quinta-feira, 17 de outubro de 2024

STONED MEDLEY

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Minhas ideias e pensamentos ocorrem ao acaso, Agem com indiferença e descaso, São muito convenientes e vêm a propósito, Elas referem a minha mente ao achado e à perda do meu juízo, Um desacerto infeliz, Com tremendo azar, Li o jornal hoje, Meu amor, Uma mulher morreu por um bala perdida no Rio, Embora a notícia fosse tão triste, Tive que sorrir, Meu amor, Antes ela do que uma embrionária democracia, Esta porra é como uma joia perdida, Uma carta extraviada, Humanidade pervertida, Gente viciada, Amizade destruída, Como um navio irrecuperável, Tudo sem esperança, Demência terminal, Aquela mulher era extremamente apaixonada por baladas, Navegava aflita pela internet, Num lugar distante, Privada de fortuna, Doía-lhe fundo a perda de seu marido, Doía-lhe fundo a falta de um macho ou fêmea, Era como extravio de documentos e dinheiro, Como aniquilamento de vida e matéria, Deixando de ganhar uma batalha, Um jogo, Uma oportunidade, Foi danação da alma, Seu credor sofre prejuízos em consequência da concreta diminuição do patrimônio dela, Pela cessação de lucros que os dois deviam ter recebido, Vi a foto de outra mulher no jornal hoje, Meu amor, Ela teve o corpo violentado até a morte, Ela não percebeu que o homem era um psicopata, Muita gente a conhecia, Mas ninguém tinha certeza se ela era esposa de algum juiz do STJ, Diligenciava inutilmente eleger-se senadora, Aos 40 anos, Diante da desolação paterna, Provocada pela orfandade, Procurava o suicídio, Com o que podia amealhar podia empreender a montagem de seu próprio negócio, Suas pupilas negras, Mortas e vivas na perdição, Pareciam pássaros dentirrostros exercitando as asas para voar, Você viu a insana fantasia dessa mulher, De arriscar-se num mar com vela e remo? De experimentar quatro roscas num parafuso e nenhum servir? É o coisa-à-toa quem instiga as boas almas para o mal, As felicidades oferecidas por ele não deveriam causar desejo à mulher, O tinhoso procurou seduzir o mitológico Jesus, Mas ele instaurou uma desautorizada ação de despejo do tinhoso em pleno deserto, O que ocorreu com aquela mulher foi uma medida da flutuação dos resultados das medidas iteradas de uma grandeza realizada por um processo isento de vício, Afinal, Quem se presta a indicar a conexão entre diversas corrupções, Porque estão presentes em mais de uma e são de natureza tal que seria improvável que diferentes corruptores pudessem nelas incorrer independentemente? Eles são excêntricos sistêmicos existentes nas graduações, Como nos círculos astronômicos, Por não serem coincidentes os centros dos círculos e das suas graduações, Eles são uma aproximação modular de diferença entre o limite de uma corrupção e o valor que se aceita para corromper, Assisti a um filme hoje, Meu amor, O governo brasileiro acabara de se moralizar, Muita gente deixou a sala do cinema, Mas eu precisava ver até o fim, Porque já tinha lido o livro, Como eu gosto de te deixar turned in, Meu amor!, O que aconteceu com aquela mulher foi um deslize que se comete num cálculo aproximado quando se efetua um arredondamento, Pois no julgamento de uma hipótese estatística, Ela rejeitou a hipótese por sendo ela verdadeira, Portanto, De primeira gravidade, Hoje acordei às cinco da matina, Meu amor, Me arrastei até o banheiro, Desci para queimar um pacau, Era cedo demais para curtir sozinho, Voltei logo para a cama, Mas você ainda roncava, Então tomei um azulzinho maravilha, Fiz um 5 contra 1, Você resmungou alguma coisa, Fiz a cobra cuspir e dormi novamente, O que ocorreu com aquela mulher foi que, No julgamento de uma hipótese estatística, Ela rejeitou a hipótese por sendo ela falsa, Portanto, De segunda gravidade, Pense na média dos valores absolutos de um conjunto de erros acidentais, Num desvio padrão de um conjunto de erros acidentais, Vou ver o noticiário hoje à noite, Meu amor, Haverá trilhões desviados dos cofres públicos, E embora será incalculável a quantidade de notas, Eles contarão uma por uma, Então eles saberão quanto mais dinheiro será necessário para exaurir a nação, Quando isto está presente numa corrupção mas não em outra, Se permite reconhece-las como independentes, Decorre de um vício num processo de medida, Não tendo, Por isso, Caráter aleatório, É constante, Pode ser um engano cometido pela mídia na abordagem original, Pode ser um piolho, Jamais vou cair no erro de te deixar turned off, Meu amor. 


