sexta-feira, 18 de outubro de 2024

NATASHA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


TEXTO ESCRITO HÁ 3 ANOS



Maio de 1981. Estou em Bucareste, capital da Romênia, terra do Conde Drácula que, segundo histórias deformadas pela imaginação popular, empalava mais gente do que a santa inquisição, mais ainda do que Cercei e Daenerys juntas foram capazes de assassinar na idade média fictícia do filme Games Of Thrones (GOT). Naquele tempo eu já não usava nem relógio e nem cueca, mas levei um crucifixo, just in case, you know. Não fui à antiga Dácia, uma província do império romano, a passeio. Parafraseando Fagner, passeio é para quem tem casa na praia e joga prata no ar. Fui enviado para as bandas da Transilvânia para camelar por uma empresa brasileira que nada produzia, exatamente como nosso atual governo. Os Camelots Du Roi só compravam  negócios de terceiros já fechados, mormente para ter acesso a empréstimos federais a juros subsidiados - um eufemismo de falcatruados. O NeedWant, nome dado a um prostíbulo no seriado Defiance, devia ter uns 200 proxenetas, algumas cafetinas, e minguados aspirantes à integridade profissional. Foi o maior cabide de empregos onde já trabalhei com carteira assinada - já foi tarde, carteirinha de trabalho. O NeedWant tinha rebentos de nepotismo e paternalismo de todo tipo: burocratas aposentados do alto escalão do Banco do Brasil, filhos de políticos - eufemismo de corruptos -, playboys, comediantes, tele operadores de piadas, pseudo economistas, frequentadores do Jockey Clube, de Rinhas de Galo e da Bolsa de Valores, aprendizes de puxa sacos, mágicos que faziam dinheiro sumir na sua frente, médiuns que encorporavam espíritos desempregados e muares semelhantes à nova sub-espécie que surgiu na última eleição presidencial. Meu QI era um bocadinho acima da média, mas não do tipo Quem Indique que pagava os mais altos salários e dispensava curriculum para admissão. Respondi a um anúncio no Estadão e só consegui o emprego depois de uma rígida peneira e várias e angustiantes entrevistas semelhantes aos diários e torturantes interrogatórios dos juízes do carrasco do Vaticano aos quais Joana D'Arc foi submetida. Eu era - pero no mucho hoy en día - um idealista imbecil - hoje sou mais tenebroso e pé de gancho do que o Rei da Noite do GOT - com uns longes de iniciativas vacilantes. Apesar das severas restrições impostas às minhas ousadias, tidas como desavisadas, consegui bons negócios com empresas japonesas - e isso iria me render dividendos 6 anos mais tarde - e com muitos países do bloco comunista. Eis aqui uma ironia do regime militar no Brasil varonil. Eles tomaram o poder através de um golpe de estado sob o pretexto de que João Goulart queria implantar o comunismo na pátria amada. E como sabemos, eles assassinaram muitos estudantes que se manifestavam abertamente contra a opressão tirânica e abjeta dos milicos - o gorila dos tempos atuais diz que a ditadura não matou tanta gente assim e que desaparecidos não podem ser contabilizados. E o paladino do nazismo coloca o coronel e torturador Ustra no pedestal do brilhantismo repressivo e criminoso. Enquanto os jovens lutavam e morriam contra o autoritarismo, os brutamontes faziam acordos comerciais com todos os camaradas do leste Europeu, onde o direito de ir e vir do cidadão era quase uma utopia, precisamente como as fake news dos bozominions sabotam a liberdade de expressão da nossa agonizante democracia. As transações eram bilaterais, feitas separadamente com cada país marxista, e conduzidas na base de troca, chamada de Barter Business no jargão do comércio internacional, sem envolvimento de nenhum tipo de moeda. Funcionava assim: eu compro um quilo de você e você compra um quilo de mim e nossos governos se incumbem de fazer os acertos financeiros. Meu cândido hegelianismo atrevia-se e propôs uma viagem aos países da cortina de ferro, com objetivos bem definidos: romper o monopólio de uma concorrente brasileira que mantinha