terça-feira, 26 de novembro de 2024

CA(N)GAÇO (TRECHO DO LIVRO VALE DA AMOREIRA)

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Volta e meia a morte é confundida com uma pessoa que na verdade a odeia e se Tilly soubesse desses odds and sods, esses baratos afins da morte, naquele dia lúgubre ele permaneceria parado e calmo e depois prosseguiria tranquilamente, como fez aquele franzino cabra bom, cabras às direitas, e que, ao atravessar a caatinga, inadvertidamente cruzou o caminho de Lampião e foi tomado por um jagunço, um cangaceiro manso, e se viu cercado pelo bando maldito. Mas o sujeito era mesmo cabra do colhão roxo e não se intimidou com as ameaças de Virgulino. Não o desafiou e nem o desrespeitou, mas também não fez concessões à sua neutralidade e desengajamento por isso foi logo condenado a morrer antes da hora.
Sai correndo, seu cabra da peste, e não olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue chegar, exclamou Lampião.
Os cangaceiros começaram a armar os gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar lentamente, a passos curtos e pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar qualquer gesto com a cabeça ou com os braços. Andava como se já estivesse morto apreciando a paisagem desolada do jardim do éden do sertão nordestino e como se algumas balas varando seu corpo não fizessem qualquer diferença. Ainda com o condenado bem ao alcance das espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a mão e gritou para todos:
Deixa-o ir embora! Este é cabra-macho e vai ser cria nossa!
É difícil precisar se Tilly era cria ou refém do medo. Ele tinha saído mais cedo do trabalho para sacar um benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a rampa da garagem, alcançou a rua, virou a direita e logo chegou na avenida principal que se encontrava com o trânsito completamente parado devido à enorme quantidade de veículos. Tilly foi se espremendo e se enfiando até entrar pela faixa reservada para ônibus e logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando que alguém lhe desse passagem para a pista do meio. Tilly estava comprimido entre ônibus e o de trás começou a buzinar incessantemente.
Esse trânsito maluco deixa todo mundo cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os carros andarem, resmungou Tilly.
O trafego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde Tilly pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a presença insignificante de Tilly com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor. Tilly olhou no espelho retrovisor e percebeu que não só o motorista, mas várias pessoas com as cabeças para fora das janelas esbravejavam alucinadamente contra ele.
Esses caras são gozados. Acham que tudo está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente deles decolando como um helicóptero, desdenhou Tilly.
De repente, várias pessoas desceram do ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em direção de Tilly, envolveram seu carro, arrancaram-no para fora, vociferaram contra ele e o ameaçaram em uníssono. Tilly, quase sujando as calças, não entendeu bulhufas e tratou de se desvencilhar dos agarrões, cutucões e empurrões e saiu numa desabalada carreira avenida abaixo, largando tudo para trás, como um doido varrido agonizando em meio a um ataque de pânico, exigindo o máximo de suas pernas ligeiras e mantendo os braços ocupados como duas asas recolhidas e alternando cotoveladas e socos no ar para manter o corpo em equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos para silenciar os disparos ardidos que esperava queimar seu corpo e para emudecer o angustiante barulho tal qual o grito infinito da natureza de Munch e que ainda estremecia a atmosfera desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor apressado. E não podia também tapar os olhos para esconder o vexame, mas tampouco necessitava fazê-lo para ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois, embora não pudesse prever se sairia desta vivo, sabia onde queria chegar e como. Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. Tilly corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa. Bastava Tilly fazer o quadrilátero perfeito para voltar ao seu local de trabalho e lá chegar quase desfalecido, desabar num sofá e ser logo acudido pelos seus companheiros preocupados e ansiosos para saber o que aconteceu.
Um bando de assassinos levou meu carro lá na avenida e tentou me linchar, balbuciou Tilly antes de desmaiar.
Tilly foi levado a um hospital onde foi apenas sedado e, no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o local do incidente e para surpresa deles, o carro de Tilly continuava no meio da via pública, com o motor ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois naquela hora o engarrafamento encontrara vazão e o transito fluía normalmente. Um comerciante local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a hora do incidente e foi ele quem explicou para os companheiros de Tilly o que se passara.
Não foi nada não. Foi um pessoal que fretou alguns ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi assassinado e eles estavam meio de cabeça quente e descontaram no rapaz só porque ele entrou com seu carro no meio do cortejo fúnebre.
Talvez fosse melhor para Tilly se a dona morte se descuidasse e o levasse, mesmo que fosse de susto, assim ele não teria que continuar levando essa vida ordinária, popularmente chamada de cheia de altos e baixos, com bons e maus momentos se revezando.
Mas, afinal de contas, todos vocês não vivem de outra forma senão com esses intermitentes ups and downs, esses sobe-e-desce, como autênticos camaleões surfando numa montanha russa e quando seus anjos da guarda já não dão mais conta vocês jogam a culpa na minha prima fatalidade, retrucou a morte.


O OLHAR DA COMUNHÃO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 
É sublime estar sempre esperando por você, É feitiço que o tempo todo você nunca esteve longe de mim, Porque é este encantamento que nos faz sentir distantes, Porque é este encantamento que nos faz sussurrar orações à noite, Nos faz temer estar dentro de um momento mágico sem perceber que ele é real, Nos dá medo de que um dia ele acabe como se fosse uma fantasia passageira, Me dá o medo ingênuo de que você um dia vá embora, E leve consigo a fascinação que contagia nosso mundo, Porque são esses muitos instantes felizes que nos fazem pensar que vivemos num lugar foram do comum, Nos tornam tão importantes, Como todos aqueles que têm alguém esperando, E se a alegria que me contamina me impele a lhe dizer algo singular, Não será diferente daquilo que todos tocados pelo mesmo sentimento já perceberam, Que a vida nos destinou esta ocasião tão preciosa, Nos tornando tão especiais no mundo, Comungando nos olhares encantados, De tempos abençoados, Perseguidos pelo medo de sermos tão felizes, Celebrando a vida que sempre esperou por nós, Tendo-nos ao seu lado o tempo todo, Compartilhando a mesma magia, O mesmo sonho, Murmurando as mesmas preces, Todas ouvidas, Todas atendidas, Sob o olhar celestial de quem ao nosso redor consegue ver a felicidade sempre fazendo-se acompanhar pelo amor que move este mundo mágico.



PRIVILÉGIO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Ainda que eu tivesse toda a riqueza do mundo, e não soubesse que você existisse, não entenderia de onde viria tanto desprazer por uma fortuna conjurando em minha perdição meus erros e uma paixão que poderia ser ardente, ainda que eu ouvisse as vozes incógnitas, e não tivesse ouvidos para você, eles jamais se prestariam a cupidos servidores, não se atreveriam contra o céu, e não beijariam a mão à deusa dos amores, ainda que eu fosse um semideus maior que Bach, e não tivesse o privilégio de gostar mais de você, minha vida teria menos sentido ainda e o universo choraria mais bilhões de vezes com nossa cansativa busca de seus inexoráveis mistérios, quando eu era menino, e você ainda não era, minha alma, sem-ventura, pouco aceitava, já ansiava mais que silêncio e prece, já desejava fugir-me para encontrar alguém que te criasse, logo que acabei com as coisas de menino, e você veio à luz, cheguei à meia idade com um resto de irresponsabilidade menina, um perdedor em quem ninguém apostaria, não invejo os que esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram, não atino com as de ontem que ainda hoje enfio, sem meu amor por você aqui já não mais estaria.