CIDADE DA MORANGA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
 

A noite tardia fica mais calada longe da agitação urbana. Ela não arfa e sua suave respiração é abafada por burburinhos do universo, remanescentes da grande explosão, uma explosão de querença. ‘Quero luz!’, gritou o negrume abissal quando só existia o nada. Quem comunga com o universo na madrugada, mesmo de olhos abertos, capta o eco de suas vibrações. De olhos fechados é possível ouvi-los e até vê-los. Matilda dirige com sua atenção visual toda voltada para a estrada, pois não é a todo instante que a caligem da noite é fosforeada pelos clarões artificiais das habitações que margeiam o caminho. Seus pensamentos se perdem nas lembranças de sua melhor amiga e se reencontram na imagem da cidade da moranga que ela guarda no seu inventário de processos e fatos psíquicos que atuam sobre sua conduta, mas que escapam ao âmbito da consciência de pessoas normais e nelas só irrompem em sonhos, em atos falhos, e em estados neuróticos ou psicóticos, quando a consciência não está vigilante. Nestes últimos vinte anos, Matilda passou por este mesmo caminho pelo menos duas vezes. Numa delas, voltando para casa, ela viu do lado direito da estrada quase o vale inteiro da moranga, mas não teve coragem de entrar na cidade. Não estava preparada ainda. Se não fosse sua necessidade de cumprir uma promessa feita à sua melhor amiga de redescobrir a cidade, ela teria ficado apenas com o registro da imagem da cidade com sua criptomnésia, que atua como uma câmera fotográfica que precisa só de uma fração de segundo de luz, e sem nenhum esforço da vontade ou da memória ela a retirou do seu patrimônio inconsciente. Ela é um cartão postal monocrômico, não muda nunca. No fundo há uma encosta, não muito acima do plano horizontal dos olhos, onde se amontoam casas acabadas que não lembram favelas ou periferias paupérrimas, e entre elas há entranhas, mas não muita vegetação. O grosso da cidade está no centro, abaixo do nível da estrada, mas os topos das edificações mais altas denunciam várias convenções de concreto. Uma igreja, a prefeitura, uma biblioteca, talvez a delegacia onde sua amiga esteve, talvez um dos vários hotéis, uma cidade destas deve ter pelo menos uns três, fora os motéis, ou talvez algumas pousadas. No primeiro plano, a cidade se esconde por baixo da estrada. Deve estar ali o matagal por onde sua amiga fugiu. Não será difícil traçar o percurso da última grande corrida da via dolorosa de sua amiga, quando voltava para casa sem um ponto de partida, ganhando a estrada numa noite caída, parou no acostamento sem motivo aparente, foi abordada por homens na escuridão num repente, embrenhou-se no matagal sem rumo confiável, foi seguida por dois numa perseguição implacável, avistou luzes com sinais de vida, deixou para trás ladrões na noite vencida, andou pelas ruas sem encontrar uma delegacia, decidiu descansar e refletir numa hospedaria, lendo um jornal com uma manchete da antiguidade, que a seduziu pela morte na clandestinidade, acordou-a na manhã sem resposta ao seu quesito, tendo repreendida sua curiosidade num distrito, e voltou para casa com um enigma sonhado, e lembrou-se da cidade com nome transliterado, para onde hoje Matilda retorna vinte anos depois sem a escrita de Zeus, para desvendar o mistério da moranga nas linhas tortas de Deus.