conchavos com o governo da Alemanha Oriental, levar à Romênia, com quem iniciara bons contatos à distância, as mesmas propostas de negócios bem-sucedidos que já mantinha com a Polônia, país que estava na minha agenda de visitas e, finalmente, abrir o mercado da União Soviética com os mesmos trocas-trocas. Minha proposição foi unanimemente aprovada por razões óbvias. Plebeus fora do panelão como eu só tinham autorização para visitar países do terceiro mundo, enquanto os nobres do trono de ferro só iam a países do primeiro mundo. E os do segundo mundo? Ninguém se habilitava a conhece-los porque neles não era possível gozar das mordomias e regalias encontradas somente na Europa ocidental e nos EUA. Então, vamos deixar este day dream believer se ferrar naqueles cárceres socialistas. Comecei pela Alemanha Oriental e não fui bem-sucedido, mas também não considerei-me derrotado. Ocorre que a Ministra da Economia daquela clausura, com quem me encontrei, estava recebendo em dia suas propinas depositadas em sua conta na Suíça e sendo muito bem comida pelo seu amante brasileiro. Minha malfadada experiência na Alemanha Oriental mereceu um texto poético, voltado para o lado humanista e cultural, já postado no meu blogue com o título LIBERDADE SILENCIOSA. Passei uma semana em Leipzig, sul da Alemanha Oriental, e num sábado à tarde deveria pegar um voo para Berlim Oriental, do lado comunista, e de lá voar para Bucareste no domingo de tarde. Durante minha estadia em Leipzig, conheci um brasileiro na feira internacional de primavera. Ele também iria partir no mesmo sábado à tarde, mas para Berlim Ocidental, do lado capitalista, onde ele alugou um carro. Ele me convidou para irmos juntos de carro para Berlim. Topei. Cancelei meu voo e rodamos cerca de duas horas e meia. Ao longo do caminho pudemos ver tropas russas fazendo exercícios de rotina com soldados alemães como parte do chamado Pacto de Varsóvia, uma resposta dos soviéticos à OTAN dos Americanos. Ao anoitecer chegamos ao muro da vergonha que separava as duas Alemanhas, fortemente vigiado e controlado pelos exércitos russo e alemão, empunhando metralhadoras. Atravessar a muralha e passar para o lado capitalista foi um thriller, uma experiência cinematográfica e emocionante, como cruzar o território dos walking deads do GOT. Cada carro passava por três vistorias em três tipos de pedágios, bem fortificados e distantes 50 metros um do outro. No primeiro, um soldado alemão de alta patente, supunha, falando um bom inglês, nos pediu os passaportes, examinou-os e nos perguntou o que estávamos fazendo na sua Germânia. Falamos a verdade. Ele nos perguntou o que tínhamos no porta-malas do carro. Mais uma vez, falamos a verdade. E nos bolsos? Meu companheiro disse ter apenas documentos. O soldado abaixou a cabeça, esticou o pescoço e olhou para mim, E você? Eu tinha 29 anos, menos ousado do que ingênuo. Achando que fosse fazer um agrado ao capitão, tirei do bolso 150 marcos alemães orientais e disse-lhe, todo sorridente, que estava levando o dinheiro como souvenir. Imediatamente o meganha sentenciou em tom agressivo: Os dois para fora do carro. Meu colega perguntou o que houve e o mata-cachorro respondeu: Vocês não sabem que é proibido sair de nosso  país com nosso dinheiro? Eu retruquei: Não sabíamos disso. Ninguém nos disse nada. Como te falei, pretendia levar este dinheiro para meu país como uma lembrança do seu porque não sei se um dia voltarei aqui. O maenga nos olhou feio: Vocês vieram aqui violar nossas leis? Opa, eu disse, claro que não. O soldado chamou outros guardas e mandou eles fazerem um pente fino no carro. Nós dois fomos levados a uma cela, sem grades, mas era um aposento para meliantes porque estávamos trancados num pequeno espaço sem janelas. Numa das paredes havia uma portinhola com um balcão, um guichê semelhante a bilheteria de cinema. A cada 5 minutos surgia uma jovem de cara fechada, vociferando um alemão que pouco entendíamos. Meu repetitivo das weiß ich