domingo, 27 de outubro de 2024

TURNING POINT OF AN IDLE CHAT


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Ele está de malinha pronta
Ele sempre viaja
Sozinho assim?
Ele nunca apronta
O que houver que haja
Não pula a cerca até o fim?
Você é mesmo marota
Será que ele brigou com ela?
Ele não briga com ninguém
Nunca deixaria uma linda garota
E você me acha bela?
Igual a você não tem
Então por que não me leva embora?
Com pouca roupa ele não vai longe
Nem a Paris, nem a Veneza
Talvez para terra de Pandora
Ou para o Tibete e ser um monge
Fazer voto de pureza?
Pode ser um momento de indecisão
Veja o brilho em seu olhar
Então deve ser a terra de Vitória
E se forem olhos de desilusão?
Veja seu modo de andar
Não parece uma postura que sugere glória
Será que vai tomar um banho de civilização?
Pode muito bem estar feliz neste inferno
Alugar isso aqui e vender Londres?
Veja o traje dele de descontração
Faz tempo que ele abandonou o terno
Até o linho da terra de Flandres
Ele é jovem por fora e sentimental por dentro
Corpo de homem e alma feminina
Jeans, camiseta preta, flores amarelas
Nem da esquerda, nem da direita, nem do centro
Conhece alguém assim com tanta adrenalina?
Você é uma delas
Isso me dá uma vontade!
Ele tinha jeito de me vou ou perco a cabeça de vez
Alguma coisa o fez mudar de ideia
Trocando conformismo por licenciosidade
Ou idealismo por falta de honradez
Ou a França pela terra de Medeia
Não é viagem a trabalho nem a passeio
Então vai pegar aquele trem só de ida?
Deve ter sido chamado para uma emergência
Ser um substituto por falta de outro meio
Ou ajudar alguém a cicatrizar uma ferida
Mas ele parece não ter urgência
E aquela história dele escrever um script para o cinema?
Mania passageira
E aquela dele dar curso sobre o Jesus histórico?
Pregação no deserto de dar pena
É aquela dele montar uma escola para ensinar língua estrangeira?
Ressuscitação de um passado fantasmagórico
Quem ele poderá substituir?
Talvez uma tragédia recente para excomungar uma antiga
É Antígona dando continuidade ao drama do irmão?
Ou Shakespeare copiando-a para Romeu e Julieta fazer essa história se repetir
Acha que para evitar o pior devemos fazer figa?
Pressinto que desta vez não
Veja sua expressão descontraída
Bonita como a minha?
Você não toma jeito
Você já viajou nesse trem só de ida?
Estamos nele, mas não chegamos ao fim da linha
Gosto muito deste carro leito
Por que não paramos na próxima estação para ver gente?
Já falta pouco para o nosso quando e o nosso onde
Será que ele embarca e segue viagem conosco?
Acho que ele vai voar até o sol poente
Ver o onde o sol se esconde?
Ver pela última vez o último raio fosco
Tem certeza que ele nunca pulou a cerca?
Isso não é jeito de falar
Que tal um modo de te seduzir?
Está querendo que eu me perca?
E se eu me comportar?
Talvez eu possa te incluir
Olha só, o trem parou e ele embarcou ao som do sino!
Vamos sentar ao lado dele e perguntar
Desculpe-me de ser tão enxerida
Nós queríamos saber qual é seu destino
Se não quiser, não precisa falar
Vou enfiar minha cabeça na privada deste trem
Puxar a descarga 
Esvaziar minha mente
E chegar em Vênus
Onde ninguém vai ligar para minhas flatulências
Desculpe minha intromissão
Só se Vênus tivesse uma temperatura entre 100 a 150 graus
Então existiria água na superfície do planeta
Por causa de sua pressão extremamente alta
No entanto a temperatura de Vênus chega a quase 500 graus
E uma vez que o ser humano é composto predominantemente de água
Você não vai conseguir soltar gases lá
Ao contrário
Lá você se tornará um verdadeiro flato
Ajudei?
Muito
Minha mãe sempre me disse que a vida é só um gás
Peguei o trem certo
Obrigado
Nossa, ele vai se perder ainda mais na vida
Perder os amigos e a família que nunca teve
Jogar fora seu nome
Recomeçar de um novo ponto de partida
Passar mais dez anos por onde já esteve
Beirar a privação até a fome
Perdoar-se em primeiro lugar
Renascer das cinzas e do seu amor próprio
Viver à margem de todas as convenções
Jamais orar como um hipócrita vulgar
Ser feliz no seu mundo alienatório
Passar o resto de sua vida sem nossas bendições


