domingo, 26 de janeiro de 2025

BARGANHANDO COM A MORTE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Certos acontecimentos e até mesmo certas pessoas são inexplicáveis. Pacífico oscilava entre os opostos da fama de malandro, se visto apenas de fora, e da ternura de um conciliador, se fosse possível penetrar no seu íntimo. Ele argumentou com os milicos de maneira bem convincente e livrou a barra de todos. Ele era da turma da rua de baixo, rival da turma da rua de cima de Tilly, mas ele costumava fazer diplomáticas incursões pelos territórios inimigos e acabava conquistando a simpatia de todos. Durante um curto período de tempo e sem nenhum motivo aparente, ele passou a frequentar a rua de Tilly com quem teve uma enorme empatia. Ele não jogava bola, mas por causa de Tilly promoveu um torneio entre várias turmas, muito mais pelo desejo de uma confraternização entre vizinhanças rivais, especialmente entre a sua, a do Córrego do Macaco, e a de Tilly, a do Messias Trombeteiro. Pacífico morreu de forma estúpida, de complicações pulmonares depois de ter levado dois tiros no peito só porque, de brincadeira, ele chamou de cheirosinho um sujeito conhecido por continuar fedendo como carniça mesmo depois de tomar banho. Pacífico era pobre de espírito e universal e, ao saber de sua morte, Tilly se arrependeu pela segunda vez e profundamente, por não ter lhe retribuído em vida tanta consideração com atitudes mais solidárias. Mas, mesmo certas atitudes são incompreensíveis, como a de Tilly ao escolher o pacato e limitado Bombeiro, o filho do desejo, como seu confidente e conselheiro para seu primeiro ato sexual com preservativo. Bombeiro também morreu de forma brutal, com um tiro na nuca disparado pelo passageiro no banco de trás de seu táxi. A morte foi muito precipitada com Pacífico e Bombeiro e nem sempre ela é assim. Nem sempre ela vem para ceifar vidas. Muitas vezes ela aparece apenas para fazer uma visita, tomar um café, bater um papo, agradecer a hospitalidade, esperar por um ‘volte sempre’ e se despedir com um ‘qualquer coisa, é só avisar’. Se Tilly soubesse disso ele não teria saído correndo naquele dia fatídico e permaneceria calmo e parado como ele fez na primeira hora de uma noite quando ele se encontrava abraçado com a namorada no ponto de ônibus e viu, à distância, se aproximando pela calçada, uma horda de desordeiros, chutando latas de lixos, escarrando, urinando nos postes, uivando como coiotes de porre e vomitando toda sorte de palavrões para os que iam e vinham a pé ou motorizados. Não demorou muito para aqueles vândalos do anus da periferia chegarem até Tilly e sua namorada e prensá-los contra a parede prenunciando um duplo estupro, mas com preliminares com requintes cáusticos:
E aí, meu, não vai apresentar a noivinha pra gente?
Tilly, solenemente, apresentou sua namorada ao chefe daqueles fariseus que, jocosamente, se inclinou, beijou a mão da moça, voltou-se para Tilly e lhe disse:
Mina joia, meu.
Tilly agradeceu e apressou-se em apresentar a si mesmo e acrescentou que estudava no Ginásio do Prolongo e de lá viera a pé até a avenida para pegar o ônibus de volta para casa.
Espera aí! Te conheço! Você é amigo da turma do sei lá de quem do Prolongo! Ei, patota, esse cara é dos nossos! Caralho, cadê a educação? Cumprimentem a noiva dele!
Aqueles fuleiros limparam o ranho e a baba com o dorso das mãos ensebadas, e um a um contaminaram a delicada e suave pele da eleita de Tilly, meneando as cabeças para frente, leve e seguidamente enquanto andavam de fasto, como se fossem súditos sem permissão para dar as costas a uma princesa antes de deixar o palácio. E assim, despediu-se o Átila do Bairro da Marrequinha:
Valeu, meu! Joia te encontrar e conhecer sua noivinha! Fica frio. Aqui, lá no Prolongo e nesse pedaço todo você está em casa! É só dar um toque. E não se esqueça da gente quando sair o casório!
