A noite tardia fica mais calada
longe da agitação urbana. Ela não arfa e sua suave respiração é abafada por
burburinhos do universo, remanescentes da grande explosão, uma explosão de
querença. ‘Quero luz!’, gritou o negrume abissal quando só existia o nada. Quem
comunga com o universo na madrugada, mesmo de olhos abertos, capta o eco de suas
vibrações. De olhos fechados é possível ouvi-los e até vê-los. Matilda dirige
com sua atenção visual toda voltada para a estrada, pois não é a todo instante
que a caligem da noite é fosforeada pelos clarões artificiais das habitações que
margeiam o caminho. Seus pensamentos se perdem nas lembranças de sua melhor
amiga e se reencontram na imagem da cidade da moranga que ela guarda no seu
inventário de processos e fatos psíquicos que atuam sobre sua conduta, mas que
escapam ao âmbito da consciência de pessoas normais e nelas só irrompem em
sonhos, em atos falhos, e em estados neuróticos ou psicóticos, quando a
consciência não está vigilante. Nestes últimos vinte anos, Matilda passou por
este mesmo caminho pelo menos duas vezes. Numa delas, voltando para casa, ela
viu do lado direito da estrada quase o vale inteiro da moranga, mas não teve
coragem de entrar na cidade. Não estava preparada ainda. Se não fosse sua
necessidade de cumprir uma promessa feita à sua melhor amiga de redescobrir a
cidade, ela teria ficado apenas com o registro da imagem da cidade com sua
criptomnésia, que atua como uma câmera fotográfica que precisa só de uma fração
de segundo de luz, e sem nenhum esforço da vontade ou da memória ela a retirou
do seu patrimônio inconsciente. Ela é um cartão postal monocrômico, não muda
nunca. No fundo há uma encosta, não muito acima do plano horizontal dos olhos,
onde se amontoam casas acabadas que não lembram favelas ou periferias
paupérrimas, e entre elas há entranhas, mas não muita vegetação. O grosso da
cidade está no centro, abaixo do nível da estrada, mas os topos das edificações
mais altas denunciam várias convenções de concreto. Uma igreja, a prefeitura,
uma biblioteca, talvez a delegacia onde sua amiga esteve, talvez um dos vários
hotéis, uma cidade destas deve ter pelo menos uns três, fora os motéis, ou
talvez algumas pousadas. No primeiro plano, a cidade se esconde por baixo da
estrada. Deve estar ali o matagal por onde sua amiga fugiu. Não será difícil
traçar o percurso da última grande corrida da via dolorosa de sua amiga, quando
voltava para casa sem um ponto de partida, ganhando a estrada numa noite caída,
parou no acostamento sem motivo aparente, foi abordada por homens na escuridão
num repente, embrenhou-se no matagal sem rumo confiável, foi seguida por dois
numa perseguição implacável, avistou luzes com sinais de vida, deixou para trás
ladrões na noite vencida, andou pelas ruas sem encontrar uma delegacia, decidiu
descansar e refletir numa hospedaria, lendo um jornal com uma manchete da
antiguidade, que a seduziu pela morte na clandestinidade, acordou-a na manhã sem
resposta ao seu quesito, tendo repreendida sua curiosidade num distrito, e
voltou para casa com um enigma sonhado, e lembrou-se da cidade com nome
transliterado, para onde hoje Matilda retorna vinte anos depois sem a escrita de
Zeus, para desvendar o mistério da moranga nas linhas tortas de Deus.
Parabéns 👏
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