A PSICOGRAFIA DE CHICO XAVIER

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Há trinta anos, eu dei uma palestra sobre Sócrates numa casa espírita. O texto que preparei estava muito longe de ser espiritual, mas tive que fazer algumas pequenas concessões para que meu discurso pudesse receber a atenção do público heterogêneo daquela sociedade quase filantrópica. Uma das maiores preocupações dos dirigentes espíritas é evitar que uma personalidade histórica, como Sócrates, seja colocada lado a lado, em termos morais, com uma figura mitológica, como Jesus. Por ocasião da preparação de minha palestra, um desses dirigentes, bem-intencionado, entregou-me um livro psicografado por Chico Xavier, chamado Crônicas do Além-túmulo, e que contém uma entrevista que o suposto espírito de Humberto de Campos, escritor brasileiro morto em 1934, apelidado de Irmão X, fez com Sócrates no plano espiritual. Aquele curto texto de nada me serviu, mas seu conteúdo estarreceu-me com tanta falta de conhecimento e excesso de preconceitos. Encontro, agora, ensejo para escrever sobre a psicografia de Chico Xavier, uma vez que o espiritismo está na moda com os filmes CHICO XAVIER, AS MÃES DE CHICO, NOSSO LAR e O LIVRO DOS ESPÍRITOS, todos, aliás, muito fracos e piegas. O mais agravante é o fato de que os produtores desses filmes querem passar ao público a ideia de que não se trata de ficção (de baixa categoria), mas de realidade. Não há dúvidas que estes filmes levam ao delírio o único público que os assistem: os fanáticos espíritas. Para mim, Chico Xavier foi um criptomaníaco. Este neologismo não tem nada de pejorativo. Eu o inventei a partir de uma palavra verdadeira: criptomnésia. Portanto, quando digo que Chico Xavier foi um criptomaníaco, quero apenas dizer que ele foi uma pessoa afetada por criptomnésia. Enquanto os espiritualistas acreditam que tudo o que Chico escreveu foram mensagens psicografadas por espíritos de gente morta, uma análise científica dos seus textos prova que seus escritos são apenas resultados da criptomnésia, que é uma condição na qual uma pessoa tem lembranças ou habilidades que ela pode acessar, mas que foram adquiridas subconscientemente ou através de meios subliminares. Em geral, a pessoa não tem nenhum conhecimento de como ou quando tais memórias e habilidades foram adquiridas. Elas podem ficar armazenadas por um longo período de tempo até emergirem através de transe hipnótico, meditação e auto-hipnose. Há vários tipos de criptomnésia. Uma delas é a xenoglossia, a habilidade de falar idiomas que nunca se estudou e com os quais jamais se teve qualquer contato. Outra é a escrita automática, que os espíritas chamam de psicografia, que revela a capacidade que uma pessoa tem de escrever uma grande quantidade de informações a ela desconhecidas, sem nenhum desejo consciente de fazê-lo, decorrendo daí o fato de os espíritas acharem que tais escritas automáticas são iniciativas espontâneas de espíritos de pessoas que já faleceram e que resolvem escrever histórias, contos, crônicas e depoimentos através de pessoas dotadas de percepções extrassensoriais, ou médiuns, como o Chico. Eu não conheci o Chico Xavier, aliás, conheci-o somente por 60 segundos, insuficientes para fazer uma ideia de seu caráter. No entanto, conheci vários amigos íntimos de Chico que o descreveram como uma pessoa extraordinária, fora do comum. Logicamente, esses amigos do Chico são muito suspeitos para falar sobre ele porque são espíritas Kardecistas e, como todos sabem, os espíritas costumam viajar muito na maionese. De forma geral, muitas celebridades, artistas e até políticos que conheceram o Chico, reconheceram nele uma pessoa diferente e excepcional. Não duvido disso. Chico deve ter sido uma pessoa muito especial mesmo. Mas ele é mais conhecido pelo vasto acervo de livros que escreveu. Li vários destes livros e digo que a maioria deles é extremamente pobre de ideias. Muitos dos longos romances de Chico são exageradamente sentimentais, contaminados de moralismo puritano e religiosidade, como se a vida após a morte não fosse um fenômeno natural deste planeta e do universo, mas uma criação da fé cristã (para os espiritualistas, não há vida após a morte sem o cristianismo com todas as suas fantasias). Os livros do Chico são facilmente previsíveis, como os de Paulo Coelho. Depois da quinta página, já se sabe como a história vai terminar. São também excessivamente repetitivos, sempre com a mesma história e o mesmo enredo, mudando somente o cenário e os nomes dos personagens. Os textos mais curtos do Chico são igualmente enfadonhos, e alguns chegam a subestimar a inteligência e a cultura. Outros até que têm boas frases moralizantes e edificantes, mas, ainda assim, muito carolas. Enquanto ele escrevia histórias fictícias, mesmo bregas e melodramáticas, ele conseguia arrebanhar um público apaixonado e pouco culto, o mesmo que colocou os livros da Zibia Gasparetto entre os mais vendidos do país. Mas quando o Chico se punha a escrever sobre histórias reais que pudessem ser confrontadas por livros acadêmicos, Chico se saia muito mal. Como exemplo, analiso aqui um de seus textos curtos, justamente aquele que me foi dado para ler, sobre Sócrates. O texto original é separado em parágrafos numerados em itálico e negrito para facilitar a identificação de meus comentários marcados por letras azuis.

FRANCISCO CANDIDO XAVIER, CRÔNICAS DE ALÉM-TÚMULO, pelo Espírito Humberto de Campos, 25 - SÓCRATES, página 76, 7 de janeiro de 1937.

1. Foi no Instituto Celeste de Pitágoras (1) que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre filho de Sofronisco e Fenareta. A reunião, nesse castelo luminoso dos planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as melodias da Natureza. O palácio consagrado a Pitágoras tinha aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado.

a) Como o suposto autor espiritual deste texto foi um poeta e escritor, Chico se permite florear em demasia a descrição do local onde Sócrates é esperado, a ponto de fazer alusão a personagens da mitologia grega, como Orfeu e Pan. Se existe vida após a morte, imagino que o lado de lá não seja idêntico ao lado de cá. Mas esta não parecia ser a opinião do Chico. Não sabemos se os espíritos resolveram prestar uma homenagem à civilização mais inteligente que já houve na terra, ou se a réplica, no plano espiritual, das edificações da gloriosa Atenas é mero fruto de uma doentia saudade dos tempos de encarnados na terra. Logo saberemos.

2. Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo. Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucídides, Lísis, Esquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens.

b) Faltam, nesta lista do Chico, vários dos cidadãos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas: Galileu Galilei, Francis Bacon, Rene Descartes, Thomas Hobbes, John Locke, Isaac Newton, George Berkeley, David Hume, Immanuel Kant, George Wilhelm, Friedrich Hegel, Auguste Comte, Karl Marx, etc. Para Chico, os mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas são apenas os helenos da Grécia clássica! Poetas, escritores, músicos, filósofos, políticos, oradores e historiadores. Mas, mesmo nesta relação de Gregos clássicos, faltam exatamente as figuras mais respeitáveis na história da produção do conhecimento humano: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides, Heráclito, Demócrito, Zenão, Epícuro, Pirron, etc. Nem mesmo o grande Pitágoras, a quem Chico diz ter sido consagrado aquele Instituto Celeste, é mencionado!

3. Admirei-me, porém, de não encontrar ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento...

c) A preocupação com a ausência de Platão é injustificável, tendo em vista que a maioria dos gênios da humanidade não está presente. Também não se justifica esperar que os juízes que condenaram Sócrates, e que não deram nenhuma contribuição à ciência ou à filosofia, pudessem estar presentes num conclave dos vultos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todos os tempos.

4. ...quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve moldavam-lhe o semblante jovial e tranquilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura.

d) O Chico era famoso por fazer uso demasiado de adjetivos (e eu sou também, mas não famoso). Aqui ele emprega vários em poucas frases. Soma-se à adjetivação o estilo excessivamente floreado.

5. As palavras de Sócrates contornaram as teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais, tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro espiritual. É verdade que não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a abordá-lo:

e) Segundo a história, o humilde Sócrates costumava falar aos jovens nas praças públicas com extrema clareza e simplicidade, mas agora ele fala nos palanques celestiais do plano espiritual com extrema complexidade e sofisticação. Ao deixar o mundo terreno e mudar-se para os planos divinos, o Sócrates do Chico deixa a humildade de lado e fala de forma tão complicada que se torna impossível transmitir ao mundo a expressão exata de seus ensinamentos. Nem mesmo Deus é capaz de entender sua avançada sabedoria espiritual. Quando NADA se sabe sobre alguém e, mesmo assim, tem-se a pretensão de conhecê-lo a fundo, é muito comum ouvir explicações como esta: ‘Não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual’. Oras, eu, também, não tendo condições de provar que estamos sendo visitados por alienígenas, posso dizer aos meus amigos que mantive contato imediato do quarto grau com os ocupantes dos discos voadores, mas não posso descrevê-los para eles e nem mesmo transmitir-lhes a expressão exata da sabedoria de suas comunicações telepáticas, estribados na mais elevada das perfeições morais, levando-se em conta a sofisticação de suas tecnologias, incompreensíveis para as ciências atuais de nosso planeta. Simples, não?

6. - Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias? - Seria inútil - respondeu-me bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando lhes os mais nobres sentimentos de humanidade.

f) O Sócrates da história teria ficado lisonjeado se fosse convidado a falar aos homens comuns, mas o Sócrates do Chico SE NEGA a falar a gente simples, pois agora ele faz parte do mundo das criaturas superiores, mas, mesmo assim, ele se esquece de quem foi (ou ainda é) e comete alguns deslizes humanos, como, por exemplo, repetir o chavão não reconhecem a si mesmos.

7. - Mas. . . - retorqui - lá no mundo há uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir! ...
- Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência. A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência individual, quase sempre difícil e dolorosa.

g) O Sócrates de Chico e dos raciocínios profundos e transcendentes continua se negando a falar aos homens comuns, porque ele está muito acima deles. Agora, ele é um Deus!

8. Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os Espíritos aí encarnados deixarem de serem cidadãos para serem homens conscientes de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas, enquanto existirem sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender essa fraternidade no campo sociológico. Impressionado com essas respostas, continuei a interrogá-lo:

h) O Sócrates de Chico diz que o homem precisa deixar de ser cidadão, porém o Sócrates histórico foi um ferrenho cidadão Ateniense, tendo, inclusive, servido o exército para defender sua Cidade-Estado. O Sócrates do Chico perdeu a oportunidade de ter nos ensinado quais invenções na terra NÃO SÃO puramente humanas. E mais uma vez, o Sócrates do Chico repete o chavão o homem não se descobriu a si mesmo.

9. - Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que cometeram, condenando-vos à morte?
- De modo algum. Miletos e outros acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o exemplo vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor e da morte.

i) Nos parágrafos 6 e 7, Sócrates diz ser inútil enviar suas mensagens benevolentes e sábias para o mundo e para uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de ouvi-lo, mas, para ele, é MUITO OPORTUNO criticar um insignificante personagem Grego como Mileto! Está claro que a criptomnésia não agraciou Chico com qualquer conhecimento sobre Sócrates, por isso a única coisa que Chico tem a dizer sobre Sócrates é aquele velho chavão que todos nós conhecemos e que ele repete, pela terceira vez, neste curto texto: enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma.

10 - Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos discípulos?
- Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre -, é de lamentar as observações mal avisadas de Xenofonte, lamentando eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e benfeitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época e nem se desviaria- para as afirmações dogmáticas no terreno metafísico...

j) Quando perguntado, três vezes, se ele gostaria de dizer algo ao mundo, o Sócrates de Chico disse, terminantemente, ser inútil! Mas, quando perguntado se ele gostaria de falar sobre seus discípulos, não hesitou em responder: perfeitamente! Este é o momento catártico do texto que tem como objetivo principal criticar os que foram aclamados como grandes homens pela história e que incomodam o Sócrates do Chico. As chamadas palavras desavisadas de Xenofonte as quais o Sócrates de Chico refere-se são aquelas que mostram o Sócrates humano, que não trabalha, que briga com a mulher, não se dá com o filho mais velho, não toma banho, anda descalço e fica uma semana inteira sem trocar de roupa. As palavras desavisadas são aquelas que mostram um Sócrates menos sábio do que moralista e menos moralista do que desmazelado. Mas o calcanhar de Aquiles do Sócrates de Chico não é Xenofonte; é Platão, o verdadeiro gênio, e quando ele se põe a falar de seu maior admirador, ele começa a dar sinais de ignorância. Eu, que sou leigo e um Zé-ninguém, sei que, quando escreveu o livro Apologia, Platão não reproduziu palavras de Sócrates, mas apenas escreveu o que ele, Platão, gostaria de ter dito, em defesa de Sócrates, aos juízes que o condenaram. Vejam só a maestria das ‘ladainhas laudatórias’ de Platão que tanto irritam a fonte inconsciente de Chico: ‘Não me insurjo contra os que votaram contra mim ou me acusaram. A verdade é que não me acusaram e me condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano; nisso merecem censura. Contudo, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos cresceram, castigai-os e atormentem-nos com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude. Se eles se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem, e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu terei recebido de vós justiça; eu e meus filhos também’. Até Deus aplaude estas frases que o Sócrates de Chico chama de ladainhas laudatórias.

11. ...Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias.

k) É sempre FÁCIL falar bem de pessoas das quais pouco se sabe, como Antístenes. Quanto menos se sabe de uma pessoa, mais ela é endeusada e mais dela se fala e este é o caso de Jesus. Mas aqui, ao falar pela segunda vez de seu desafeto, chamado Platão, o Sócrates de Chico assina o atestado de burrice com a frase Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio?’ No seu magnífico livro chamado Fedão, Platão narra a conversa que Sócrates teve com vários amigos no seu último dia na prisão quando, antes do por do sol, ele seria executado. Historicamente, Platão não esteve presente, mas soube de todos que lá estiveram e até mesmo o que conversaram. Platão não narra o que realmente foi falado naquele último dia de Sócrates. Ele apenas escreve, com sua genialidade, sobre o que ele, Platão, acha que seu mestre poderia ter conversado com seus amigos. Para alguém que está prestes a partir para o outro lado, nada melhor do que falar sobre a alma e o que nos espera após a morte (um dos assuntos prediletos de Platão - Leiam o tomo número 10 de A República). Se vocês lerem o Fedão de Platão, notarão que o tempo todo ele faz Sócrates descrever a morte como uma libertação final do espírito, afirmando que o corpo físico nada mais é que uma prisão para a alma e que, quando se morre, o espírito se vê livre desta doença chamada corpo. Como se sabe, Sócrates foi condenado à morte sob a acusação de desvirtuar os jovens com ideias nada convencionais e de denegrir a imagem da religião grega de muitos deuses. No momento derradeiro do livro, o carrasco faz Sócrates beber cicuta. Quando o veneno começa a fazer efeito, Sócrates desaba sobre a cama e permanece quase imóvel. Um de seus amigos o segura pela cabeça e pergunta se ele deseja dizer suas últimas palavras. Sócrates responde: Não se esqueça de que devemos pagar um galo ao deus Asclépio (Esculápio para os romanos). Frase magistral! Mata dois coelhos com uma cajadada só. Asclépio era o deus da medicina e da saúde ao qual as pessoas com enfermidades faziam promessas para se curarem e lhe ofereciam um animal para sacrifício, da mesma forma, como nos dias de hoje, muitas pessoas vão a Aparecida do Norte e fazem promessas para curarem-se de suas enfermidades e oferecem os mais diferentes objetos como pagamento pelo pedido atendido. Com essa lembrança do deus Asclépio, exatamente nos últimos instantes da vida de seu mestre, Platão quis mostrar que, na verdade, Sócrates nada tinha contra a religião de muitos deuses da Grécia, e, ao mesmo tempo, ao pedir para seu amigo pagar um galo a Asclépio, ele está sendo coerente com o tema que ele escolheu para discutir no seu último dia de vida e, assim, pagar uma promessa por uma graça alcançada: Ele está morrendo e seu espírito está sendo curado desta doença chamada corpo, graças a Asclépio, o deus da saúde. Simplesmente genial! E é dessa frase que o Sócrates de Chico tem ciúmes a ponto de achar que Platão teria insinuado que o Sócrates histórico falou isso de verdade. Quanta ingenuidade! Quanta falta de cultura! Quanta falta de inteligência!

