sexta-feira, 22 de novembro de 2024

ORGULHO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Ela passou metade da vida com amor-próprio demasiado, Outra metade desatinando uma debilidade camuflada sob a influência das primeiras impressões, Aos poucos irrompendo, E de repente fulminada por uma síncope incubada que só esperava por um sinal da natureza, Como o recuo brusco e sinistro do mar se preparando para o arrebento de um tsunami, E por uma oportunidade matreira, Como o estouro de um champanhe com um diabo de garrafa chocando sua rolha, Ela foi encurralada nas cordas pela sua própria imagem refletida num espelho e esta lhe desferiu um gancho potente como um rojão de vara que se lançou aloprado da plataforma do seu estomago até bater no teto de sua cabeça, Envolvendo-a em completa penumbra e devastando a sua psique com a força de milhares de maremotos, Do que restou de sua personalidade desintegrada não se poderia esperar nem mesmo o renascer de frágeis siriris que voam abobalhados e cambaleando em todas as direções, Batendo cabeças e soltando asas, Em busca do calor do sol poente no entardecer dos dias de verão e encontram a morte abraçados na luz dos homens, Renegar o que mais amava, A música, Para colecionar insetos, Mostra que o que restou de sua mente era bem menos que cinzas, Paradoxalmente, As opiniões de seus terapeutas iam do grandioso, Como uma jovem inteligente e capaz de governar uma nação, Passando por uma normalidade casuisticamente normal, Como uma pessoa apta a exercer atividades civis, Porém não militares, Até chegar ao medíocre, Como uma adulta com dificuldade para lidar com questões intelectuais, Mas apta para desenvolver atividades manuais que exigissem boa coordenação motora, Medíocre porque na adolescência ela ganhou o apelido de catástrofe, um King Midas In Reverse dos Hollies, Pois tudo o que ela tocava virava pó, De onde se conclui que o último diagnóstico fazia dela um zero à esquerda, Mas prometo-lhe, Esta é a última vez que lhe faço uma promessa, Vou libertar você de suas amarras e tirar você de seu casulo, Como John Lennon convenceu Prudence a sair de seu quarto para brincar, Vou livrar você de todos os seus vícios, Como as mãos do médico te livraram de seu ventre materno, Vou romper todos os seus recifes, Para você voltar a nadar em mar aberto de novo, Vou livrar você de toda a sua demência, E você se lembrará do frescor do ar que carrega uma folha de outono, Vou tirar você de dentro dessa armadura, E você voltará a flamejar como fogo que queima todos os miasmas à sua volta, Vou tirar estas vendas de seu olhos, E você chegará sem medo ao outro lado da corda bamba, Vou te ajudar a cegar seu lado cortante, Seu lado censor, Com um bisturi que talha seu orgulho.

