sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A VIDA COMO ELA PODE SER

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Há médicos e médicos, nos ensina nossa crestomatia de axiomas pseudofilosóficos. Se nossos chavões tivessem um tom melodioso, eu incluiria, neste improvável cancioneiro nacional de máximas e em homenagem ao Doutor Petrusa, um estribilho estrangeiro, destituído de estereotipagem, escrito por John Lennon sobre o Doutor Robert: well, well, well, you´re feeling fine, well, well, well, he will make you. Ele fazia tão bem aos moptops, os cabeludos de Liverpool, quanto estes fizeram à música no mundo. Que não se enganem os que não conheceram o Doutor Petrusa. Longe de ser um periodeuta grego, dispensando seus cuidados profissionais, ou perambulando high and low para ensinar sua arte, e tampouco um sugar plum fairy, como dizem os londrinos, o fornecedor oficial de drogas para os Beatles, segundo John. Comparo o Doutor Petrusa somente à eficiência do Doutor Robert no atendimento às necessidades químicas dos quatro gênios ingleses: day or night he'll be there anytime at all. É verdade, porém, que nos últimos 30 anos de seu exercício, o Doutor Petrusa começou a apresentar gradativos sintomas repentistas, nada preocupantes, e até cômicos, súbitas tiradas e mudanças de assunto, como o popular de pato para ganso, e inesperadas observações sobre sua vida particular e alheia, algo impossível nos seus áureos tempos. A propósito, e sem juízo de valor ou de realidade, foram estas três décadas atípicas que me levaram a reabrir seu consultório: se não pude traçar um perfil completo e fidedigno deste médico por excelência, e se me faltaram histórias sobre ele quando estava no auge de sua carreira, foi apenas porque ele sempre se manteve fiel ao seu juramento de Hipócrates e à ética que não permite que um profissional da medicina mantenha uma relação de amizade com seus pacientes – isso não o torna menos interessante, sem a máscara da profissão, mas, ao contrário, sempre distante dos holofotes, e agarrando-se à simplicidade de sua condição humana, ele, me desculpem o hiperbolismo, iluminou mais gente do que as luzes que ele apagou para dormir. Para ser justo com meu protesto de veneração e respeito ao Doutor Petrusa, filio-me à nossa fértil antologia de sofismas e corroboro com algumas delas. Para mim, ele era a conclusão de um silogismo hipotético, na verdadeira acepção do ofício que exerceu. De família em família, cuidou de bisavós e bisnetos, e um sem-número de pessoas que não passaram pela minha vida. Não me surpreende que entre seus clientes houvesse aqueles que o caluniavam, apregoando, a boca pequena, o maledicente comentário sobre a rapidez de suas consultas, de no máximo 5 minutos, insinuando que ele tinha pressa para enriquecer, atendendo o maior número possível de clientes por dia. Estes sicofantas nunca tiveram a capacidade de fazer uma avaliação comparativa entre o baixo preço que ele cobrava e seu objetivo e bem-sucedido diagnóstico de uma doença que, por mais que ela e o pessimismo psicossomático de sua vítima desejassem, não escapava à sua cura. Em desagravo, várias vezes testemunhei o Doutor Petrusa deixando o consultório e uma sala de espera lotada, sem dizer uma palavra sequer, para atender a um chamado de urgência. Prioridade total era dada àqueles que sofriam e não podiam esperar. Que esperassem os impacientes com hora marcada. Doutor Petrusa sempre voltava, e atendia até o último perseverante, mesmo que tivesse que voltar para casa à meia-noite. Ele era sisudo, não sorria, era avesso a prolixidades, mas isso não fazia dele uma pessoa