12. - Mestre, e o mundo? - indaguei.
- O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon, os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!. . . A nossa única realidade é a vida do Espírito.

l) Todos os espiritualistas dizem que nossa única realidade é a vida espiritual e não a material. O problema é que não existe prova nenhuma de que existe vida após a morte ou vida espiritual e, enquanto não obtemos uma prova concreta, resta-nos deliciarmo-nos com A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que narra as lutas de Atenas e Esparta; encantarmo-nos com as glórias do Pártenon que ainda está de pé na Grécia atual e com os esplendores do século de Péricles registrados nesta grande invenção puramente humana chamada livro. Se o mundo espiritual realmente existe como acreditava Chico, então não devemos nos preocupar com tudo que ficou reduzido a cinzas na terra, pois tudo está sendo reconstituído nos planos divinos, se levarmos a sério o que está escrito no parágrafo 1.

13. - Não vos tentaria alguma missão de amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração humana?
- Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo.

m) Por três vezes, o Sócrates de Chico recusou-se a enviar uma mensagem de solidariedade aos simples mortais ainda encarnados. Agora, ele insinua ser inútil voltar à terra com uma missão de amor, porque o esforço que o homem faz na terra não passa de puro verbalismo. No entanto, tudo o que o Humberto e o Sócrates de Chico disseram neste texto não passa de puro verbalismo: muita eloquência, nenhuma substância e nenhuma lógica.

14. E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o, grande filósofo sentenciou:
- As criaturas humanas ainda não estão preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda, todos os discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!

n) E se todas as palavras proferidas pelos mais venerados sábios do plano espiritual forem semelhantes a estas, estaremos despreparados não somente para o amor e a para a liberdade, mas também para a sabedoria e a imparcialidade!

15. E enquanto o ilustre sábio ateniense se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e rara entrevista.

O que aprendemos com esta entrevista do Sócrates do Chico? Absolutamente nada! O Sócrates de Chico limita-se a repetir o que qualquer leigo já sabe: que devemos conhecer a nós mesmos. O resto é puro verbalismo de quem não sabe o que escrever sobre o Sócrates histórico. Se você, leitor, tiver um pouquinho da inteligência do Platão, descobrirá que este texto não é sobre Sócrates. Desde o terceiro parágrafo, o autor vem preparando o leitor para o que mais lhe interessa: criticar Platão. E por que criticá-lo? Talvez porque ele foi o verdadeiro filósofo de todos os séculos. Ou talvez porque o cristianismo é o piano da mitologia judaica carregado pelos ombros do neo-platonismo e do estoicismo e que receberam o rótulo de moral cristã (com uma oportuna contribuição do império romano), fanaticamente atribuída a um personagem chamado Jesus de Nazaré que não existiu. Mas o Chico não teve culpa disso. Como eu disse, ele era afetado pela criptomnésia, isto é, ele tinha acesso inconsciente a uma fonte de informação que ele desconhecia (se quiser, pode chamar isto de percepção do inconsciente coletivo no estado vígil). A única coisa que podemos asseverar, com toda a certeza, é que a fonte a qual ele teve acesso, pelo menos para escrever este texto, nos dá uma verdadeira aula sobre como fazer críticas levianas a gênios da humanidade, primando pela adoração das palavras e gosto da eloquência vazia de conteúdo e significado. Aos cristãos e, em especial, aos espíritas, isto que vou dizer parecerá um sacrilégio: boa parte da chamada moral cristã foi simplesmente chupada dos livros de Platão. Esta deve ser é uma das razões pela qual Platão foi tão invejado e criticado neste texto do Chico. Ah, que bom seria se todas as máximas da moral cristã fossem, realmente, de autoria do mito chamado Jesus Cristo!

Nem tudo o que Chico escreveu provém da criptomnésia. Vários de seus escritos e declarações advêm de seu inconsciente e consciente pessoal e coletivo, refletindo o ambiente em que foi criado, as influências sociais e religiosas que sofreu, seu nível cultural e intelectual e sua indiscutível percepção extrassensorial e sua cripto. No entanto, se este texto do Chico é uma prova de que existe vida após a morte, deduzo que 1) Sócrates não era tão sábio como conta a história, mas, ao contrário, muito burro ou 2) O espírito de  Humberto de Campos mentiu ao dizer que encontrou-se com o espírito de Sócrates e inventou uma suposta entrevista apenas para criticar Platão, seu desafeto e um filósofo de quem ele tem uma insuportável inveja ou 3) O inconsciente/consciente de Chico foi afetado pelo fanatismo espiritualista A propósito, naquele famoso e antigo programa chamado PINGA FOGO, por exemplo, Chico fez duas declarações mirabolantes e hilariantes que ele poderia ter evitado. Não tendo condições de explicar porque ele não psicografava ideias de Platão, Chico tentou diminuir a importância do grande filósofo ao insinuar que ele não era o verdadeiro autor das grandes lições morais e intelectuais que nos legou, mas apenas um médium que psicografava as ideias dos outros! Foi muito triste ouvir de nosso gentil Chico algo tão hilário assim. Mais triste ainda foi Chico dizer que o primeiro livro da história da humanidade foi ditado por espíritos e psicografado por Moisés numa pedra. Uma utopia sem precedentes (para os homens, isso é pior que câncer nos testículos). Talvez por falta de oportunidade e tempo para estudos científicos, Chico não sabia que Moisés não existiu e que os judeus plagiaram os dez mandamentos do Livro dos Mortos dos Egípcios e o  enxertaram com contradições (você não pode cometer adultério - mandamento 7, mas pode comer sua escrava - mandamento 10; você não pode matar - mandamento 6, mas pode instituir a pena de morte segundo a lei do olho por olho, dente por dente, Êxodo 21:24), preconceitos (deus aprova a escravidão, permite que você tenha escravos e permite que você cobice seus escravos que são comparados a animais e objetos, mas deus não gosta que você cobice os escravos dos outros - mandamento 10 - Qual é a mensagem de deus para as pessoas que são escravizadas?), soberba (nos quatro primeiros mandamentos deus só fala de si mesmo).

Em tempo: O público em geral, religiosos e ateus, não sabe que Sócrates jamais disse a frase 'Conhece-te a ti mesmo'. Estas palavras foram encontradas numa inscrição no Oráculo de Delfos, na Grécia. Antigamente, só os acadêmicos sabiam disso, mas em nossos dias até o Google sabe. E eu, um desprezível Zé Ninguém, já sabia disso com 15 anos de idade, lendo livros acadêmicos, é claro!

PÉSSIMO AGOURO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegid pela Lei 9610/98. 

COMENTÁRIOS SOBRE A CRÔNICA DELÍCIAS PELO BURACO DA FECHADURA, DE HUMBERTO WERNECK, PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO EM 24/12/2019 (Leia esta crônica na íntegra abaixo do vídeo).A ilustração é uma foto que o Humberto Werneck tirou da Nossa Pietà, numa esquina da Avenida Paulista, no dia 30 de Novembro de 2019, e que foi capa da edição de dezembro de 'O Trem Itabirano', ótimo jornal mensal, segundo Humberto, criado e editado por Marcos Caldeira Mendonça na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade.