nicht já não se sustentava. Cacete, Alceu, você apronta cada uma, impacientou-se meu colega. Espera aí, eu não sabia disso e não venha me dizer que você sabia. A lavagem cerebral que fizeram nestes comunas é tão alienante que eles chegam a pensar que o dinheiro deles vale ouro. E lá em Leipzig a pensão onde fiquei não aceitou pagamento com marco alemão oriental que para eles não vale nada. Só aceitaram marco alemão ocidental e dólar que valem muito mais e só com estas moedas eles podem pagar as mercadorias contrabandeadas do ocidente. Lá vinha a alemã colérica de novo. Ela me mostrou uma nota de marco alemão oriental e um pequeno papel, um tipo de recibo. Agora entendia. Ela queria que eu apresentasse o comprovante de troca dos dólares. Mas eu não tinha  porque troquei o dinheiro no câmbio negro. No mundo comunista tudo funcionava somente por baixo do pano. Falando um péssimo alemão, pedi a ela para trazer alguém que entendesse inglês. Ela saiu e voltou com o meganha que nos deteve. Expliquei a ele que troquei os dólares num banco e que joguei o comprovante fora porque meu país não exigia a apresentação de qualquer tipo de prova cambial - isso não era verdade. Tomamos um chá de cadeira de mais de duas horas até que o english speaking eastern german guy reapareceu e fez algo inacreditável. Me entregou 150 marcos alemães ocidentais e nos disse que estávamos livres e poderíamos ir embora. Ele trocou os marcos na base de 1 por 1, sendo que o ocidental valia dez vezes mais, aliás, o oriental não valia absolutamente nada e só servia para o povão sofrido da Alemanha soviética, socialista de araque. Lá fora o carro estava quase depenado. Tudo no chão, malas abertas, roupas, amostras de produtos. Dos males o menor. Arremessamos tudo dentro do porta-malas. Vamos cair fora desta porra, depois arrumamos tudo no hotel. Passamos pelo segundo pedágio. As mesmas perguntas e as mesmas respostas. Vem o último pedágio e, finalmente, encontramos  um alemão comunista com senso de humor. Ele olha nossos passaportes, sorri e emenda: Oh, Brasil, Pelé, café! E eu, sempre impulsivo, ainda mais tão aliviado, tive a cara de pau de dizer que o Pelé era meu parente. O alemão vibrou, saiu da cabine e pediu para meu companheiro tirar uma foto com o primo do Edson Arantes. Agora estávamos livres de fato. Um pouco mais à frente surgiu uma enorme placa. Você está entrando em área sob controle dos EUA, França e Inglaterra. Meu camarada bradou de alegria. Estamos livres, Alceu, e  você, seu filho da mãe, quase nos ferrou de novo. Nem mulato você é para ser parente do Pelé. Caramba, você apronta cada uma! E esse camarada aqui compartilhou: Então, meu amigo, vamos comemorar nossa fuga de Alcatraz esta noite em Berlim. Vamos torrar estes 150 marcos num bom restaurante. Sair de Berlim oriental e passar para o lado ocidental era o mesmo que migrar do inferno ao paraíso. A diferença entre as duas metades era gritante. No domingo de manhã meu companheiro precisava ir ao aeroporto para devolver o carro alugado e viajar para a Itália. Eu ainda precisava atravessar o muro outra vez, para o lado comunista, de onde sairia meu voo para Bucareste. No hotel perguntei como fazia para atravessar o muro. A recepcionista me disse que no centro da cidade saía um ônibus a cada meia hora e que tinha um passe especial para atravessar para o outro lado. Perguntei se existia outra maneira. Ela respondeu que havia motoristas de táxi que também tinham este passe. Pedi a ela para me chamar um. Ele me levou ao ponto de travessia mais famoso, chamado Check Point Charlie, mas quando lá chegamos ele empacou como esqueleto de burro, saiu do carro, desceu minhas duas malas e me pediu o dinheiro. O danado não tinha passe coisa nenhuma. Fui até o primeiro guarda americano e ele me deu a mesma sugestão da recepcionista. Volte ao centro da cidade e pegue um ônibus que tem passe para atravessar o muro. Voltar ao centro? Não! E se eu quiser atravessar para o outro lado a pé, posso? Pode