desagradável e antipática. Muita gente confundia praticidade, responsabilidade e competência com falta de mimo. Para esse clínico geral, cirurgião, infectologista e, de lambujem, psiquiatra, a vida reservava um destino que Castro Alves escreveu em suas Poesias Escolhidas: Fatalidade atroz que a mente esmaga, extingue nesta hora o brigue imundo, o trilho que Colombo abriu na vaga, como um íris no pélago profundo. Um acidente torpe, uma escorregadela no ambiente de trabalho partiu-lhe a coluna. Aqui terminava uma vida como ela é, e começava outra como ela pode ser. O Doutor Petrusa saiu de um coma para um estado semiconsciente. Não conseguia fazer qualquer movimento, nem falar, nem ver. Mas que erro cometeu ele, parecendo ter ouvido aplausos da multidão, vozes de extrema-unção, de dois jovens que decidiram administrar-lhe um remédio injetável, que o tarimbado médico, que todos os medicamentos conhecia? Em que erro ele caiu para ter a vida abreviada, sem dor ou sofrimento? Nunca em toda a sua vida o Doutor Petrusa rezou tanto para o seu Deus católico. E um segundo milagre foi realizado. Uma terceira opinião sugeriu outro procedimento e foi acolhida. O primeiro milagre foi ter sobrevivido à queda, o segundo à eutanásia, e outros viriam. Cirurgias e mais cirurgias, medicamentos e mais medicamentos, tratamentos e mais tratamentos, puseram-no numa cadeira de rodas por dois anos, sem paraplegia. Naqueles dias, Deus parecia estar com mania de excepcionalidades que não se explicam pelas leis da natureza. Mais algumas primaveras, e o Doutor Petrusa já andava, com muita dificuldade, mas ereto, cabeça para o alto, olhar cheio, e uma espécie de sorriso inteligente e permanente – que cada um carregue sua cruz com classe, ele me diria tempos depois. Com os três filhos casados e encaminhados, a esposa e muitos livros por companhia, ele não passaria o resto de seus dias sentado num sofá. Voltaria a praticar o que mais amava, e isso exigiria muita força de vontade, pois ele gastou tudo o que tinha para se manter vivo neste mundo: se Deus ainda me quer por aqui é porque ainda não trabalhei o suficiente, ele me acrescentou. Alugou uma sala numa pequena clínica e um modesto apartamento a uma quadra dali. Passava as manhãs fazendo obrigatórios e eternos exercícios para coluna. No início da tarde, caminhava lenta e cuidadosamente até o consultório. Um cartaz na parede do lado direito de sua mesa dizia: Passarei por este caminho uma só vez; por isso, se existe qualquer bem ou qualquer gesto de bondade que eu possa fazer em benefício do ser humano, que eu faça já. Que eu não negligencie um segundo sequer, pois por este caminho jamais passarei novamente. Este médico, na mais perfeita e excelsa acepção desta palavra, uma raridade que disponibiliza seu telefone de casa para poder ser chamado a qualquer hora da madrugada e se arrastar até o consultório para atender uma urgência, é um homem que nada mais tem a perder, exceto seu amor ao trabalho, à sua profissão e aos seres humanos que precisam de cuidados médicos. E por continuar vivo quando já não deveria, pelo menos comigo - não sei quanto aos demais pacientes - seu atendimento sempre foi profissional, mas com uma inusitada informalidade e até um senso de humor involuntário e impensado. Foram muitas consultas desde sua nova vida após sua ressureição do coma até a última badalada de seu coração. Algumas das conversas paralelas  que tivemos nessas últimas consultas serão narradas como se todas elas tivessem transcorridas num único dia, numa única consulta. PARALELA é tudo aquilo que não diz respeito a um atendimento médico num consultório:

