No início dos anos
90, resolvi reler todos os diálogos de Platão que eu conhecera nos tempos de
faculdade. Naquela ocasião, decidi ler, pela primeira vez, os diálogos
considerados menores e de autoria duvidosa: Hiparco, Os Rivais, Teágenes, Clitofonte,
Minos e O Segundo Alcibíades. Este último tornou-se o meu
favorito. Seu tema, a prece, contém, em muitas passagens, o espírito do
platonismo e do estoicismo que pessoas anônimas usaram para escrever parte dos
evangelhos cristãos. É muito bonito, por exemplo, a prece do poeta desconhecido
que Sócrates aprova: Dá-nos, Zeus, os bens que pedimos e os que
silenciamos, e afasta de nós os males, mesmo se o pedirmos por não sabermos que
são males. No entanto, este diálogo não é de Platão. É de um admirador
anônimo, escrito entre o século 3 e 4 antes da era
comum.
Quem
conhece os diálogos de Platão, logo percebe que O Segundo Alcibíades contém falhas nas associações e
força argumentativas e ausência do habitual senso de humor com o qual o grande
filósofo atenuava a investida dos questionamentos de seu mestre. O autor
demonstra que conhece, profundamente, o estilo de Platão, no entanto, em várias
passagens, a linguagem usada não é Platônica. O texto contém muitos erros
de estrutura e dicção. Em 151B, a frase grega é
literalmente traduzida Eu ficaria
feliz em ver-me aceitando, o que não é nada Platônico. Uma das provas de
que o diálogo foi escrito muito tempo depois de Platão está na palavra grega
usada para respondido em 149B, apokrithenai,
enquanto Platão teria usado apokrinasthai. Outros exemplos:
Em 148C, as
palavras chronou oudenon parecem significar tempo passado em Grego e, certamente, não é Platônico (No
livro de Aristóteles, Física, na passagem IV. 13.5 as palavras o parekon
chronos significam tempo
presente). Em 145D as palavras ana logon são
usadas no genitivo na passagem 29C do livro Timeu de Platão, enquanto a frase Platônica normal
para esta passagem é osautos.
Platão
teve muitos imitadores e admiradores anônimos, mas este que escreveu o Segundo Alcibíades, é mais que
isso. Como devemos entender uma pessoa que escreve uma obra magnífica, imitando
seu ídolo, e prefere permanecer no anonimato ao invés de desfrutar da glória de
um filósofo, mesmo que de um plagiador? Como devemos entender uma pessoa que
encerra o diálogo com esta nobre máxima: Amão diz que prefere o culto
discreto dos lacedemônios aos sacrifícios de todos os helenos
reunidos, em resposta às queixas dos Atenienses de sempre levarem a pior
nas batalhas contra os Espartanos? Isto não é um plágio oportunista ou uma
imitação barata. Isto é um presente de amor para a posteridade.
Os
maiores imitadores de Platão, no entanto, não foram meros e frustrados
pretendentes a filósofos, mas, sobretudo, os cristãos. Boa parte das histórias e
grandes máximas que aparecem nos evangelhos canônicos, conhecidos como Marcos, Mateus, Lucas e João,
foram baseados nos diálogos de Platão e na cultura grega. Todas as pessoas que
inventaram as histórias contidas nos evangelhos eram anônimas e inspiraram-se em
várias fontes, principalmente a Grega, mormente a Platônica (muitos acadêmicos
costumam dizer que o cristianismo é um neoplatonismo). Todos os evangelistas
eram cultos, falavam Hebraico, Aramaico, Latim e Grego, e liam livros acessíveis
somente à nobreza, como os diálogos de Platão. Eles fizeram uso da obra de
Platão e de outros pensadores gregos para inventar o que hoje chamam de moral cristã. A igreja deu
nomes aos autores destes evangelhos, mas quando aqui faço menção a qualquer um
deles, não refiro-me a uma pessoa que existiu e cujo nome conhecemos. Quando
digo João, refiro-me ao
autor anônimo que escreveu o evangelho conhecido pela igreja Católica como sendo
de São João.
Os
autores anônimos dos evangelhos canônicos não tinham admiradores ou imitadores,
mas concorrentes, anônimos também, e que escreviam seus próprios evangelhos,
como várias pessoas de diferentes regiões fizeram ao longo de mais de um século.
Como o conteúdo destes evangelhos concorrentes não atendiam aos interesses
imediatos da igreja católica dominante, foram chamados de apócrifos e banidos, mas redescobertos nos tempos
modernos. Para cada um dos quatro evangelhos canônicos existe, pelo menos, cinco
apócrifos. O que os evangelhos canônicos mais tinham eram adulteradores, dentro da própria igreja cristã que, por
séculos, modificou as histórias dos evangelhos para atender aos seus
proselitismos e manter seus fiéis sob rédeas curtas. A maioria das adulterações é bem
visível e até grotesca. No entanto, os autores originais e anônimos dos
evangelhos eram bem criativos e inventavam histórias mirabolantes, intrigantes
e, às vezes, até assustadoras e surpreendentes, comprometendo a imagem de seu
ídolo mitológico que se tornou a figura central da maior religião da
humanidade.
