparamos com uma visão magnífica: um antigo templo em ruínas que lembrava um pouco o santuário egípcio de Debod localizado no centro de Madri, sustentado e coberto por pesadas lajes de pedras semelhantes às encontradas em Stonehenge na Inglaterra. Todos estavam deslumbrados, mas ninguém fez qualquer comentário sobre o estranho urso que passou por nós. Imaginei que ele estivesse escondido dentro daquele monumento. O guia nos convidou a entrar. O interior era pouco iluminado e afigurava um salão central ladeado por várias reentrâncias em forma de labirintos. Enquanto admirávamos aquelas majestosas e rústicas paredes de rocha, começaram a surgir enormes ursos de todos os cantos, vindo para cima de nós, formando um círculo à nossa volta e fechando o cerco. Abraçados uns aos outros à espera da morte, ouvimos um urso gritar:
- Surpresa, humanos! Fechem os olhos!
Nunca imaginei que morreria assim, devorado por ursos que falam como gente. E o mesmo urso tornou a gritar:
- Agora já podem abrir os olhos!
Para nossa surpresa, surgiu, como num passe de mágica, uma enorme mesa cheia de comes e bebes, um verdadeiro banquete.
- Aproximem-se, humanos! Vamos nos confraternizar. Fiquem à vontade!
Incrédulo, vi homens e ursos bebericando, comendo e conversando! O guia juntou-se a mim e antes que eu pudesse indagá-lo um urso adolescente veio até nós. Ele tinha pendurado no pescoço uma corrente com a estrela de David. Amistoso e sorridente, ele solenizou:
- Espero que vocês estejam gostando da recepção. Não se acanhem. Comam e bebam à vontade. Embora todos nós pareçamos iguais, temos ideologias diferentes. Sintam-se em casa!
O urso foi cumprimentar outros humanos e eu, estupefato, fui puxado pela mão do nosso guia. Ele me levou a um canto do labirinto, apertou o dedo contra uma parede e portas abriram-se. Era um elevador. Ele entrou e me trouxe para dentro. As portas fecharam-se e o elevador começou a descer rapidamente. O guia nada falava e eu não sabia nem mesmo o que falar de tão pasmado. O elevador parecia estar em queda livre. Com a voz embargada, perguntei ao guia:
- Demora muito ainda para chegarmos à superfície?
- Já chegamos a ela. Agora estamos descendo ao subterrâneo.
Pela velocidade e o tempo decorrido imaginei que já tivéssemos descido mais de 200 andares. Finalmente o elevador parou. As portas se abriram, e surgiram diante de nós duas moças gêmeas, muito bonitas, com sorrisos simpáticos, olhando-nos com ternura. Elas tinham a pele mais branca que leite, cabelos lisos e negros, aparados na altura da nuca, a la chanel, e olhos negros e cintilantes. Vestiam um tipo de macacão, dos pés ao pescoço, um colante bem justo e apertado no corpo, aderente como se fosse a mesma pele da face clara e translúcida. E elas permaneciam diante de nós, sem falar nada, apenas sorrindo. Detive-me por vários segundos, hesitei e, então, arrisquei:
- Podemos entrar?
- Você perguntou se podem entrar e te respondo que sim, vocês podem entrar.
Saí do elevador e adentrei um vasto salão todo branco, tão estranho quanto às duas moças que se mantinham ao meu lado. Percorri o ambiente com os olhos rapidamente e tudo o que via era uma imensidão branca. Não atinava para nada e decidi, então, fazer uma pergunta mais arriscada:
- Que planeta é este?
- Você perguntou que planeta é este e eu te respondo que este é o planeta terra.
- Mas isso aqui não se parece com a terra! Vi ursos na superfície falando e se comportando como humanos e este ambiente em nada se parece com qualquer coisa que conheço. Este não é meu tempo, é?
- Você perguntou se este não é seu tempo e eu te respondo que este não é seu tempo.
- Em que ano estamos?
- Você perguntou em que ano estamos e eu te respondo que estamos no ano de 2446.
Fiquei completamente sem ação, sem saber o que fazer e o que mais perguntar. As duas moças mantinham seus olhos fixos nos meus, sem hesitar, sem piscar. Sentindo-me meio perdido, mas com um sensação de bem-estar incomum, resolvi fazer a primeira pergunta que me veio à mente:
- Posso dar uma volta por aí, para conhecer o lugar?
- Você perguntou se pode dar uma volta por aí para conhecer o lugar e eu te respondo que você pode.
