domingo, 27 de outubro de 2024

PÉSSIMO AGOURO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegid pela Lei 9610/98. 

COMENTÁRIOS SOBRE A CRÔNICA DELÍCIAS PELO BURACO DA FECHADURA, DE HUMBERTO WERNECK, PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO EM 24/12/2019 (Leia esta crônica na íntegra abaixo do vídeo).A ilustração é uma foto que o Humberto Werneck tirou da Nossa Pietà, numa esquina da Avenida Paulista, no dia 30 de Novembro de 2019, e que foi capa da edição de dezembro de 'O Trem Itabirano', ótimo jornal mensal, segundo Humberto, criado e editado por Marcos Caldeira Mendonça na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade.

Neste dia madraceirão, largado num sofá, coçando o saco, dando tratos à cabeça e catando alguns inesperados e folgados pediculus humanus, deleitei-me com sua crônica natalina, sempre repleta de bela eloquência, e que só perde para a elegante mensagem de natal na capa do jornal O TREM. Por sorte, nossa Pietá, magnificamente fotografada por você, estava devidamente coberta. Modéstia à parte, tenho o mesmo donaire deste Marcos Caldeira Mendonça. De volta ao tema principal, quando eu tinha seis anos ganhei um trenzinho do Papai Noel, mas meu primo Garfão fez o mesmo que um espírito de porco fez com você. Também não traumatizei com o apocalipse. E de roldão, aquele tridente do diabo roubou minha pureza. Comunicou-me que não vim ao mundo pelo bico da ave pernalta da família dos ciconiídeos. Você, disse ele, saiu da barriga de sua mãe via vaginal. En passant, digo de onde vem nosso espírito de porco. Daquele demônio que ocupava o corpo de um inocente com uma legião. Diante da ameaça de expulsão pelo mitológico Jesus, o tinhoso pediu ao filho do homem para baixar os seis mil legionários (número de soldados daquele destacamento militar romano) numa vara de porcos que circulava no local. Tendo seu pedido atendido, precipitou os suínos no mar da Galileia, que, na verdade, era um lago. A inventora desta fantasiosa história inspirou-se no ritual de purificação dos Mistérios de Elêusis no culto das deusas Deméter e Perséfone da antiga Grécia de Sócrates e Platão: porcos lançados ao mar para banho e sacrifício para afastar demônios. Sua saudosa e sublime crônica levou-me à quinta leitura de um velho livro que guardo desde os anos oitenta: The Mysteries Of Mithra, escrito em 1902 por Franz-Valéry-Marie Cumont, arqueologista e historiador belga. Uma nota na contra capa lembra-me todos os desvelos que sua mãe tinha para os adereços natalícios, especialmente as folhas de papel grosso, com uma demão de cola, polvilhadas com especularita, manipuladas com mãos de artista. A nota do livro diz: We have made every effort to make this the best book possible. Our paper is opaque, with minimal show-through; it will not discolor or become brittle with age. Pages are bound in signatures, in the method traditionally used for the best books, and will not drop out. Books open flat for easy reference. The binding will not crack or split. This is a permanent book. E, de fato, o danado nunca solta uma folha sequer. É um livro para toda vida, assim como são suas deliciosas lembranças dos tempos de criança, eternizadas nos seus textos jornalísticos. A releitura dos citados mistérios trouxe-me à memória as ferrenhas discussões nos concílios do século 4 da era comum (e.c.), para decidir quais dos mais de trinta evangelhos fariam parte do cânon cristão e qual seria a melhor data para o nascimento de cristo. Comunidades cristãs do século 3 e.c., principalmente no Egito, comemoravam o nascimento do nazareno no dia 6 de Janeiro, em adoração aos magos, o clero oficial dos persas, a partir do qual surgiu a lenda cristã dos três reis magos. O Concílio de Niceia de 325 e.c. condenou tal data como sendo uma heresia e propôs outra. Finalmente, em 354 e.c., decidiu-se que o dia do nascimento de Jesus seria 25 de Dezembro, porque era no solstício de inverno que celebrava-se o renascimento do deus invencível, o Natalis Invicti, Deus Sol Invicto dos romanos, uma ideia tirada de Mitra, o Deus Sol da mitologia persa, que morreu e ressuscitou. Caro Humberto, não sei se é sábio dizer 'no ano felizmente passado', porque acredito que o próximo promete ser pior que o atual. Talvez, melhor seria pedir ao tempo, este majestoso senhor da eternidade e do infinito, para nos retroagir aos nossos dias de inocência. Feliz 2020!