Há
uma história famosa e interessante no evangelho de João, conhecida como A
Mulher Apanhada Em Adultério, que requer atenção especial. Em qualquer
bíblia de livrarias ou de hotéis e igrejas, está história aparece nos
capítulos 7.53 a 8.11, mas o mundo acadêmico
nem sequer a cita em seus estudos científicos da literatura cristã primitiva.
Por quê? Porque, embora ela não seja diferente de outras histórias sobre Jesus
encontradas nos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), ela não foi escrita pelo autor
original do evangelho de João. Ela tem muitos problemas como o Segundo Alcibíades que foi, erroneamente, atribuído a
Platão.
Esta
história não aparece em nenhum dos manuscritos unciais Gregos, a não ser num
único conjunto deles, sendo os principais três manuscritos datados do século 4
da era comum, o Sinaiticus,
Vaticanus e Freerianus, e um do século 9, o Koridethian. Um manuscrito
uncial do século 8 e outro de século 9 omite esta história, deixando um espaço
vazio onde ela outrora fora inserida, o que denota que já naquela época era
considerada não autêntica. Além disso, vários manuscritos cursivos omitem a
história, enquanto os manuscritos cursivos de Ferrar colocam esta história no evangelho
de Lucas, entre o discurso apocalíptico do capítulo 21 e a abertura da história
da paixão no capítulo 22. Outros a colocam no final do evangelho de João e
outros depois do capítulo 7. O mais interessante é que durante os primeiros mil
anos da era cristã nenhum comentarista Grego fez qualquer menção a esta
história. Na verdade, evidências desta história só aparecem nos manuscritos
latinos e ocidentais, sendo o mais antigo deles o Códex Bezae do século 5.
Fora
estas anomalias nos manuscritos unciais e cursivos da igreja, o que torna esta
história uma invenção bem tardia é o fato de que seu autor comete os mesmos
erros cometidos pelo autor do Segundo Alcibíades. A
partícula grega de aparece 10 vezes nesta curta história e não é
uma palavra característica de João. Ela aparece 202 vezes no evangelho inteiro,
ao passo que João usa com a mesma frequência (195 vezes) a partícula
grega oun. Para a palavra multidão, João usa o
grego ochlos, mas nesta história, o inventor anônimo usa o
grego laos. Em todo o evangelho, João chama os opositores de Jesus
simplesmente de Os
Judeus, mas nesta história eles são chamados de Escribas. Para a palavra cedo, João usa o
grego proi (ver capítulos 18, 20 e 21 de João), mas nesta história a
palavra grega usada é orthrou.
Se
esta história não faz parte do evangelho, então de onde ela veio, com qual
propósito foi criada e por que ela foi inserida justamente ali, entre os
capítulos 7.52 e 8.11? Uma história parecida
com esta foi mencionada pela primeira vez nas Constituições Apostólicas dos séculos 3 e 4 da era comum, sem ser, no
entanto, atribuída a nenhum evangelho. O Bispo cristão, Eusébio de Cesárea, que
viveu do ano 260 a 339 da era comum, menciona em seu livro, A História da Igreja, que um
tal de Papias relata uma outra história de uma mulher
acusada de pecados perante Jesus e que estaria contida no Evangelho dos Hebreus. Eis as
palavras de Eusébio no capítulo III, versículo 39: Papias também faz uso de evidências
tiradas de 1 João e 1 Pedro, e relata a história de uma mulher falsamente
acusada de muitos pecados perante Jesus. Esta história é encontrada no Evangelho
dos Hebreus. Eusébio não associa ou compara esta 'outra história' de
Papias à história contida em João 7.53 e 8.11, simplesmente porque no tempo de
Eusébio, século 4 da era comum, a história da Mulher Apanhada Em Adultério não
existia.
A exemplo do que fez o autor
do Segundo Alcibíades, o
autor da Mulher Apanhada Em
Adultério nos legou outro
presente de amor com a grande máxima: Que atire a primeira pedra quem não
tiver nenhum pecado. Deixo para o leitor o desafio de dar respostas às
três perguntas feitas no parágrafo anterior. Ofereço este texto como meu
presente de amor para os carregadores de tirso que passaram a vida andando em
círculos e aos bacantes que sempre caminharam em linha reta até a apoteose ou,
conforme a versão cristã desta máxima de Platão, para os chamados que me fazem
companhia no anonimato e para os escolhidos que se fazem acompanhar somente pelo
estrelato