- Boa tarde, Oxman. Me desculpe a falta de educação. Eu não deveria estar fumando diante de um paciente. O problema é que não consigo largar esta porcaria.

- Eu consegui!

- Eu sei, você já me disse. Isso ajudou a reduzir seu estresse e vai prolongar sua vida mais um pouco.

- Ainda estou um pouco estressado.

-Como assim?

- Continuo no mesmo ritmo: levanto às seis, às sete já estou trabalhando na Avenida Paulista, às 18 vou para a faculdade de psicologia, chego em casa às 23 e, antes de dormir, ainda leio um pouco e preparo uma palestra para o Centro Espírita.

- Preparar palestras para quê?

- Tem gente que precisa ouvir certas coisas. Não posso guardar só para mim tudo o que aprendi. Como dizem os cristãos, estou dando de graça o que recebi de graça.

- Oxman, pare com isso e viva sua vida. O único cara que tentou fazer bem ao mundo de graça morreu pregado numa cruz!

- Esse cara não existiu. É um mito.

- Você não lê a Bíblia?

- Já li. É um livro de mitologia, fantasias para crianças, igual o Pato Donald, o Mickey, o Pateta....

- ...Está bem, Oxman. Eu sou católico e respeito sua opinião. Agora suba na balança.

- Com sapato?

- Não, tire o sapato. Ótimo, muito bem! 69 quilos. Emagreça só mais dois quilos. Quanto mais magro, melhor para sua saúde.

- Dr. Petrusa, por falar em saúde, sabe aquela vitamina Centrum que o senhor me receitou?

- Sim, sei, o que é que tem?

- Está quase no fim. Já tomei 147 cápsulas. faltam só 3 para terminar. Devo continuar tomando?

- Não, não precisa. Mas quando terminar, não jogue o frasco fora. Traga-o para mim.

- Pra quê?

- É bom para guardar isca de peixes.

- O senhor gosta de pescar?

- Sim, muito. Costumava pescar num sítio aqui perto. Você pesca?

- Não, mas brinco de pescar em alto mar quando procuro paz de espírito. 

- No mar eu não me atrevo. Sabe, um dia convidei minha mulher para ir pescar, mas ela não aceitou sair de São Paulo. De qualquer maneira, não seria possível viajar, minha filha do meio me pediu meu carro emprestado já faz um ano. Este não volta mais. Também, aquele marido  vagabundo que ela arranjou não serve para nada. Além disso, aquele carro vivia mais no mecânico do que na garagem do prédio. Um desses mecânicos me enrolou mais de um mês, então resolvi ir até a oficina dele. Ela ficava no fundo de um terreno baldio com portão de ferro. Quando ele me viu chegando, para me intimidar, ele soltou dois dobermanns bem bravos em minha direção. Assim que eles se aproximaram de mim, eu pus os dois para dormir. O sujeito, assustado, me devolveu o carro arrumado no dia seguinte sem cobrar.

- Onde o senhor aprendeu a hipnotizar?

 - Eu fiz psiquiatria duas vezes. 

- Duas? Por quê?

- Na primeira vez eu escrevi uma tese e a entreguei ao meu orientador. Passaram-se mais de 2 meses, ele sumiu com minha tese e ainda usou-a para publicar um livro de sua autoria. Assim é o mundo, meu caro Oxman. Tem muito canalha por aí que não vale o que come e nem o que evacua.

- Nossa, lamentável. E a segunda vez?

- Enquanto estive em cadeira de rodas, reli todos os livros de psiquiatria e tirei um novo diploma, para esquecer e enterrar o rancor que eu tinha daquele...não quero mais falar disso, já não tenho mais mágoa.

 - E por que o senhor não exerce a profissão de psiquiatra?

- Minha paixão é o centro cirúrgico. Adoro operar, nada me dá mais prazer do que consertar uma pessoa e salvar a vida de outra.  

- O senhor já anda normalmente, por que não volta a fazer cirurgia?

- Porque eu consigo ficar de pé, no máximo, duas horas. Se a cirurgia  passa deste tempo, eu não posso, simplesmente, pedir a outro médico que dê continuidade à operação. A responsabilidade é minha. Quem começa tem que terminar, entendeu? Uma cirurgia de duas horas pode ter complicações e passar de 3 horas.

- Há algum tipo de operação que pode melhorar sua coluna?

- Sim, aqui no Brasil há, mas é de altíssimo risco. As chances de sair vivo é de menos 10%. Nos EUA há uma cirurgia da coluna bem segura, mas custa mais de US$ 1 milhão. Eu já tive este dinheiro, agora só tenho o que ganho aqui no consultório. Por falar nisso, posso te fazer um pergunta?

- Claro!

- Você trabalha com comércio e marketing internacional, não?

- Sim!

- Sabe, já faz uns 5 anos que cobro 90 reais pela consulta. Você acha que se eu aumentar para 100 reais é um abuso?

- De forma nenhuma. 100 reais ainda é bem barato.

