sexta-feira, 22 de novembro de 2024

ENQUANTO ISSO LÁ NA TERRA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Alguém no pronto atendimento morre por falta de socorro, Imagens de Marte chegam às telas dos cientistas no centro espacial, Um anjo anda manquitolando e voa de asa quebrada, Alguém carrega uma cruz pesada até o alto de um morro, Um homem no vácuo olha o silêncio da terra branca e azul celestial, O espírito de uma pessoa passa por mim e mantém a voz calada, Hoje um menor de idade nunca mais voltará para seu lar, Um eclipse lunar unirá muita gente em dois quadrantes, Alguém derramará lágrimas sob o olhar de seu guia protetor, A flor encontrará espaço no meio do asfalto para brotar, A água do rio tocada com as mãos não será a mesma de antes, O leão acordará depois de vinte horas de sono reparador, Uma prece atendida trará mais sofrimento do que uma não ouvida, Deus entrará com pedido de transferência para outro planeta, Um menino andando de quatro espera o cavalo estercar para ter comida, Uma nova guerra se inicia para terminar a próxima a ser sugerida, Diamantes enfeitam dedos de madames com sangue violeta, A separação dos continentes ajuda a manter a discriminação protegida, Discos voadores cruzam os céus à deriva no tempo e espaço, Eleonora colhe do chão da igreja os grãos de arroz que saudaram recém-casados, Fantasmas de cemitério têm medo de entrar dentro de uma favela, O olhar sem rumo de uma criança de rua penetra como uma lâmina de aço, O solo recebe tanta água quanto cadáveres assassinados, Alguma menina venderá o corpo e dormirá como uma Cinderela, Um homem pobre e condenado é salvo por uma cirurgia espiritual, Cães e gatos repousam sossegados sobre confortáveis almofadas, O mundo se comove com a perda irreparável de uma celebridade mística, Uma bomba atômica é detonada sobre uma cidade para testar seu poder mortal, Gente andará de joelhos até sangrar por graças alcançadas, O extermínio em massa de seres humanos vira mera estatística, A passagem do ano novo é celebrada com fogos de artifício, Pássaros mortos de velhice não serão vistos pelo homem, Os dez mandamentos serão aumentados para mil, Nascer, viver e morrer exigem muito mais que sacrifício, Os alimentos são abundantes mas poucos comem, O que tem pouco a dar e muito a pedir torna-se vil, Alguém abandonado num asilo está prestes a ir para o céu, Naves não tripuladas deixam o sistema solar por controle remoto, O demônio compra almas com prazeres extravagantes, Crianças num orfanato aguardam o ano todo pela chegada de papai Noel, A felicidade de uma família na noite de natal fica registrada numa foto, Cada fração do globo acolhe seus iguais apenas como temporários imigrantes, Amanhã alguém perderá seu teto por falta de trabalho e dinheiro, Uma explosão solar afetará todos os meios de comunicações, O sinistro recuo do mar anuncia uma iminente calamidade, Alguém precisa de cesta básica e enfrenta uma fila o dia inteiro, Astrofísicos já se preocupam com a vida fora da terra para as futuras gerações, João-de-barro é monógamo e morre logo após sua cara-metade, O colibri e a abelha repartem o mel que colhem da flor, A corrida armamentista é prioridade de toda nação, A paz interior é encontrada nas aguardentes e nos entorpecentes, Os hospitais e hotéis para animais são repletos de ternura e amor, Alguém morre a cada três segundos por falta de nutrição, O que se gasta numa guerra é demasiado para ajudar pessoas carentes, Alguém numa UTI de primeiro mundo terá seu sofrimento rapidamente aliviado, Encontraram água numa lua de Saturno e o entusiasmo aumenta, Um anjo caído volta a se levantar e pede para tirar féria, Jesus arrependeu-se de ter sofrido, morto e ressuscitado, A dor alheia passa pelos nossos olhos em câmara lenta, Dois terços de água, um de terra, um terço na opulência, dois na miséria.


3 comentários:

  1. Mais uma bela produção. Parabéns, um abraço grande JACI

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  2. obrigado, Jaci, estaremos só até quando? beijos, alceu

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  3. Li-te no facebook e segui-te até aqui. fizeste-me lembrar um poeta de que gosto muito: António Gedeão e por isso vou obrigar-te a ler um poema dele. Também me veio à lembrança Carlos Drummond, mas este não conheço tão bem. Quanto ao resto já comentei no facebook.


    POEMA DO AUTOCARRO

    Quantos biliões de homens! Quantos gritos
    de pânico terror!
    Quantos ventres aflitos!
    Quantos milhões de litros
    do movediço amor!
    Quantos!
    Quantas revoluções na cósmica viagem!
    Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
    Quantos!
    até eu estar aqui nesta paragem
    à espera do autocarro.
    E aqui estou, realmente.
    Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
    no sangue dos homens que matei,
    no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
    no sangue do que sei e que não sei,
    no sangue do que quis e que não quis.
    Sangue.
    Sangue.
    Sangue.
    Sangue.

    Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
    numa hora qualquer, H ou F ou G,
    uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
    e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
    e eu nem sequer perguntarei porquê.

    Mas...

    Não há mas.
    Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

    Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
    o bem universal,
    sem distinguir ninguém.

    Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.
    Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
    e sem lhes perguntar porque maltratam.
    Eu sei porque é que morro.
    Eles é que não sabem porque matam.
    Eles são pedras roladas no caos,
    são ecos longínquos num búzio de sons.
    Os homens nascem maus.
    Nós é que havemos de fazê-los bons.

    Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
    um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
    um rosto como um gesto suspenso
    que me estivesse esperando.

    Mas o rosto não existe. Existem caras,
    caras triunfantes de vícios,
    soberbamente ignaras
    com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
    O rosto não existe.

    Procura-o.

    Não existe.

    Procura-o.
    Procura-o como a garganta do emparedado
    procura o ar;
    como os dedos do afogado
    buscam a tábua para se agarrar.

    Não existe.

    Vês aquele par sentado além ao fundo?

    Vês?

    Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
    simboliza o amor.
    Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
    uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
    que eles continuariam a sorrir-se.

    Não crês no amor?

    ?

    Não ouves?

    ?

    Não crês no amor?

    Cala-te, estupor.
    Tenho vergonha de existir.
    Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
    colaborando
    sem resistir.

    Disso, e do resto.
    Vergonha de sorrir para quem detesto,
    de responder pois é
    quando não é.
    Vergonha de me ofenderem,
    vergonha de me explorarem,
    vergonha de me enganarem,
    de me comprarem,
    de me venderem.

    Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
    Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
    É só estender a mão
    e aceitar o prospecto.

    A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
    expulso da sociedade para que a não prejudique.

    Hã?

    Ah! Desculpe. Estava distraído.
    Um de quinze tostões. Campo de Ourique.

    Máquina de fogo, 1961

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