sexta-feira, 1 de novembro de 2024

PRESENTES DE AMOR E O MITO DA MULHER APANHADA EM ADULTÉRIO

Texto  de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


No início dos anos 90, resolvi reler todos os diálogos de Platão que eu conhecera nos tempos de faculdade. Naquela ocasião, decidi ler, pela primeira vez, os diálogos considerados menores e de au
toria duvidosa: Hiparco, Os Rivais, Teágenes, Clitofonte, Minos e O Segundo Alcibíades. Este último tornou-se o meu favorito. Seu tema, a prece, contém, em muitas passagens, o espírito do platonismo e do estoicismo que pessoas anônimas usaram para escrever parte dos evangelhos cristãos. É muito bonito, por exemplo, a prece do poeta desconhecido que Sócrates aprova: Dá-nos, Zeus, os bens que pedimos e os que silenciamos, e afasta de nós os males, mesmo se o pedirmos por não sabermos que são males. No entanto, este diálogo não é de Platão. É de um admirador anônimo, escrito entre o século 3 e 4 antes da era comum.

Quem conhece os diálogos de Platão, logo percebe que O Segundo Alcibíades contém falhas nas associações e força argumentativas e ausência do habitual senso de humor com o qual o grande filósofo atenuava a investida dos questionamentos de seu mestre. O autor demonstra que conhece, profundamente, o estilo de Platão, no entanto, em várias passagens, a linguagem usada não é Platônica. O texto contém muitos erros de  estrutura e dicção. Em 151B, a frase grega é literalmente traduzida Eu ficaria feliz em ver-me aceitando, o que não é nada Platônico. Uma das provas de que o diálogo foi escrito muito tempo depois de Platão está na palavra grega usada para respondido em 149Bapokrithenai, enquanto Platão teria usado apokrinasthai. Outros exemplos: Em 148C, as palavras chronou oudenon parecem significar tempo passado em Grego e, certamente, não é Platônico (No livro de Aristóteles, Física, na passagem IV. 13.5 as palavras o parekon chronos significam tempo presente). Em 145D as palavras ana logon são usadas no genitivo na passagem 29C do livro Timeu de Platão, enquanto a frase Platônica normal para esta passagem é osautos.

Platão teve muitos imitadores e admiradores anônimos, mas este que escreveu o Segundo Alcibíades, é mais que isso. Como devemos entender uma pessoa que escreve uma obra magnífica, imitando seu ídolo, e prefere permanecer no anonimato ao invés de desfrutar da glória de um filósofo, mesmo que de um plagiador? Como devemos entender uma pessoa que encerra o diálogo com esta nobre máxima: Amão diz que prefere o culto discreto dos lacedemônios aos sacrifícios de todos os helenos reunidosem resposta às queixas dos Atenienses de sempre levarem a pior nas batalhas contra os Espartanos? Isto não é um plágio oportunista ou uma imitação barata. Isto é um presente de amor para a  posteridade.

Os maiores imitadores de Platão, no entanto, não foram meros e frustrados pretendentes a filósofos, mas, sobretudo, os cristãos. Boa parte das histórias e grandes máximas que aparecem nos evangelhos canônicos, conhecidos como Marcos, Mateus, Lucas e João, foram baseados nos diálogos de Platão e na cultura grega. Todas as pessoas que inventaram as histórias contidas nos evangelhos eram anônimas e inspiraram-se em várias fontes, principalmente a Grega, mormente a Platônica (muitos acadêmicos costumam dizer que o cristianismo é um neoplatonismo). Todos os evangelistas eram cultos, falavam Hebraico, Aramaico, Latim e Grego, e liam livros acessíveis somente à nobreza, como os diálogos de Platão. Eles fizeram uso da obra de Platão e de outros pensadores gregos para inventar o que hoje chamam de moral cristã. A igreja deu nomes aos autores destes evangelhos, mas quando aqui faço menção a qualquer um deles, não refiro-me a uma pessoa que existiu e cujo nome conhecemos. Quando digo João, refiro-me ao autor anônimo que escreveu o evangelho conhecido pela igreja Católica como sendo de São João.

Os autores anônimos dos evangelhos canônicos não tinham admiradores ou imitadores, mas concorrentes, anônimos também, e que escreviam seus próprios evangelhos, como várias pessoas de diferentes regiões fizeram ao longo de mais de um século. Como o conteúdo destes evangelhos concorrentes não atendiam aos interesses imediatos da igreja católica dominante, foram chamados de apócrifos e banidos, mas redescobertos nos tempos modernos. Para cada um dos quatro evangelhos canônicos existe, pelo menos, cinco apócrifos. O que os evangelhos canônicos mais tinham eram adulteradores,  dentro da própria igreja cristã que, por séculos, modificou as histórias dos evangelhos para atender aos seus proselitismos e manter seus fiéis sob rédeas  curtas. A maioria das adulterações é bem visível e até grotesca. No entanto, os autores originais e anônimos dos evangelhos eram bem criativos e inventavam histórias mirabolantes, intrigantes e, às vezes, até assustadoras e surpreendentes, comprometendo a imagem de seu ídolo mitológico que se tornou a figura central da maior religião da humanidade.