- Um momento...Luiza, avisa a todos que a partir de hoje a consulta passa a ser 100 reais. 

- Não se preocupe, Dr. Petrusa, ninguém vai reclamar.

- Espero que não. De qualquer maneira eu não cobro nada de muita gente que não tem dinheiro nem para comprar remédios, e eu dou a essa gente remédios de graça. São amostras grátis de vendedores que vêm aqui todos os dias. Eu só cobro de pessoas como você que eu sei que pode pagar.

- Entendo, Dr. Petrusa, não precisa se justificar. Eu entendo.

- Sabe, Oxman, certa vez, antes de eu quebrar minha coluna, dois colegas meus me convidaram para ser sócio deles na construção de um hospital no interior de São Paulo, mas minha esposa não quis sair da cidade. Hoje estes dois colegas estão milionários.

- O senhor ficou chateado com a decisão de sua esposa?

- Não, fiquei triste por ela ter ficado doente e ter morrido nos meus braços em casa. Hoje vivo sozinho.

- Lamento, Dr. Petrusa.

- Nada de lamúrias, Oxman, vamos carregar nossas cruzes com classe. Por falar nisso, agora lembrei-me. Uma noite destas, eu estava em casa relendo alguns livros de medicina e você não sabe o que aconteceu.

- O que foi?

- Só depois de velho, eu vi um espírito pela primeira vez na minha vida. Ele surgiu flutuando na minha frente e me perguntou o que eu estava lendo. Assim que eu expliquei ele me disse: 'A medicina de vocês está mais de 150 anos atrasada em relação à nossa' e sumiu de repente. Você que é espírita, como você explica isso?

- Eu não sou espírita, Dr. Petrusa. Sou ateu.

- Então que tipo de palestra você disse que ministra num Centro Espírita?

- Eu não falo sobre espiritismo. Só falo de gente como Pitágoras, Sócrates, Platão, Diógenes, Santo Antão, Joana D'Arc, Gandhi e outros,

- Mas Sócrates era espiritualista, não?

- Não, ele não era. Quem era espírita era Pitágoras. Ele dizia que ainda se lembrava de suas últimas 3 encarnações.

- Então o que você falava sobre ele?

- Eu só falava do que ele mais gostava: música. Ao contrário do que todos pensam, matemática não era o forte dele, era apenas um passatempo. Eu até acho que o famoso Teorema de Pitágoras nem foi inventado por ele.

- É mesmo? Eu não sabia disso. Olha só, antes que eu me esqueça, outro dia você me ligou pedindo para eu explicar a morte de seu pai. Embora ele tivesse câncer de cólon retal com metástase no pulmão, na verdade, ele morreu de intoxicação com aquela tinta que ele aspirou quando entrou no prédio dele recém pintado, teve uma dobra de intestino, precisou ser operado, pegou infecção hospitalar que se generalizou e entrou em estado de SARA, a Síndrome da Angústia Respiratória Aguda cujo índice de óbito é de mais de 95%.

- Por que o senhor não cuidou dele quando ele foi hospitalizado.

- Porque um médico não pode cuidar de um amigo.

- Por que não?

- É como um advogado que não pode defender um parente. Você não conhece a lei e a ética?

- Ah, sim, agora entendo.

- Olha só, eu sei que você está indo embora e a gente nunca mais vai se ver, mas não se esqueça de mim. Você e seus dois irmãos são meus meninos.