Qualquer pessoa se sentiria incomodada com a maneira da moça sempre repetir minha pergunta antes de respondê-la, no entanto, estranhamente, eu achava isso natural. A moça tinha uma voz humana suave, falava com extrema delicadeza, sempre solícita e educada, e cada vez que respondia seus olhos denunciavam um notório e sincero interesse por mim e minhas perguntas. Pedi licença às duas moças e comecei a caminhar pelo ambiente. Logo percebi que havia várias moças idênticas transitando através daquele imenso recinto. Ele tinha assoalho, paredes, portas, janelas, teto, e móveis, mas não era possível vê-los à distância, no entanto eu sentia que tudo estava lá. Não era possível divisar contornos como cantos de paredes ou a altura do teto, mas, de uma maneira que não sei explicar, eu conseguia perceber as delimitações dos espaços. Tinha uma perfeita noção espacial da área que certamente se dividia em muitos ambientes separados. Depois de muito andar finalmente me deparei com algo sólido, uma parede com uma porta. Tudo branco. Só era possível enxergá-las estando bem próximo delas. Decidi abrir a porta e, no exato momento que eu ia colocar a mão numa especie de maçaneta, outra moça idêntica às outras gentilmente se colocou entre mim e a porta e abriu um irradiante e cativante sorriso.
- Me desculpe, não tive intenção de me intrometer. Só queria conhecer outros cômodos. Posso abrir esta porta?
- Você perguntou se pode abrir esta porta e eu te repondo que hoje você não pode, mas um dia  poderá.
- Então eu vou ser trazido de volta a este lugar, quero dizer, a este tempo?
- Você perguntou se será trazido de volta a este lugar, querendo dizer, a este tempo e eu te respondo que sim, você um dia aqui voltará, porém por livre e espontânea vontade,  da mesma maneira como aqui chegou hoje.
Agradeci a moça e achei que o melhor a fazer era voltar. Só neste momento me dei conta que meu guia não estava comigo. Olhei em todas as direções e lá num fundo indistinto vi meu guia recostado em alguma coisa sólida, talvez uma parede, com uma perna dobrada e a sola do pé escorada contra esta coisa sólida. Fui em direção a ele e quando me aproximei percebi que ele estava recostado na porta do elevador. Ele me olhou com um ar de motorista apoiado em seu táxi esperando seu cliente voltar. As portas do elevador se abriram, o guia entrou e com apenas uma olhadela pediu-me para entrar. O elevador começou a subir rapidamente. Olhei para o guia e perguntei:
- Me diga uma coisa. Essas pessoas daqui são todas assim? Lindas, branquelas, de cabelos e olhos negros?
- Sim, todas, mas algumas têm olhos coloridos, verdes, azuis, amarelos, vermelhos, cinzas, castanhos...
- E são todas gêmeas e clonadas?
- A maioria é, mas há híbridas também, não repetidoras, não questionadoras, adutoras da sua vontade de descer, entrar e ficar, de perguntar, de querer saber e aprender, de descobrir, partir, subir e compartilhar com seu tempo tudo o que você viu aqui. Elas são atemporais, não robotizadas, não controladas, humanadas na sua vontade de subir, entrar e ficar, de ouvir, de querer entender e respeitar, de confraternizar com os não humanos, como os ursos da superfície, de voltar, descer e esperar. Elas são acólitas, não anacrônicas, não icônicas, sincrônicas de seus desejos de subir, descer e igualar, de escrever, de querer transmitir e disponibilizar, de dividir, de aqui voltar um dia, descer de novo e desvendar tudo.
- Você é muito estranho. Sabe tudo sobre este mundo subterrâneo. Enquanto estivemos lá em baixo com aquelas mulheres clonadas você não demonstrou nenhuma surpresa e agora, com essa conversa estranha sobre descer, subir, ficar, voltar, está claro para mim que você é daqui, é um deles! Como você conseguiu me trazer aqui e por quê?
- Você assistiu ao filme DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS?
- Por que você responde minha pergunta com outra pergunta?
- Assistiu ou não?
- Sim, assisti. Faz muito tempo. Acho que foi em 1974. Por quê?
- No filme O PLANETA DOS MACACOS os símios dominaram a terra, escravizaram os humanos e os tratavam como animais. Na sequência, DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS, os símios vivem na superfície, mas descobrem que há uma pequena população remanescente de humanos super inteligentes, que vivem debaixo da terra, e desenvolveram poderes psíquicos que aterrorizam os macacos. Eles controlam tudo e todos só com a mente.
- Já entendi. Você está querendo dizer que tudo isso não passa de um sonho. Que eu o criei a partir de imagens de um filme que ficaram retidas no meu inconsciente. É simples assim?
- E por quê não?
- E você, onde você entra nessa história?
- Você assistiu ao filme A ORIGEM? Este é bem recente, de 2010.
- Sim, assisti, e daí?
- Daí que uma pessoa pode fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas. Uma pessoa, como uma arquiteta, projeta um mundo num sonho e leva com ela várias pessoas para esse mundo. Uma delas age como seu guia e se incumbe de povoar o mundo criado pela arquiteta com pessoas de seu subconsciente. Você nunca se lembra como seu sonho começou. Você só se dá conta quando já está no meio dele. É por isso que, de repente, você surgiu no meio de um grupo de turistas guiados por mim.