Neste dia madraceirão, largado num sofá, coçando o saco, dando tratos à cabeça e catando alguns inesperados e folgados pediculus humanus, deleitei-me com sua crônica natalina, sempre repleta de bela eloquência, e que só perde para a elegante mensagem de natal na capa do jornal O TREM. Por sorte, nossa Pietá, magnificamente fotografada por você, estava devidamente coberta. Modéstia à parte, tenho o mesmo donaire deste Marcos Caldeira Mendonça. De volta ao tema principal, quando eu tinha seis anos ganhei um trenzinho do Papai Noel, mas meu primo Garfão fez o mesmo que um espírito de porco fez com você. Também não traumatizei com o apocalipse. E de roldão, aquele tridente do diabo roubou minha pureza. Comunicou-me que não vim ao mundo pelo bico da ave pernalta da família dos ciconiídeos. Você, disse ele, saiu da barriga de sua mãe via vaginal. En passant, digo de onde vem nosso espírito de porco. Daquele demônio que ocupava o corpo de um inocente com uma legião. Diante da ameaça de expulsão pelo mitológico Jesus, o tinhoso pediu ao filho do homem para baixar os seis mil legionários (número de soldados daquele destacamento militar romano) numa vara de porcos que circulava no local. Tendo seu pedido atendido, precipitou os suínos no mar da Galileia, que, na verdade, era um lago. A inventora desta fantasiosa história inspirou-se no ritual de purificação dos Mistérios de Elêusis no culto das deusas Deméter e Perséfone da antiga Grécia de Sócrates e Platão: porcos lançados ao mar para banho e sacrifício para afastar demônios. Sua saudosa e sublime crônica levou-me à quinta leitura de um velho livro que guardo desde os anos oitenta: The Mysteries Of Mithra, escrito em 1902 por Franz-Valéry-Marie Cumont, arqueologista e historiador belga. Uma nota na contra capa lembra-me todos os desvelos que sua mãe tinha para os adereços natalícios, especialmente as folhas de papel grosso, com uma demão de cola, polvilhadas com especularita, manipuladas com mãos de artista. A nota do livro diz: We have made every effort to make this the best book possible. Our paper is opaque, with minimal show-through; it will not discolor or become brittle with age. Pages are bound in signatures, in the method traditionally used for the best books, and will not drop out. Books open flat for easy reference. The binding will not crack or split. This is a permanent book. E, de fato, o danado nunca solta uma folha sequer. É um livro para toda vida, assim como são suas deliciosas lembranças dos tempos de criança, eternizadas nos seus textos jornalísticos. A releitura dos citados mistérios trouxe-me à memória as ferrenhas discussões nos concílios do século 4 da era comum (e.c.), para decidir quais dos mais de trinta evangelhos fariam parte do cânon cristão e qual seria a melhor data para o nascimento de cristo. Comunidades cristãs do século 3 e.c., principalmente no Egito, comemoravam o nascimento do nazareno no dia 6 de Janeiro, em adoração aos magos, o clero oficial dos persas, a partir do qual surgiu a lenda cristã dos três reis magos. O Concílio de Niceia de 325 e.c. condenou tal data como sendo uma heresia e propôs outra. Finalmente, em 354 e.c., decidiu-se que o dia do nascimento de Jesus seria 25 de Dezembro, porque era no solstício de inverno que celebrava-se o renascimento do deus invencível, o Natalis Invicti, Deus Sol Invicto dos romanos, uma ideia tirada de Mitra, o Deus Sol da mitologia persa, que morreu e ressuscitou. Caro Humberto, não sei se é sábio dizer 'no ano felizmente passado', porque acredito que o próximo promete ser pior que o atual. Talvez, melhor seria pedir ao tempo, este majestoso senhor da eternidade e do infinito, para nos retroagir aos nossos dias de inocência. Feliz 2020!




Humberto Werneck Delícias pelo buraco da fechadura
Humberto Werneck
Como naquele dito sobre a festa, melhor ainda que o presente, muitas vezes, era esperar por ele.
Aproximando-se o Natal, a nossa mãe – pronome possessivo que chegou a abarcar onze crias, número suficiente para formar um time feminino de basquete e um masculino de vôlei – se munia de lápis, papel e paciência para ouvir os mais delirantes, os mais inexequíveis desejos da meninada.
A dona Wanda e o dr. Hugo com certeza tinham sua estratégia para, de modo indolor, nos convencer de que nem todas as nossas fantasias, quando não a maioria delas, estariam atendidas sob a árvore de Natal na manhã de 25 de dezembro. Provavelmente sabiam que também o inesperado pode ter o seu encanto, e lançavam mão de surpresas gostosas para prevenir eventuais decepções da filharada. O fato é que o expediente funcionava. Pelo menos não me lembro de ter sentido falta de alguma coisa ao desembrulhar o que o Papai Noel deixara para mim.
A única exceção, já contada aqui, foi, bem menino ainda, um par de muletas, petrecho que, para mim, passava ao largo da ortopedia para se constituir num instrumento de prazer, tão fascinante quanto as pernas de pau sobre as quais eu via se equilibrarem uns malabaristas. Não me lembro do que terá vindo em lugar delas, de modo a compor um trio de regalos que incluía um par de óculos escuros e um anel de prata, com chapinha para gravação de iniciais, adornos em cujo uso & gozo fui flagrado numa foto aos 4 anos de idade.
Não me lembro, também, de ter pedido a Papai Noel o exemplar do Missal Cotidiano que, aos 10, encontrei aos pés da árvore, junto com o meu primeiro relógio, um Lanco dourado de 15 rubis, minúsculas gemas que, no interior da máquina, providenciavam o seu bom funcionamento, desde que o usuário não se esquecesse de dar corda uma vez ao dia. Meu Lanco parou irremediavelmente em algum ponto do caminho, mas o Missal Cotidiano (“editado e impresso nas oficinas tipográficas do Mosteiro de São Bento, Bahia”, em março de 1954) segue acompanhando o infiel que perdeu bem cedo a fé religiosa, mas que ainda assim o trata como relíquia, quando menos pela razão pagã de figurar, no topo da folha de rosto, o seu nome completo e a data do presente, “25-12-1955”, na bonita letra materna. Ao longo de décadas, mais de uma vez voltei a esse livrinho, e outras tantas voltarei, não para rezar, mas para, digamos, procurar nomes e datas na extensa lista de santos do dia.
Já não sei quando foi que algum espírito de porco me comunicou que “o Papai Noel é o pai da gente”. Da revelação não me ficou o menor trauma, diferentemente do que aconteceu quando alguém me fez saber que não passava de invencionice a cegonha que por onze vezes pousara no lar de Hugo e Wanda – assim como, aliás, em igual número de ocasiões, na casa ao lado, moradia do tio João Antônio e da tia Yedda. Mesmo nas Minas Gerais daquele tempo, católicas a mais não poder, e sem televisão para ocupar os casais, bem poucos telhados terão sido tão assiduamente frequentados quanto aqueles dois pela referida ave pernalta da família dos ciconiídeos.
*
Mal entrava dezembro e a nossa mãe exumava dos armários uma árvore natalina artificial, cujos galhos, dobrados junto ao caule no restante do ano, me sugeriam um guarda-chuva verde fechado. Junto com ela e as respectivas bolas coloridas, voltavam à luz algumas folhas de papel grosso que, depois de receberem uma camada de cola, haviam sido polvilhadas com um minério de ferro que, por brilhar ao sol, se chamava especularita. (Não se impressione com a exibição de ciência: dono de uma ignorância especializada também em geologia, recorri aqui às luzes de meu irmão Rodrigo, engenheiro de minas e metalurgia).
As folhas de papel eram manipuladas com mãos de artista para que compusessem, sobre uma mesinha baixa, uma réplica doméstica da gruta onde nasceu Jesus. Espelhos com as margens recobertas de areia simulavam laguinhos. Aqui e ali, nosso presépio era adornado com tufos de musgos que, tanto quanto a especularita, íamos colher nos contrafortes da Serra do Curral, hoje em grande parte tomados por uma urbanização voraz.
A paisagem era habitada por figuras de louça colorida de Nossa Senhora e São José, além de considerável fauna à qual não podia faltar uma literal vaca de presépio. Vindos de longe, os três Reis Magos a cada dia avançavam alguns milímetros em direção à gruta, com suas oferendas de ouro, incenso e mirra, palavra esta que me fez correr ao dicionário. O berço de Jesus permanecia vazio até os primeiros minutos de 25 de dezembro; mas nós, a arraia miúda, não víamos o momento em que o recém-nascido era ali gloriosamente entronizado, com seus bracinhos abertos para nos abençoar. Sua chegada se dava altas horas da noite, quando papai & mamãe Noel, pé ante pé, vinham depositar sob a árvore os nossos presentes.
Quando acordávamos, bem mais cedo que o habitual, encontrávamos trancadas as portas da sala, e havia alguma disputa para ser o primeiro a colar o olho no buraco da fechadura, no mais inocente dos voyeurismos. Como não dava para saber quem ganhara o quê, a nossa impaciência ia acordar os pais, no quarto ao lado. Num daqueles Natais, houve a surpresa de verificar que as pilhas de presentes não estavam, como de hábito, no piso da sala, e sim no assento do vasto sofá ao fundo. Depois soubemos que uma chuvarada noturna tinha apanhado de jeito uma janela mal vedada e provocado uma inundação no soalho. Mas nenhum presente se molhou – motivo adicional para a nossa já enorme admiração pelo Papai Noel: cuidava de tudo, o danado!