NATUREZA MORTA

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

De onde vejo o sol há muito silêncio e nenhum movimento. Ele está longe do universo. Seu lar é a terra com seus passarozinhos redomoinhando o céu, silhuetando suas formas ágeis e delicadas, num bailado não ensaiado, diante e distante de uma chama branda que harmoniza-se com nuvens desamarradas e crestadas de rosa. De onde estou posso ler seus bicos cantando, ecoando e passando ao largo da minha imaginação, deixando-se levar pela aura que estende-se até onde as águas cacheadas de verde encontram-se com o firmamento macio e ainda anilado. Meus olhos percorrem prados ondulados até onde as montanhas esmeraldas alquimiam-se com o ouro do pôr do sol, juntando-se à serenidade da noite, caindo lentamente e acalmando o coração, que bate com a taciturnidade das estrelas e cumplicia-se com o sortilégio da alvorada. Da banda oposta vejo o lado iluminado movendo-se calado e com seu rosto espreitando a pálida escuridão. Ele ainda continua bem afastado do cosmos. O teto de seu lar está vazio, sem deixar nenhuma marca onde há pouco penduravam-se olhos cintilantes que de longe observavam almas com uma aparente insensibilidade de natureza morta. De onde ainda estou gostaria de vê-lo despontar no fundo do quintal de sua casa novamente, acordando e cativando a fauna no palco onde a mesma peça é representada todos os dias. Onde estarei dormindo pela última vez, meus olhos se voltarão para o alto e sondarão as mesmas imagens ilusórias. Meu espírito buscará os mesmos sentidos vãos. E por mais alto que eu pense, ninguém me ouvirá. E por mais distante que meu pensamento viaje, ninguém o encontrará. Por mais viva que esteja minha essência enquanto deixa marcas deléveis no mundo, é a magia de meus sonhos que viverá para sempre.


O MANDANTE

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Conheci um sujeito muito interessante. Super culto. Erudito, com, pelo menos, umas doze graduações, outras dez e tantas pós-graduações e mestrados e uns cinco títulos de doutorado. Um poliglota. Ou melhor, um panglota, porque ele fala, literalmente, todas as línguas oficiais do planeta, e também as não oficiais, inclusive as mortas como o Latim, o Sírio Aramaico, o Aramaico Samaritano e por aí vai. Ele faz palestras pelo Brasil e mundo afora. Ele diz que foi Paulo de Tarso na sua última encarnação e que voltou para preparar o mundo para a segunda vinda do Cristo.

 Eu queria conversar com um sujeito desses. Mas era mais fácil passar um fim de semana com o papa ou pôr o Maluf na cadeia do que conversar um minuto com ele. Mas eu consegui. Fiz uma tremenda safadeza. Fui a uma de suas raras palestras em São Paulo. Devia ter umas 50 mil pessoas. Havia mais seguranças do que no dia em que George Bush veio a São Paulo participar de um festival de piadas promovido pelo Lula. Ao final da palestra, eram muitas as pessoas que queriam pedir autógrafos a ele nos bastidores, mas, como reza o evangelho, muitas compareceram, mas poucas tiveram o privilégio. Eu levei um caco de vidro comigo e tentei furar o bloqueio na marra. Quando um segurança me deteve eu fiz um corte na minha testa e o sangue começou a jorrar. O segurança ficou assustado e eu gritei.

- Um emissário de Cristo me agrediu e tirou sangue da minha cabeça! Socorro!

Um jornalista que estava por perto viu e confirmou.

- O cara está sangrando! Foi o segurança que cortou a testa dele!

 Isso atraiu a atenção de muitos fiéis que ficaram horrorizados. E a coisa foi passando de boca em boca até chegar aos ouvidos do porta-voz do Cristo que ficou preocupado e deu ordens.

 - Tragam logo esse homem aqui, por favor!

 Quando eu cheguei ao salão onde ele encontrava-se esparramado num sofá, várias pessoas vestidas de branco vieram a mim. Deviam ser médicos ou enfermeiros ou ambos. O fato é que me trataram com rapidez, delicadeza e eficiência. A grande celebridade veio a mim, ajoelhou-se diante de mim, beijou minha testa com cinco pontos e fiquei quase cego de tantos flashes nos meus olhos. Parecia aquela cena quando o Michael Jackson veio fazer um show em São Paulo e o carro de um de seus seguranças atropelou um menino. Como vocês sabem, o preto vira-casaca teve que ir ao hospital e ao lado do menino de perna quebrada tirou um montão de fotos fazendo o ‘v’ da vitória com os dedos .

O tal de Paulo de Tarso, pois esse foi o nome que ele adotou também na nova encarnação, falou suavemente e com modéstia.

- Meu irmão, o que lhe fizeram é tão hediondo quanto o que fizeram com Nosso Senhor, por isso peço-lhe que me perdoe pois meus assessores não sabiam o que faziam.