- Quer dizer, então, que eu sou o arquiteto que fabricou este mundo do futuro e você é meu guia que o povoou com ursos e pessoas clonadas. Como isso é possível se eu nem te conheço na vida real. Como eu poderia compartilhar um sonho com uma pessoa que eu não conheço. Afinal de contas, quem é você?
- Depende do que você quer acreditar. Que tudo isso é um sonho ou que tudo isso é real. O elevador parou. Chegamos à superfície. Vamos descer e não nos veremos mais. Será como acordar de um sonho, nada mais. Uma última informação. As duas coisas são possíveis: fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas e conhecer o futuro só com a mente através de um sonho espontâneo, não fabricado por você, mas pelo inconsciente coletivo que é patrimônio da humanidade. Quando você voltar aqui talvez se encontre com uma híbrida. Não se preocupe, ela estará te guiando o tempo todo!
- Então, me diga: estou sonhando ou tendo uma visão do futuro?
- Você está no futuro agora! 2446!
- E que negócio é esse de me encontrar com uma híbrida?
- Eu sou um mero servidor, dando uma de guia turístico para você e todas aquelas pessoas que mergulharam no inconsciente coletivo durante o sono e vieram parar aqui. Me pediram para levar somente você lá para baixo, não me pergunte por quê, e me disseram que da próxima vez você será guiado por alguém do topo da hierarquia deste tempo. Uma híbrida! Agora, me dá licença. Há mais turistas chegando.

ZHONGGUÓ 30 YEARS AGO

 Written by Alceu Natali . Copyright protected by Law # 9610/1998
 
In the 90's I went to China several times. They say that in the last 25 years this nation has changed a lot, which I believe will be the greatest world power, perhaps in another 20 or, at most, 30 years. Even some American sci-fi, futuristic and time-travel films like Looper, set in 2044's USA, and 2074's Zhōngguó, prophesy, China is the future. If one day I go back there, definitely not for work, I don't expect to support the same series of hilarious episodes from more than 25 years ago, which advanced in 5 seasons, and impelled me, with pleasure, to reduce them to spoilers, word that is in vogue, although vogue is out of fashion. Guangzhou, the Canton of the Portuguese, was the stage for my Avant Premiere. I had a problem when I arrived, too small for this great land of despicable inconveniences. My suitcase was left there in Bangkok. The airline promised to deliver it to the hotel in two days. Later, I would find that this promise was nothing like the word-of-mouth invitations we usually receive around here: 'Drop by my place anyday', hoping you'll never show up. The hotel I booked was very close to the airport. I could get there on foot, but as it was raining heavily, I took a taxi, and I was caught by the only smart ass I could find among more than a billion simpletons and sweet slanted eyes. He charged me 10 dollars to drive less than 500 meters. Bad feelings: Lost luggage and a cheating taxi driver. I had appointments on the next day, and I needed to change clothes and buy toiletries. The hotel receptionist recommended a mall nearby. I walked about four blocks to reach the small two-story building. It had everything I needed. I just didn't know if the pants I picked fit. I passed along the ways looking for a fitting room, but I couldn't find it. I asked a young woman who appeared to be a saleswoman for help. No one spoke English or Portuguese there, and I spoke neither Mandarin nor Cantonese. Apparently, she understood my gestures. She nodded, explained in Chinese, but she didn't point to any direction. I had the strangest feeling that she was saying something like, ''you should put on one leg at a time, lift your pants up to your waist and button them.'' I kept wandering, looking in all directions. I went back to the men's clothing section, and at the end of the hall I saw a Chinese man choosing a pair of pants. This one could definitely show me where the men's private cabin was. Suddenly, he took off his pants and was down to his underwear and calmly tried on various models, while the comings and goings of customers and salespeople, men and women, ignored him. I began to realize that the saleswoman's explanation was not as strange as I thought. That scene reminded me of the American proverb: 'When in Rome do as the Romans do'. So, there I was, in a public space, in a shirt, socks, shoes and boxer shorts, taking my time, why hurry?, to find the pants that best fit my body. I was the only Westerner in that department store. The chinese people just looked at my face. They'd all seen many men in underwear in public many, many times. I wondered where women tried on underwear and tops, panties, bras, dresses, skirts and blouses. I discovered, through an Aristotelian syllogism alone, that the mall had no dressing rooms or bathrooms. Wearing only his underwear was the minor premise. The major one was another Chinese man, next to me, trying on a swim trunks in the blink of an eye. I used my reason because any kind of gesture asking for the location of a toilet could be risky. It was too early to be excited about the freedom of bodily expression, naked for incomplete, in a culture I was just beginning to probe. It was difficult to resist the temptation to hang around in the women's section, waiting, unscrupulously, to witness what I was tired of seeing, in broad daylight, in some corners of the Forest Garden near home and on the benches of London's Hyde Park. Fatigue, due to the long 22-hour trip, alerted me that duty was calling me. I arrived at the hotel, exhausted, collapsed into bed, got a good night's sleep, and woke up feeling refreshed for my first day at work in the middle country. This is the meaning of China. This story goes way too far. You ain't seen nothing yet!