ENQUANTO ISSO LÁ NA TERRA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Alguém no pronto atendimento morre por falta de socorro, Imagens de Marte chegam às telas dos cientistas no centro espacial, Um anjo anda manquitolando e voa de asa quebrada, Alguém carrega uma cruz pesada até o alto de um morro, Um homem no vácuo olha o silêncio da terra branca e azul celestial, O espírito de uma pessoa passa por mim e mantém a voz calada, Hoje um menor de idade nunca mais voltará para seu lar, Um eclipse lunar unirá muita gente em dois quadrantes, Alguém derramará lágrimas sob o olhar de seu guia protetor, A flor encontrará espaço no meio do asfalto para brotar, A água do rio tocada com as mãos não será a mesma de antes, O leão acordará depois de vinte horas de sono reparador, Uma prece atendida trará mais sofrimento do que uma não ouvida, Deus entrará com pedido de transferência para outro planeta, Um menino andando de quatro espera o cavalo estercar para ter comida, Uma nova guerra se inicia para terminar a próxima a ser sugerida, Diamantes enfeitam dedos de madames com sangue violeta, A separação dos continentes ajuda a manter a discriminação protegida, Discos voadores cruzam os céus à deriva no tempo e espaço, Eleonora colhe do chão da igreja os grãos de arroz que saudaram recém-casados, Fantasmas de cemitério têm medo de entrar dentro de uma favela, O olhar sem rumo de uma criança de rua penetra como uma lâmina de aço, O solo recebe tanta água quanto cadáveres assassinados, Alguma menina venderá o corpo e dormirá como uma Cinderela, Um homem pobre e condenado é salvo por uma cirurgia espiritual, Cães e gatos repousam sossegados sobre confortáveis almofadas, O mundo se comove com a perda irreparável de uma celebridade mística, Uma bomba atômica é detonada sobre uma cidade para testar seu poder mortal, Gente andará de joelhos até sangrar por graças alcançadas, O extermínio em massa de seres humanos vira mera estatística, A passagem do ano novo é celebrada com fogos de artifício, Pássaros mortos de velhice não serão vistos pelo homem, Os dez mandamentos serão aumentados para mil, Nascer, viver e morrer exigem muito mais que sacrifício, Os alimentos são abundantes mas poucos comem, O que tem pouco a dar e muito a pedir torna-se vil, Alguém abandonado num asilo está prestes a ir para o céu, Naves não tripuladas deixam o sistema solar por controle remoto, O demônio compra almas com prazeres extravagantes, Crianças num orfanato aguardam o ano todo pela chegada de papai Noel, A felicidade de uma família na noite de natal fica registrada numa foto, Cada fração do globo acolhe seus iguais apenas como temporários imigrantes, Amanhã alguém perderá seu teto por falta de trabalho e dinheiro, Uma explosão solar afetará todos os meios de comunicações, O sinistro recuo do mar anuncia uma iminente calamidade, Alguém precisa de cesta básica e enfrenta uma fila o dia inteiro, Astrofísicos já se preocupam com a vida fora da terra para as futuras gerações, João-de-barro é monógamo e morre logo após sua cara-metade, O colibri e a abelha repartem o mel que colhem da flor, A corrida armamentista é prioridade de toda nação, A paz interior é encontrada nas aguardentes e nos entorpecentes, Os hospitais e hotéis para animais são repletos de ternura e amor, Alguém morre a cada três segundos por falta de nutrição, O que se gasta numa guerra é demasiado para ajudar pessoas carentes, Alguém numa UTI de primeiro mundo terá seu sofrimento rapidamente aliviado, Encontraram água numa lua de Saturno e o entusiasmo aumenta, Um anjo caído volta a se levantar e pede para tirar féria, Jesus arrependeu-se de ter sofrido, morto e ressuscitado, A dor alheia passa pelos nossos olhos em câmara lenta, Dois terços de água, um de terra, um terço na opulência, dois na miséria.


PANIS ET CIRCENSES

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Aqui onde vivo, Flutua sobre minha cabeça, Olhos artificiais, Mirando high and low, Para cima, Para baixo, Pra lá, E pra cá, E as galáxias em todos os extremos guardam sempre a mesma distância em todas as direções, Quarenta e seis bilhões de anos luz, Isso faz sentir-me o centro de tudo, Mas o que está além do que o olho enxerga pode ser trilhões de vezes maior, O insondável está para o observável, Assim como o observável está para uma das inúmeras partículas invisíveis de meus olhos, Isso me deixa pequeno, Sem saber em qual cantinho me encontro nisso que não sei o que é, Mas pouco importa, Porque aqui onde moro, Olho para todas as direções, Norte, Sul, Aqui e acolá, E as distâncias são sempre as mesmas, Quase 13 mil quilômetros, Sem ter ninguém a recorrer, Sobre minha cabeça, Pássaros de ferro voam de ponta a ponta, Em todos os sentidos, E a circunferência é sempre a mesma, Pouco mais de 40 mil quilômetros, De mais água que está para a terra, Como a terra está para tanto povo se acotovelando para sobreviver, Aqui onde vivo e me isolam, Quase nada há ao meu redor, Pouco alimento, Pouco entretenimento, Nenhum elemento, Isso faz sentir-me menos que ninguém, Aqui falta tudo, Toda a massa espacial pela qual galáxias, Buracos negros, Estrelas e planetas se digladiam, É um espetáculo, Que não vejo, Nem ouço, Mas sinto que existe onde vivo a todo momento, Isso faz de mim menos que um nada, Não fossem as migalhas de panis e os porres de circenses que me esmolam para nascer e morrer, Sobra pouco tempo para sonhar, Sobra muita fome para comer, Pouca noite para ver a lua morrer de rir, Pouca gente para se divertir e aplaudir nosso sofrer, Nenhuma estrela que a gente possa ver parir e partir.