 - Nossa, quem sou eu para te perdoar? Eu que lhe peço desculpas, pois a admiração que eu tenho pelo Senhor fugiu do meu controle. Não fique bravo com seus seguranças. Eu mesmo me cortei. Fiz esta bobagem só para te conhecer. Acho que muita gente faria pior só para tocar a túnica do nosso Mestre.

Paulo de Tarso, muito tranquilo, não se surpreendeu e continuou falando dócil.

 - É verdade! Qual é seu nome?

 - Alceu.

Paulo fez uma cara simpática do tipo ‘eu sabia!’, e chamou a atenção de todos que estavam no recinto amplo, e mais da metade dos que ali se encontravam era da imprensa.

- Meus irmãos, vejam que coisa maravilhosa aconteceu aqui hoje. Estou diante de mais um gentio convertido como eu. Um gentio que demonstrou mais força do que eu, pois ‘força’ é o que significa ‘Alceu’ em grego. É preciso ter muita força e coragem para seguir o Cristo. O nosso querido Alceu se mutilou apenas para estar próximo de um humilde e pobre apóstolo do Cristo. E o que ele não faria para estar com o próprio Cristo? É deste tipo de homem que o Cristo precisa no Reino dos Céus que está para ser inaugurado. Homens de força, vontade e coragem como o Alceu. Homens que são capazes de arrancar um olho que o escandaliza para não contaminar aquele que é digno diante de Deus, Nosso Pai.

E todos aplaudiram. E mais fotos foram tiradas do Alceu ao lado de Paulo de Tarso.

- Esta cicatriz que você acaba de ganhar na sua testa será como um ingresso para sua entrada no Reino de Deus. Quando as portas do Reino se abrirem e você dela se aproximar, os anjos guardiões verão a marca da sua conversão e logo reconhecerão: ‘Este foi chamado e é um dos escolhidos’.

E eu, só querendo fazer média, para não ficar o tempo todo só sorrindo como um bobo alegre, emendei:

- E o Senhor já nem precisa mais da sua, pois o Senhor foi o primeiro a ser escolhido.

 - Não preciso mais do quê, Alceu?

 - Da sua cicatriz, Senhor Paulo!

 - Que cicatriz, Alceu?

 - A cicatriz que levou o Senhor a se converter.

 - Não, Alceu, a luz que me cegou a caminho de Damasco não deixou nenhuma cicatriz!

 - Não sabia disso. E mesmo que houvesse uma não apareceria pois agora o Senhor veste outro corpo. Talvez o Senhor tenha ficado com uma cicatriz moral ao ter que trocar de nome.

- Como assim?

 - O Senhor chamava-se Saulo e, quando se converteu ao Cristianismo, mudou seu nome para Paulo!

 - Ah sim, todos sabem disso, mas o que isso tem a ver com a cicatriz?

 - Assim como o Senhor mudou de nome, poderia também ter mudado de cicatriz.

 Ainda muito sereno e falando com segurança, Paulo sorriu meigamente para mim.

 - Não, Alceu, eu nunca tive qualquer cicatriz.

Paulo colocou sua mão sobre o meu ombro com carinho e seu sorriso simpático dispensava prolixidade sobre o assunto. Afinal, ele já tinha consagrado-me ao revelar-me, diante de muitos, um homem de força e um dos escolhidos. Em consonância com o que acabo de dizer, ele, instintivamente, ergueu levemente o traseiro do assento, fazendo aquele gesto típico e involuntário de quem está querendo dar a conversa por encerrada. Naquele instante, eu estava constrangido. Sabia que eu teria que ter a educação de pedir licença para ir embora, mas frustrado, porque eu queria tanto conhecer aquele homem e lhe fazer tantas perguntas para matar a minha curiosidade. Lá estava eu diante dele e o momento não se ofereceu para os meus verdadeiros propósitos. E eu estava muito envergonhado também, porque tenho a soberba de pretender escrever um livro sobre o cristianismo e estava ao lado da maior sumidade no assunto e para a qual nem perguntas pertinentes eu era capaz de formular. E ainda, com aquela minha mania de dar palpite em tudo e achar que eu sei falar sobre tudo, passei vergonha com aquela conversa sobre a cicatriz que nem eu mesmo sei como é que fui tão longe com ela sem qualquer proveito. Eu sou aquele leigo que se mete em tudo, que se acha autodidata. Um palpiteiro que lê uma coisa aqui outra ali e já pensa que pode escrever um tratado, um livro, que pensa que pode responder a qualquer pergunta sobre qualquer assunto como se fosse uma biblioteca ambulante. Eu estendi minha mão ao Paulo e o agradeci efusivamente por ter me recebido e não consegui sair de lá de outra forma senão como aquele chato de galocha que arranca casquinha de ferida cicatrizada e não percebe que alongar-se sobre um pedido de desculpas já acolhido não irá tornar-me mais escusado.