Há uma história famosa e interessante no evangelho de João, conhecida como A Mulher Apanhada Em Adultério, que requer atenção especial. Em qualquer bíblia de livrarias ou de hotéis e igrejas, está história aparece nos capítulos 7.53 a 8.11, mas o mundo acadêmico nem sequer a cita em seus estudos científicos da literatura cristã primitiva. Por quê? Porque, embora ela não seja diferente de outras histórias sobre Jesus encontradas nos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e  Lucas), ela não foi escrita pelo autor original do evangelho de João. Ela tem muitos problemas como o Segundo Alcibíades que foi, erroneamente, atribuído a Platão.

Esta história não aparece em nenhum dos manuscritos unciais Gregos, a não ser num único conjunto deles, sendo os principais três manuscritos datados do século 4 da era comum, o Sinaiticus, Vaticanus e Freerianus, e um do século 9, o Koridethian. Um manuscrito uncial do século 8 e outro de século 9 omite esta história, deixando um espaço vazio onde ela outrora fora inserida, o que denota que já naquela época era considerada não autêntica. Além disso, vários manuscritos cursivos omitem a história, enquanto os manuscritos cursivos de Ferrar colocam esta história no evangelho de Lucas, entre o discurso apocalíptico do capítulo 21 e a abertura da história da paixão no capítulo 22. Outros a colocam no final do evangelho de João e outros depois do capítulo 7. O  mais interessante é que durante os primeiros mil anos da era cristã nenhum comentarista Grego fez qualquer menção a esta história. Na verdade, evidências desta história só aparecem nos manuscritos latinos e ocidentais, sendo o mais antigo deles o Códex Bezae do século 5.

Fora estas anomalias nos manuscritos unciais e cursivos da igreja, o que torna esta história uma invenção bem tardia é o fato de que seu autor comete os mesmos erros cometidos pelo autor do Segundo Alcibíades. A partícula grega de aparece 10 vezes nesta curta história e não é uma palavra característica de João. Ela aparece 202 vezes no evangelho inteiro, ao passo que João usa com a mesma frequência (195 vezes) a partícula grega oun. Para a palavra multidão, João usa o grego ochlos, mas nesta história, o inventor anônimo usa o grego laos. Em todo o evangelho, João chama os opositores de Jesus simplesmente de Os Judeus, mas nesta história eles são chamados de Escribas. Para a palavra cedo, João usa o grego proi (ver capítulos  18, 20 e 21 de João), mas nesta história a palavra grega usada é orthrou.

Se esta história não faz parte do evangelho, então de onde ela veio, com qual propósito foi criada e por que ela foi inserida justamente ali, entre os capítulos 7.52 e 8.11? Uma história parecida com esta foi mencionada pela primeira vez nas Constituições Apostólicas  dos séculos 3 e 4 da era comum, sem ser, no entanto, atribuída a nenhum evangelho. O Bispo cristão, Eusébio de Cesárea, que viveu do ano 260 a 339 da era comum, menciona em seu livro, A História da Igreja, que um tal de Papias relata uma outra história de uma mulher acusada de pecados perante Jesus e que estaria contida no Evangelho dos Hebreus. Eis as palavras de Eusébio no capítulo III, versículo 39: Papias também faz uso de evidências tiradas de 1 João e 1 Pedro, e relata a história de uma mulher falsamente acusada de muitos pecados perante Jesus. Esta história é encontrada no Evangelho dos Hebreus. Eusébio não associa ou compara esta 'outra história' de Papias à história contida em João 7.53 e 8.11, simplesmente porque no tempo de Eusébio, século 4 da era comum, a história da Mulher Apanhada Em Adultério não existia.



A exemplo do que fez o autor do Segundo Alcibíades, o autor da Mulher Apanhada Em Adultério nos legou outro presente de amor com a grande máxima: Que atire a primeira pedra quem não tiver nenhum pecado. Deixo para o leitor o desafio de dar respostas às três perguntas feitas no parágrafo anterior. Ofereço este texto como meu presente de amor para os carregadores de tirso que passaram a vida andando em círculos e aos bacantes que sempre caminharam em linha reta até a apoteose ou, conforme a versão cristã desta máxima de Platão, para os chamados que me fazem companhia no anonimato e para os escolhidos que se fazem acompanhar somente pelo estrelato


3 comentários:

  1. Gostei de ler.

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  2. Alceu Natali, este texto é excelente! Quem é o autor? Você não diz.

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  3. oi, Morgana, você precisa prestar mais atenção ao ler um texto. Logo abaixo da ilustração e acima do texto e está escrito bem claro TEXTO DE AUTORIA DE ALCEU NATALI COM DIREITOS AUTORAIS PROTEGIDOS PELA LEI 9610/98. Para sua informação, no meu blog e no facebook eu só publico textos de minha autoria, Eu sou o autor de todos os textos que publico, abraços,alceu

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