Humberto Werneck Delícias pelo buraco da fechadura
Humberto Werneck
Como naquele dito sobre a festa, melhor ainda que o presente, muitas vezes, era esperar por ele.
Aproximando-se o Natal, a nossa mãe – pronome possessivo que chegou a abarcar onze crias, número suficiente para formar um time feminino de basquete e um masculino de vôlei – se munia de lápis, papel e paciência para ouvir os mais delirantes, os mais inexequíveis desejos da meninada.
A dona Wanda e o dr. Hugo com certeza tinham sua estratégia para, de modo indolor, nos convencer de que nem todas as nossas fantasias, quando não a maioria delas, estariam atendidas sob a árvore de Natal na manhã de 25 de dezembro. Provavelmente sabiam que também o inesperado pode ter o seu encanto, e lançavam mão de surpresas gostosas para prevenir eventuais decepções da filharada. O fato é que o expediente funcionava. Pelo menos não me lembro de ter sentido falta de alguma coisa ao desembrulhar o que o Papai Noel deixara para mim.
A única exceção, já contada aqui, foi, bem menino ainda, um par de muletas, petrecho que, para mim, passava ao largo da ortopedia para se constituir num instrumento de prazer, tão fascinante quanto as pernas de pau sobre as quais eu via se equilibrarem uns malabaristas. Não me lembro do que terá vindo em lugar delas, de modo a compor um trio de regalos que incluía um par de óculos escuros e um anel de prata, com chapinha para gravação de iniciais, adornos em cujo uso & gozo fui flagrado numa foto aos 4 anos de idade.
Não me lembro, também, de ter pedido a Papai Noel o exemplar do Missal Cotidiano que, aos 10, encontrei aos pés da árvore, junto com o meu primeiro relógio, um Lanco dourado de 15 rubis, minúsculas gemas que, no interior da máquina, providenciavam o seu bom funcionamento, desde que o usuário não se esquecesse de dar corda uma vez ao dia. Meu Lanco parou irremediavelmente em algum ponto do caminho, mas o Missal Cotidiano (“editado e impresso nas oficinas tipográficas do Mosteiro de São Bento, Bahia”, em março de 1954) segue acompanhando o infiel que perdeu bem cedo a fé religiosa, mas que ainda assim o trata como relíquia, quando menos pela razão pagã de figurar, no topo da folha de rosto, o seu nome completo e a data do presente, “25-12-1955”, na bonita letra materna. Ao longo de décadas, mais de uma vez voltei a esse livrinho, e outras tantas voltarei, não para rezar, mas para, digamos, procurar nomes e datas na extensa lista de santos do dia.
Já não sei quando foi que algum espírito de porco me comunicou que “o Papai Noel é o pai da gente”. Da revelação não me ficou o menor trauma, diferentemente do que aconteceu quando alguém me fez saber que não passava de invencionice a cegonha que por onze vezes pousara no lar de Hugo e Wanda – assim como, aliás, em igual número de ocasiões, na casa ao lado, moradia do tio João Antônio e da tia Yedda. Mesmo nas Minas Gerais daquele tempo, católicas a mais não poder, e sem televisão para ocupar os casais, bem poucos telhados terão sido tão assiduamente frequentados quanto aqueles dois pela referida ave pernalta da família dos ciconiídeos.
*
Mal entrava dezembro e a nossa mãe exumava dos armários uma árvore natalina artificial, cujos galhos, dobrados junto ao caule no restante do ano, me sugeriam um guarda-chuva verde fechado. Junto com ela e as respectivas bolas coloridas, voltavam à luz algumas folhas de papel grosso que, depois de receberem uma camada de cola, haviam sido polvilhadas com um minério de ferro que, por brilhar ao sol, se chamava especularita. (Não se impressione com a exibição de ciência: dono de uma ignorância especializada também em geologia, recorri aqui às luzes de meu irmão Rodrigo, engenheiro de minas e metalurgia).
As folhas de papel eram manipuladas com mãos de artista para que compusessem, sobre uma mesinha baixa, uma réplica doméstica da gruta onde nasceu Jesus. Espelhos com as margens recobertas de areia simulavam laguinhos. Aqui e ali, nosso presépio era adornado com tufos de musgos que, tanto quanto a especularita, íamos colher nos contrafortes da Serra do Curral, hoje em grande parte tomados por uma urbanização voraz.
A paisagem era habitada por figuras de louça colorida de Nossa Senhora e São José, além de considerável fauna à qual não podia faltar uma literal vaca de presépio. Vindos de longe, os três Reis Magos a cada dia avançavam alguns milímetros em direção à gruta, com suas oferendas de ouro, incenso e mirra, palavra esta que me fez correr ao dicionário. O berço de Jesus permanecia vazio até os primeiros minutos de 25 de dezembro; mas nós, a arraia miúda, não víamos o momento em que o recém-nascido era ali gloriosamente entronizado, com seus bracinhos abertos para nos abençoar. Sua chegada se dava altas horas da noite, quando papai & mamãe Noel, pé ante pé, vinham depositar sob a árvore os nossos presentes.
Quando acordávamos, bem mais cedo que o habitual, encontrávamos trancadas as portas da sala, e havia alguma disputa para ser o primeiro a colar o olho no buraco da fechadura, no mais inocente dos voyeurismos. Como não dava para saber quem ganhara o quê, a nossa impaciência ia acordar os pais, no quarto ao lado. Num daqueles Natais, houve a surpresa de verificar que as pilhas de presentes não estavam, como de hábito, no piso da sala, e sim no assento do vasto sofá ao fundo. Depois soubemos que uma chuvarada noturna tinha apanhado de jeito uma janela mal vedada e provocado uma inundação no soalho. Mas nenhum presente se molhou – motivo adicional para a nossa já enorme admiração pelo Papai Noel: cuidava de tudo, o danado!


O Estado de S. Paulo, 24/12/2019;

Nenhum comentário:

Postar um comentário