- E me desculpe mais uma vez por aquela história da cicatriz. É que esse tipo de assunto sempre me intriga e me faz ficar pensando, como aquele homem que teve a orelha decepada pela espada de Pedro e depois Jesus a recolou de volta com terra e cuspe, e eu fico sempre pensando que tipo de cicatriz aquele homem carregou. Eu fico cismado com estas coisas de cicatrizes, troca de nomes, nomes que tem significados como o meu e o seu, espero que o Senhor me entenda.

E o Paulo não só me entendeu como também acho que se compadeceu. Deve ter ficado com dó de mim, pois, lentamente, voltou a se sentar e a me dar ouvidos, como um Cristo resignado que não oferece qualquer resistência ao seu flagelo. Só poderia ser piedade, foi o que pensei na hora. De repente, sem eu perceber, todos tinham se retirado e uns poucos seguranças permaneceram, e eu me vi quase a sós com aquele deus naquele enorme recinto. Talvez ele quisesse deixar eu falar o quanto quisesse e não permitir que os outros rissem de mim. Isto, sim, era um gesto nobre, singela compaixão. Só quando ele teve certeza que os distantes guarda-costas não podiam nos ouvir, ele delicadamente me falou:

- Sente-se, Alceu! Fique à vontade! Eu sei que você tem mais coisas para perguntar. Pode perguntar-me o que você quiser!

Ele me falou com tanta naturalidade, com tanta paciência, que eu me senti à vontade de verdade, esquecendo que eu estava diante de um monstro sagrado da história do ocidente. Paulo fez me sentir como se eu estivesse batendo um papo com um amigo de escola na hora do recreio. Eu fiquei aliviado, deixei de lado os rodeios, os melindres, e consegui, finalmente, ir direto ao que me interessava, sem constrangimentos.

- Senhor Paulo, por que o Senhor trocou de nome?

- Alceu, nomes não são importantes. O que vale são os atos. Minha troca de nome foi um ato simbólico de batismo, de conversão de um arrependido perseguidor de Cristãos para um humilde servidor do Mestre.

- Sabe, Senhor Paulo, eu sempre achei muito intrigante o que se esconde por trás dos nomes assim como as cicatrizes que carregamos de uma vida para outra. Perdoa-me perguntar mais uma vez. Então, o Senhor nunca teve mesmo uma cicatriz?

- Não, Alceu, nunca tive. Continue perguntando e pode chamar-me de ‘você’.

- Sabe aquilo que lhe falei sobre o homem que teve a orelha cortada pela espada de Pedro?

 - Sei, Alceu. Pode falar.

 - Há algo muito curioso naquela passagem sobre a prisão de Jesus e que é narrada apenas no evangelho de João.

 - Muito bem. Quero ouvir.

 - O evangelista João diz que o sujeito que se adiantou para prender Jesus era um escravo do Sumo-sacerdote e acrescentou, ainda, que o nome deste escravo era Malco.

 - Ótimo, Alceu. Estou gostando muito. Continue.

 - E foi esse escravo chamado Malco que teve a orelha cortada pela espada de Pedro e que Jesus imediatamente colocou de volta. Eu pergunto-me, havia ali tanta gente importante, como o próprio Sumo-sacerdote, sua tropa e sua entourage. Por que João fez questão de revelar o nome de apenas um simples escravo a serviço dos Fariseus?