Quando a morte se depara com a pessoa errada, ela se toca, por assim dizer, se constrange com a mancada que deu e, ao querer se desculpar com agrados, acaba se complicando mais ainda e comete gafes como prometer que lhe avisará com antecedência quando sua hora estiver chegando. A pessoa errada neste caso pode ter sido a namorada de Tilly protegida pelo seu daimon. Só isso poderia explicar o engano esdrúxulo de ser reconhecido por alguém que Tilly nunca viu mais gordo e ainda ser associado à turma de um sujeito cujo apelido era tão difícil de entender e de guardar quanto o de um colega seu do mesmo Ginásio do Prolongo que disse ter sido transferido de uma escola com um nome tão cumprido e complicado cuja única parte inteligível era ligabuia. Volta e meia a morte é confundida com uma pessoa que na verdade a odeia e se Tilly soubesse desses odds and sods, esses baratos afins da morte, naquele dia lúgubre ele permaneceria parado e calmo e depois prosseguiria tranquilamente, como fez aquele franzino cabra bom, cabras às direitas, e que, ao atravessar a caatinga, inadvertidamente cruzou o caminho de Lampião e foi tomado por um jagunço, um cangaceiro manso, e se viu cercado pelo bando maldito. Mas o sujeito era mesmo cabra do colhão roxo e não se intimidou com as ameaças de Virgulino. Não o desafiou e nem o desrespeitou, mas também não fez concessões à sua neutralidade e desengajamento por isso foi logo condenado a morrer antes da hora. Lampião exclamou:
Sai correndo, seu cabra da peste, e não olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue chegar!
Os cangaceiros começaram a armar os gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar lentamente, a passos curtos e pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar qualquer gesto com a cabeça ou com os braços. Andava como se já estivesse morto apreciando a paisagem desolada do jardim do éden do sertão nordestino e como se algumas balas varando seu corpo não fizessem qualquer diferença. Ainda com o condenado bem ao alcance das espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a mão e gritou para todos:
Deixa-o ir embora! Este é cabra-macho e vai ser cria nossa!
É difícil precisar se Tilly era cria ou refém do medo. Ele tinha saído mais cedo do trabalho para sacar um benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a rampa da garagem, alcançou a rua, virou a direita e logo chegou na avenida principal que se encontrava com o trânsito completamente parado devido à enorme quantidade de veículos. Tilly foi se espremendo e se enfiando até entrar pela faixa reservada para ônibus e logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando que alguém lhe desse passagem para a pista do meio. Tilly estava comprimido entre ônibus e o de trás começou a buzinar incessantemente. Tilly resmungou:
Esse trânsito maluco deixa todo mundo cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os carros andarem.
O trafego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma brecha por onde Tilly pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a presença insignificante de Tilly com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor. Tilly olhou no espelho retrovisor e percebeu que não só o motorista, mas várias pessoas com as cabeças para fora das janelas esbravejavam alucinadamente contra ele. Tilly desdenhou:
Esses caras são gozados. Acham que tudo está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente deles decolando como um helicóptero.
De repente, várias pessoas desceram do ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em direção de Tilly, envolveram seu carro, arrancaram-no para fora, vociferaram contra ele e o ameaçaram em uníssono. Tilly, quase sujando as calças, não entendeu bulhufas e tratou de se desvencilhar das agarrações, cutucões e empurrões e saiu numa desabalada carreira avenida abaixo, largando tudo para trás, como um doido varrido agonizando em meio a um ataque de pânico, exigindo o máximo de suas pernas ligeiras e mantendo os braços ocupados como duas asas recolhidas e alternando cotoveladas e socos no ar para manter o corpo em equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos para silenciar os disparos ardidos que esperava queimar seu corpo e para emudecer o angustiante barulho tal qual o grito infinito da natureza de Munch e que ainda estremecia a atmosfera desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor apressado. E não podia também tapar os olhos para esconder o vexame, mas tampouco necessitava fazê-lo para ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois, embora não pudesse prever se sairia desta vivo, sabia onde queria chegar e como. Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. Tilly corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa. Bastava Tilly fazer o quadrilátero perfeito para voltar ao seu local de trabalho e lá chegar quase desfalecido, desabar num sofá e ser logo acudido pelos seus companheiros preocupados e ansiosos para saber o que aconteceu.Tilly balbuciou antes de desmaiar:
Um bando de assassinos levou meu carro lá na avenida e tentou me linchar.
Tilly foi levado a um hospital onde foi apenas sedado e, no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o local do incidente e para surpresa deles, o carro de Tilly continuava no meio da via pública, com o motor ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois naquela hora o engarrafamento encontrara vazão e o trânsito fluía normalmente. Um comerciante local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a hora do incidente e foi ele quem explicou para os companheiros de Tilly o que se passara.
Não foi nada não. Foi um pessoal que fretou alguns ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi assassinado e eles estavam meio de cabeça quente e descontaram no rapaz só porque ele entrou com seu carro no meio do cortejo fúnebre.
Talvez fosse melhor para Tilly se a dona morte se descuidasse e o levasse, mesmo que fosse de susto, assim ele não teria que continuar levando essa vida ordinária, popularmente chamada de cheia de altos e baixos, com bons e maus momentos se revezando. E a morte retrucou:
Mas, afinal de contas, todos vocês não vivem de outra forma senão com esses intermitentes ups and downs, esses sobe e desce, como autênticos camaleões surfando numa montanha russa e quando seus anjos da guarda já não dão mais conta vocês jogam a culpa na minha prima fatalidade!