O Estado de S. Paulo, 24/12/2019;

OS CELTAS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Venha nos conhecer, Feche os olhos, E imagine-se perdido nas névoas de terra tão encantada, Entre pés de frutas exóticas e céus de doces caseiros, Onde entre superstições, Diz-se dos mistérios cujo segredo se desconhece, Onde o sonho e a verdade andam de mãos dadas, Como eternos cavaleiros de tempos remotos e românticos, Cavalgando por todos os caminhos vagamente iluminados, De um caleidoscópio de figuras míticas, Que te acenam e te incitam em todas as direções, Fadas, Gnomos, Bruxas, Varões, Damas e gigantes, E quando você procura o sol em seus olhos, Eles desaparecem, Escolha, Então, Como Teseu de Atenas, Uma Ariadne com um novelo de linho para te guiar, E se você procurar por uma Ibérica, Encontrará em seu lugar, Uma mulher alta, De Olhos Azuis, Cabelos louros e ruivos, Ela te levará a uma fonte, Através de uma ponte, Onde crianças montadas em cavalos de pau saboreiam guloseimas, Todas sorrirão para você, Até as flores tão altas quanto esta mulher que te conduz, Para você ter mais altas suas ambições, Visar seu ideal ponto de chegada, E sua meta negaceadora, O teu fio para encontrar a saída de um labirinto, Para ter uma visão clara de nossas tradições, Folclore e cultura, Buscar como sempre buscamos, Ficar fascinado, Cativado, Pela vida, Pelo Deleite, E a tristeza, Dos anos agitados e cavalheirescos, Que não conheceram nem a noite, Nem o amanhã, De esperanças, Ou de temores, As guerras, As desgraças, E as glórias, Que aceleram, Iluminam, E caem como chuva das nuvens, Nuvens de histórias contadas, De paixão, De orgulho, E de dor, Então você abrirá e fechará os olhos de novo, E imaginar-te-á dentro de um trem parado na estação do seu tempo, Onde carregadores de plasticina trajam gravatas de espelhos, E a moça de olhos anil aparecerá junto à catraca, Fará você vislumbrar carruagens que você não conheceu, Um estilo de vida muito diferente do seu, Um modo de tratar a mulher melhor do que no seu mundo, Como faziam os gregos homéricos, Fará você sentir nossa paixão pelo passado, Nosso patriotismo ardente, A saudade de nossa beleza espiritual que atenua o materialismo saxônico, Não deixe de nos conhecer, Nós somos arianos, Gaélicos, Bretões e Belgas, Incorporamos os Francos, Os Normandos, Os Saxões, Os Dinamarqueses, E os Romanos, Venha conhecer Ossian, Finn, Cuchulain, Deirdre, Diarmit e Grania, E com eles você conhecerá também de onde vieram as inspirações de Homero, Goethe e Shakespeare, E de gente de seu tempo, Que escreve e canta como nossos bardos, Embora tenha caído o país de Erin, E alterado a terra Escocesa, Embora pequeno seja o poder de Mona, Ainda que adormecida esteja a faixa de Llewellyn, Embora as profecias de Merlim sejam lembradas apenas como contos de fadas, Embora os claustros arruinados de Iona sejam varridos por vendavais do norte, Um em nome e fama, São os Celtas divididos pelo mar, Venha nos conhecer, Nosso cavalo marinho e diarista aporta em sua praia, Monte no seu lombo, Com a cabeça acima das nuvens, E você desaparece! Até Merlim te devolver!

