segunda-feira, 30 de setembro de 2024

ALELUIA

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Eis aqui mais uma poesia de Alceu. Em cada texto que escrevia, ele sempre escolhia uma ilustração que pudesse sintetizar a mensagem do texto, e nesta a menina parece, com um toque mágico, liberar as tensões da alma ferida na escuridão. 

O que do mais carente grado para vencer mais esse intransponível obstáculo ainda posso receber? Mais um milagre? Posso travestir-me de madeira e de cera, Me oferecer a todos santos em cumprimento de mais promessas, As promessas de vida no meu coração de Tom Jobim? Coração é só coração, E o meu sentimento, Só vem com a imaginação de Fernando Pessoa? A vida é só vida, A minha, Tumultuosa e anelante, Verte, Mas atrás de minha fé, Trilhando ogros caminhos, Ensanguentados aos meus pés, Avultam, Arrastando-se pelo chão, Dois anjos alados, Esforçando-se para erguerem-se contra minhas tristezas e incertezas, Abençoando minha cabeça sentenciada a trabalhos forçados, Encrespando minhas liras de festões engrinaldadas, Esvoaçando com suas auras meu orgulho de grã diadema de bastas flores nos meus ombros, Quem me dera minha alma nunca se envenenasse de malevolência contra quem quer que seja, E antes fosse servindo a todos como pudesse, Através das desventuras do meu destino e de uma longa vida, Saindo destes dias melhor acompanhada, E Anoitecendo com ela sempre lavada. 


SOBREVIDA

Esta é a praia de Fortaleza em Ubatuba, SP, a favorita do Alceu, onde ele nadava por horas mar adentro até 2017, antes de sua invalidez. Foi em 2017 que surgiram os primeiros indícios de que ele tinha câncer e não sabia. Ele desmaiou na praia, foi levado ao Hospital Municipal de Ubatuba com um nível de hemoglobina próximo de zero, precisando de uma transfusão.

Ele pediu desculpas ao mar e agradeceu às pessoas anônimas que o socorreram.



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 


Meu mar, Hoje não pude te abraçar, As ilhas que tem fecham, Mesmo felizes como eu estava, Não furtaram às vistas suas preocupações, Em que mundo, Em qu´encosta tu t´escondes, Em quais águas tu t´embuças? O sol estava a pino, O céu puríssimo, E eles, Também, Mesmo plácidos como sua margem sem ondas, Inquietavam-se como duas crianças que correm e se cansam, Em Qu´espaço, Em qu´estrela tu t´esquentas, Em Qual firmamento tu t´enfias? De súbito, Me vi mergulhado nas trevas, Como sôfrega raiz, A procurar ali uma boa seiva, Onde o som do silêncio, É como sua profundeza, O ventre de sua mãe, Onde a luz da escuridão, É como nosso universo antes de nascer, Depois de morrer, Debrucei-me sobre este abismo do inexplicável, Demorei-me a divagar sem rumo, Perdido neste umbral intrincado, Como pude me transgredir? Mas como ainda existe gente boa nesta terra, Acordei, Como o homem desperta a cada alvorada e sai, Para o acaso da providência, Meu mar, Uma vez já te disse que jamais contaminei suas suaves ondulações salinas que me dão paz interior e que nunca sairão do lugar, E quero sempre para ti voltar, Mas se nossos pais decidissem te levar antes de mim, Eu não morreria tão feliz.

IN CAELUM FERO

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Quatro trêmulos de estridência abafada. Um tico de eco em cada. Menos susto que salva de armas. Homenagem. Pomposos e solenes metais retumbam com suas tessituras. Redobres de tímpanos e tambores asfixiam a saraiva aturdindo telhas de asbestos. Vozes cheias, femininas acriançadas, entoam:




Ma-we ka-ya-ma-na
Ma-we ka-ya-ma
Ma-we
Ka-ya-ma--ta-na
A-ma ka-ya-ma-na 
  A-ne-a 

O rei da cocada preta na barriga leva embora consigo a vida de nababo. Sem lei. Sem grei. São duas suas únicas súditas. Urubuas e carpideiras. Fazem as vezes de carregadoras de caixão e coveiras. As misseiras de sétimo dia, romeiras dos finados de Novembro. Nos gastos agora marcham. Nada resta. Nem para acender uma bituca de vela. Nem pálida oferenda de luz bruxuleante para o arqui-inimigo do Diabo. Este as tem de sobra. Rubro-negras. E as doa. Praza a ele que a morte não sequestre, ao seu zelo, seu acordo com o defunto. Cacifa-se à sucessão de Deus. Aposta tudo no guardamento da alma vendida. Satura a sentinela com muitas camirangas. Presentes que um potentado manda a outro. Mimos soberanos. A música escolhida pelo falecido ecoa nos ouvidos longínquos. Como numa concha acústica de teatro grego. Rimbomba. Angustia as duas mulheres. É calada. Dá lugar ao som do silêncio. Estanca todas os ruídos da natureza. Feito disco voador aterrissado. Na sua solidão que desconhecemos. Como nesta noite de inverno nortehemisferiano. Curta. Apressa o enterro. Por conta de cambaleantes sonolências e desavisadas ausências. Exceto por um intruso. O real que não é visto. Do tinhoso recebe uma olhadela de soslaio de indiferença. O metediço em vida não atinava para a falência múltipla de um falto de juízo. E em termo, respondendo a preces, nunca foi ouvido, Resta, Então, Às resignadas choramingas, Improvisar um dueto gregoriano de despedida, Que emociona até o coisa à toa, E em sinal de cínico respeito, Deita seus lábios sobre a testa do moribundo, E espalha pelo ambiente uma catinga de carniça podre, Enxofrada, Tal qual o fedor da decomposição de um corpo sob a terra, Um a menos que já nem fazia mais parte de qualquer estatística, Quantos cidadãos comuns do antigo império romano morreram sem nome? Todos! Quantos escravos da gloriosa Atenas fazem parte dos anais da história? Nenhum! Quantos servidores e usurpadores dos dias atuais continuarão a existir para a posteridade?