 - Ah, Alceu, isto foi uma mera preciosidade do nosso querido João. Na verdade, ele teve pena do podre coitado que lá estava a mando do Sumo-sacerdócio e João quis realçar que, até mesmo num momento de agonia, Jesus foi capaz de compadecer-se de um de seus algozes e realizar mais um de seus milagres.

- Já que o Senhor falou em preciosidade, ocorre-me agora que todos os evangelhos estão repletos delas. Muitos nomes para pessoas irrelevantes e ausência de nomes para pessoas importantes.

- Mas, Alceu, é justamente essa a tônica dos evangelhos, exaltar os mais humildes. ‘Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros’, lembra-se?

 - Sim, Senhor, lembro-me, mas, perdoe-me, não resisto à tentação de fazer-lhe uma pergunta mais contundente e que incomoda-me há muito tempo.

- Pois pergunte-me, então, Alceu!

- Por que existe esta teoria nos dias de hoje de que os evangelhos foram criados após a sua morte para exaltar a figura do Mestre e diminuir seu poder.

- Meu Deus, Alceu, de onde você tirou esta ideia? Os evangelhos são os livros mais divinais já escritos na história da humanidade. Minha missão era apenas divulgar as boas novas do Mestre entre os gentios através da ressurreição dos mortos, um milagre que o Mestre operou e trouxe esperanças a todos os que tem fé e acreditam sem terem visto. Os evangelhos são livros magníficos que discorrem sobre todo o ministério de Jesus Cristo na terra e transmitem seus ensinamentos a todos os seguidores.

- Senhor Paulo, volto a questão dos nomes. O Senhor tinha um nome de rei, Saul, o primeiro rei dos hebreus, se não estou enganado, e o trocou por um nome grego, Paulo, que significa ‘baixo’ ou de baixa estatura. Isto não teria sido uma maneira de diminuir seu poder? Uma pessoa com o poder de um rei que passa a ter o nome de uma pessoa de importância menor!

- Não, Alceu, é exatamente o contrário. Trata-se desse homem diante de você, um arrependido perseguidor dos cristãos que se apequenou para não mais perseguir, mas servir com humildade.

- Bem, Senhor Paulo, quando o Senhor perseguia os cristãos o Senhor mandou matar um de seus mais fortes oponentes, Estevão. Isso não era uma luta pelo poder?

- Não, Alceu, esse foi um dos atos dos quais mais me arrependo em toda minha vida. Não se tratava de luta pelo poder. Era apenas meu ódio pelos cristãos e meu desejo de destruir um de seus maiores líderes e todos seus seguidores, e eu teria continuado a matá-los todos não fosse a intervenção do Mestre que salvou minha vida, convertendo meu ódio em amor à humanidade e à sua causa.

- Senhor Paulo, eu volto a questão dos nomes porque eles são muito significativos. O Senhor tinha um nome de rei e Estevão em grego significa ‘coroa’, coroa de rei. Ao mandar matá-lo o senhor não estaria tentando tomar seu lugar?

- Não, Alceu, eu não estava tentando tomar o lugar de um cristão. Na verdade, eu estava querendo destruir todos eles.

- Senhor Paulo, quero fazer-lhe uma última pergunta: Tem certeza que o Senhor não conheceu o Mestre em vida?

- Eu não o conheci como os apóstolos o conheceram, mas posso dizer que, praticamente, eu o conheci em vida porque, embora ele tenha sido assassinado, ele ressuscitou dos mortos e, mesmo depois de sua ascensão aos céus, ao lado de Nosso Pai, ele veio a mim para converter-me e tornar-me o principal mensageiro de suas boas novas. Mas, Alceu, por que você insiste tanto em me incriminar de  maneira tão implacável e inexplicável?

- Senhor Paulo, o Senhor não foi digno de ter seu nome mencionado em nenhum dos evangelhos, e acho que João foi o único que decidiu, com sutileza, dizer a todos nós quem o Senhor foi, na verdade. Eu acho que o Senhor era aquele serviçal chamado Malco a mando dos Fariseus porque este nome, Malco, em hebraico significa ‘rei’.