AMANHÃ NUNCA SE SABE

 


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)



Faça uma só pessoa de seus atos e de sua consciência, Desligue-a, Nenhum poder consegue religar a corrente de suas ideias e dos seus acontecimentos, Isso é presença de espírito, Relaxe sua mente e flutue inconsciência abaixo, Isso ainda não é morrer, Afaste-se de todos os pensamentos e renda-se ao nada, Isso é resplandecer, Sinta a profundidade da essência abaixo do décimo nível da consciência, Essa é a verdadeira existência, Entenda que o amor é tudo e todos, Isso é sapiência, Descubra que a ignorância e o ódio podem chorar seus mortos, Isto é crença, Veja e ouça as cores de seus sonhos, Isso não é desemparo, Jogue o jogo da existência até o fim de seu começo, Não abandone-o pelo meio, Isso é se completar, Visite um zoológico humano do Nepal para ver como é um inferno astral, Isso é contenção de radicalismo, Invoque alienígenas por telepatia e seja transportado para a Palestina e o Himalaia, Isso é desafio ao conhecimento, Roube algumas coisas com sua invisibilidade noutra dimensão e você não consegue levar nada de volta para a sua, Isso é sua matéria perdendo sua materialidade, Visite um bem-amado morto refazendo-se e revivendo num hospital longe do mar, Isso é poder acreditar, Enfrente os demônios de igual para igual em seus redutos e receba a ameaça mortal de levar um aplique na sua coluna vertebral e escape com náuseas sem vender sua alma, Isso é desafiar dogmas, Desça de elevador do alto da montanha onde fala quem não deveria até o subterrâneo do futuro onde quem se espera falar repete suas perguntas, Isso é transcender, Descuide-se à beira do precipício e prove da morte que um dia chegará em queda livre, Isso é se libertar, Estenda sua mão direita suplicando salvação e receba uma esquerda banhada de sangue pelo prego, Isso é morrer por fora, Leve para seu sonho uma lembrança doentia do passado e agonize com o sofrimento no presente, Isso é morrer por dentro, Entre num teatro que não existe mais e veja a mão de um bebê na caixa de presente que lhe fora dada ser-lhe tomada para o ritual das cabras, Isso é revelação, Visite uma casa desconhecida onde nunca esteve e conte para sua moradora ausente, Isso é despertar, Visite o consultório de uma psicóloga e traga de volta seu paciente fugitivo que você não conheceu, Isto é comungar com o universo, Visite uma cidade no chão onde você nunca esteve e descubra o que há para se esconder, Isto é atender a um chamamento, Visite uma cidade acima do chão onde você nunca esteve e descubra que nada há para se esconder, Isto é pedir para ser chamado, Ouça alguém que morreu muito cedo dizer que estaria morto sete anos mais tarde, Isto é não se conformar, Saia de um auditório através da porta de uma igreja e assista uma imitação artística criar algo inédito para você, Isto é mágica no ar, Entre num casarão através do tempo e veja um verdadeiro artista lhe antecipar algo inédito para o mundo, Isto é mágica na sua mão, Ouça a melhor música de sua autoria ser tocada por quatros instrumentos com apenas um par de mãos, Isto é ir além da idealização, Saia de uma batalha sangrenta pela porta do fundo e entre numa trégua celestial pela porta da frente, Isto é se perdoar, Pergunte a uma galinha porque ela se frita para servir de alimento ao seu galo por amor, Isto é para meditar antes de morrer, Dê aos seus sonhos continuidade de um seriado e descubra que tudo está ao alcance de sua vontade, Isto é se superar, Seja um cientista, Seja um artista, Seja um sonhador, Seja um anarquista, Isso é ser deus.


UM LUGAR SANTO EM ÁGUAS CINTILANTES

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Presumo, Meu excelentíssimo Alcibíades, Que minhas missivas anteriores deixaram claro a farsa que se instaurou em nosso mundo, De dias instáveis e inseguros, Agora com poderes absolutos, Que se impõe pelo medo, Pela tortura e pela execução sumária, Contudo, Observando ainda, Sob o risco de ser pego e queimado vivo, Caso esta nova missiva seja interceptada, Que poucos dela falam às caladas, E muitos tanto nela se perdem, Tendo suas vidas por ela regradas, E ainda prestando-lhe serviços, Com receio desta hedionda inquisição, Julgo oportuno dar-lhe um brevíssimo relato, Pertinente a esta inquirição, Sobre uma longa história que, Segundo um feiticeiro que agora me dá guarida, Será no futuro contada, E que a verdade dos cristãos, Não obstante este meu jogo de palavras não intencional, Na verdade não liberta, Mas aprisiona, Será no futuro conhecida e desmascarada, E isto digo-lhe não só por conta deste mago, Mas também por conta de um homem, Do qual descendo, E que disse, E isso ele passou de geração em geração até nossos dias, Desde onze gerações atrás, Que conheceu, Ainda jovem, Matias, Em Roma, Em idade adiantada, Já próximo dos cem anos, E este Matias, Sempre negou, Peremptoriamente, Ter traído seu povo, E que, Ao contrário, Tentou salvá-lo, E por ele lutou, Sendo ele de sangue real por parte de mãe, De linhagem sacerdotal, Da principal família da primeira das quatro tribos da Palestina, Abriu mão de sua nobreza, De sua condição aristocrática de um por cento da população semita, Para se juntar aos revolucionários, Que prepararam uma insurreição contra a ocupação romana, Assumiu o posto de general das tropas da Galileia, E corajosamente comandou seus homens contra as invencíveis legiões de César, Até que foi vencido por elas e preso, E em troca de sua liberdade, Tendo em vista sua ascendência sobre os demais, Seu domínio do Grego, Do Hebreu, Do Aramaico e do Latim, Prontificou-se a levar as tropas romanas a todos os focos de resistências, Com o intuito de convencer seus compatriotas a se renderem, Visto que os romanos detinham um poder devastador, E certamente uma grande desgraça adviria à terra santa, Mas seus conterrâneos não lhe deram ouvidos, Até que em menos de quatro anos, Este Matias testemunhou a destruição total de Jerusalém, Com milhares de mortos em batalha, Milhares presos e crucificados, E milhares de civis, Homens, Mulheres e crianças levados como escravos para Roma, E este Matias, Que ganhou, Como recompensa, Cidadania romana da Casa dos Flavianos, Disse que tal infortúnio parece ter sido profetizado, Pois, Segundo um de seus escritos, Um tal de Jesus, Filho de Anano, Um plebeu casado, Que, Quatro anos antes do início da guerra, E numa época quando a cidade gozava de muita paz e grande prosperidade, Veio à festa religiosa na qual é de costume dos Hebreus montar tabernáculos a Deus no templo, Soltou um grito repentino em voz alta: Uma voz do leste, Uma voz do Oeste, Uma voz dos quatro ventos, Uma voz contra Jerusalém e o templo sagrado, Uma voz contra os noivos e as noivas, E uma voz contra todo o povo, E ele gritava dia e noite, Em todas as ruas da cidade, Até que alguns dos homens mais eminentes da população indignaram-se com este clamor tão ousado, Levaram este homem, E lhe deram uma severa surra, No entanto, Este homem não pronunciou nenhuma palavra sequer em seu favor, Nem contra os que o castigaram, Continuou apenas proferindo aos gritos as mesmas palavras de antes, E diante disto, Membros da classe sacerdotal supondo, Como ficou provado, Que era um tipo de fúria divina que habitava este homem, O levaram ao procurador Romano, E este mandou açoitá-lo até arrancar a pele e deixar os ossos à vista, Todavia, Este homem não fez nenhuma súplica para si mesmo, Não derramou nenhuma lágrima, E elevou seu clamor ao tom mais angustiante possível, E a cada chicotada que levava, Ele respondia: Desgraça, Desgraça para você, Jerusalém! E quando o procurador Albino perguntou-lhe quem ele era, De onde veio, E por que ele dizia tais palavras, Ele nada respondeu, E não abandonou seu canto melancólico, Diante disso, Albino o considerou louco, E o dispensou, Assim sendo, Durante todo o tempo que transcorreu antes da guerra começar, Este homem não se aproximava de ninguém, E também não era visto por ninguém enquanto gritava, E todo santo dia ele proferia estes lamentos, Como se fosse um juramento premeditado, Desgraça, Desgraça para Jerusalém, Mas não xingava as pessoas que lhe batiam todos os dias, E nem agradecia às pessoas que lhe davam comida, E a resposta dele para todos os homens era, De fato, Um melancólico presságio do que estava por vir, E este seu lamento era o mais alto que se ouvia nas festas religiosas, E ele gritou por sete anos e cinco meses, Sem ficar rouco, Sem se cansar, E quando ele viu sua previsão se cumprir, Com o cerco de Jerusalém, Ele deu a volta em torno do muro da cidade, E gritou com toda força: Desgraça, Desgraça, Para a cidade também, E para o povo, E para o templo sagrado, E assim que ele gritou por último: Desgraça, Desgraça, Para mim também, Uma pedra lançada de uma catapulta o atingiu, E o matou instantaneamente, E no momento que ele proferiu as mesmas palavras, Ele entregou seu espírito a Deus, Oras, Meu excelentíssimo Alcibíades, Foi com base no relato deste Jesus por Matias e todos seus escritos, Que uma única mulher em Roma, Inventou um Jesus para gregos e romanos, Apelidado de Cristo, O Messias, E os escritos dela, Chamados de boas novas, Espalharam-se por todo o império romano, E deram margem a um incontável número de escritos semelhantes, Por séculos, Todos mitológicos, Dos quais sobraram estes quatro que a igreja dominante chama de canônicos, E todos eles asseverando que este Jesus de nome grego, foi traído por um de seus discípulos, Entregue ao procurador Pilatos, Pelos homens mais eminentes da população de Jerusalém, Foi crucificado entre dois ladrões, E morreu em poucas horas, Oras, Meu excelentíssimo Alcibíades, Um homem leva dias e até semanas para morrer numa cruz, Pois este mesmo Matias relata que quando o imperador Tito o enviou com Cerélio, E mais mil cavaleiros, Para uma certa vila chamada Thecoa, A fim de saber se era um lugar apropriado para acampar, No caminho de volta, Ele viu muitos prisioneiros crucificados fazia dias, E entre eles reconheceu três parentes seus, E muito triste, E com lágrimas nos olhos, Matias foi ter com Tito, E este imediatamente mandou soltar os três, E dar-lhes os melhores cuidados possíveis, No entanto, Dois deles morreram nas mãos dos médicos, E um sobreviveu, E agora acrescento-lhe o que, este feiticeiro costuma dizer, Que quando um mito nasce e cresce com tal poder, E sem nenhum respaldo na verdade, Ele pode durar milênios, E sobre ele novos mitos são criados, Mitos sobre mitos, E este feiticeiro antevê, Pelo seu dom de prever o futuro, Que antes da verdade vir à tona, E isto não ocorrerá antes de dez gerações, Um novo mito dará conta de que este Jesus mitológico dos cristãos, Foi traído por dois revolucionários, Simão Mago, O líder, E Judas Iscariotes, E os três foram crucificados na presença de Pilatos, Num local muito distante de Jerusalém, E habitado pelos Essênios, Tendo Jesus morrido em poucas horas, E os outros dois tiveram as pernas quebradas, E por ser tarde, Com a aproximação do Sabá, Eles deveriam ser tirados da cruz antes do por do sol, E Pilatos consentiu, E em sua presença, Jesus já morto, Foi colocado numa cova ali perto, E os outros dois numa outra cova ao lado, Enterrados ainda vivos, E Pilatos aceitou o pedido de Herodes Antipas, Para deixar um tal de Anano na guarda das covas, E diz o feiticeiro que, Uma dessas várias boas novas que se espalharam, Fez uma metáfora sobre Simão Mago, Apelidado de Lázaro, e Jesus nas covas separadas: Havia um homem rico, Que se vestia com púrpura e linho finíssimo, E se banqueteava cada dia, E um pobre, Chamado Lázaro, Ficava jogado junto ao seu portão, Indo coberto de feridas, Ele bem gostaria de matar a fome com o que caia da mesa do rico, Além disso, Os próprios cães iam lamber as suas feridas, Mas o pobre morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão, O rico também morreu, Sendo sepultado, E das torturas do abismo, percebeu Abraão de longe e Lázaro no seu seio, Então ele falou: Pai Abraão, Tem pena de mim e pede para que Lázaro molhe a ponta do dedo na água para refrescar a minha língua, Porque sofro horrores nestas chamas, E Abraão respondeu: Meu filho, Lembra-te que recebeste os seus bens durante a vida e Lázaro recebeu seus males, Agora ele encontra consolo aqui, Enquanto tu padeces, E, além disso, Entre nós está cavado um grande abismo, Os que quisessem passar daqui para onde estás não poderiam, E daí também não se pode atravessar até aqui, Enquanto tu padeces, O rico continuou: Pai, Eu te peço, Então, Que o mandes à minha casa paterna, Porque tenho cinco irmãos, Que ele lhes faça uma advertência, Para que também eles não venham parar neste lugar de tortura, Mas Abraão lhe respondeu: Eles têm Moisés e os Profetas, Que os ouçam então, Mas o rico ainda lhe disse: Não, Pai Abraão, Mas se alguém dentre os mortos for à sua procura, Eles certamente se converterão, Mas Abraão concluiu: Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, Ainda que alguém ressuscitasse dos mortos, Eles não ficariam convencidos, E neste novo mito, Diz o feiticeiro, Esta metáfora será usada para criar uma outra fábula, A de que administraram em Jesus um veneno, Para ele parecer morto, E depois o reavivaram com medicamentos, E ele foi retirado vivo da cova, E alguns dirão que este Jesus permaneceu com seus discípulos por pouco tempo, E mudou-se para Roma, Onde não seria reconhecido por ninguém, A não ser Pilatos, Mas este já havia sido exilado em Viena, A pedido de Judeus e Samaritanos, No ano 36, Mas outros dirão que ele voltou para o lugar de onde veio, Empreendendo uma longa viagem, Passando por Damasco, Depois Urfa, Depois as vilas do Afeganistão, Depois Taxilla, E finalmente a Caxemira, Onde casou-se novamente, Teve três filhos, E lá morreu de velhice, E seu corpo lá descansa num lugar santo, Em águas cintilantes, Oras, Meu excelentíssimo Alcibíades, Este feiticeiro, Por vezes, Se expressa em linguagem enigmática e incompreensível, E assegura que um dia, Quando ninguém souber o que fazer quando o sol estiver frio demais, Alguém mostrará a verdade, Sobre como uma mulher semita, Da aristocracia romana, Inventou este mito de Jesus Cristo, Tendo ela lido todos os escritos de Matias, E nós, Meu excelentíssimo Alcibíades, Não veremos este dia, Mas outros verão, E aqui me despeço, Desejando que a paz permaneça contigo.