sim, mas eu não faria isso. Pois eu vou fazer. Carregando duas malas pesadas, uma de roupas e outra de material de trabalho, comecei a caminhar por um estreito corredor ao lado da pista para veículos. Depois de uns 50 metros surgiu outra enorme placa: Atenção, você está deixando a área sob controle dos EUA, França e Inglaterra. Que se dane, vim aqui para fazer negócios com os comunistas. Mais 50 metros adiante, abriu-se como uma clareira na mata um espantoso posto de dois andares, protegido por cercas elétricas, arame farpado e concertinas, e com vários soldados com metralhadoras na parte superior. Na parte inferior um sentinela saiu de uma cabine e passou a me olhar à distância. Acho que ele devia estar pensando 'Quem é este espião disfarçado de turista idiota vindo para cá a pé e com duas malas?' Aproximei-me dele. Ele perguntou, em inglês, o que eu viera fazer ali. Expliquei. Ele me pediu o passaporte e a passagem para Bucareste. Entrou na cabine, fechou a porta, começou a falar demoradamente ao telefone, sempre olhando para meus documentos. Estou ferrado, pensei. Depois de uns 10 minutos ele saiu, me devolveu  tudo e me disse que em 5 minutos um carro viria me buscar e me levar para o aeroporto. E não deu outra. Chegou uma van. O motorista desceu, guardou minhas malas no porta-malas, gentilmente me abriu a porta do passageiro e lá fomos nós. No aeroporto, ele me ajudou a descer as malas. Dei-lhe uma gorjeta em marcos alemães ocidentais e ele me agradeceu muito. Pois é, nem sempre as diferentes ideologias, radicais e liberais, se opõem  ao bom senso e  à cortesia. Definitivamente, eu tinha cara de idiota, do tipo agente 86. Depois desse agradável sufoco, e enquanto esperava a chamada para embarcar, sentei num bar, tomei dois copos cheios de vodca russa, boa pra caramba, a melhor do mundo. Lá vou eu, decolando num Tupolev russo, robusto e estável. Só há romenos a bordo e a língua deles me é bem familiar. É meio latina. Consigo entender um pouco. Avião para eles é avion. Eles falam o tempo todo e bem alto, como eu, paulistano italiano. O piloto colocou som ambiente, só música dos Beatles! Pois é, o fab four é realmente universal. Antes de sair do Brasil, tinha dúvidas sobre como começar meus contatos na Romênia. Em todos os países comunistas todas as empresas eram estatais. Recomendaram-me pedir ajuda à Embaixada brasileira em Bucareste. E eles foram extremamente prestimosos. Se encarregaram de fazer reservas em hotel e disseram que iriam enviar uma carro para me apanhar no aeroporto. Quando cheguei, levei um susto, havia 5 pessoas com a placa ALCEU NATALI. O próprio embaixador, dois assessores brasileiros, o motorista e uma linda jovem romena, chamada Natasha, de olhos verde ágata, cintilando ao lusco-fusco. Fiquei preocupado. Como eu era - e ainda sou - um zé ninguém, nada importante, a presença desse pessoal no aeroporto devia ser para me avisar que algo ruim aconteceu. Talvez uma morte na minha família. Mas que nada! Eles me receberam com festa e gozações. Entramos num carro enorme. E no caminho para o hotel outro sobressalto. O motorista romeno falava português: Seja bem vindo ao nosso pais, Alceu. Um assessor brasileiro explicou: Todos os romenos que trabalham na embaixada são obrigados a falar português. Somente nós, brasilenses, conseguimos essa proeza. E era verdade! A Natasha também falava um pouco de português, mas ela era muito séria e economizava nas palavras. Chegamos ao luxuoso Hotel Intercontinental de Bucareste. Ainda bem que quem vai pagar a conta é o dono do NeedWant. Ao fazer o check in perguntei ao embaixador qual iria ser a programação do dia seguinte, uma segunda-feira. Espere um pouco, vamos te acompanhar até o quarto. E eles vieram mesmo, os cinco. O motorista romeno falou em bom português: Mas este quarto é para um sultão e seu harém. Nunca vi tanto luxo. Um dos assessores se jogou na cama. Ela é bem macia. Eu estava muito cansado. Queria tomar um banho e dormir, mas não sabia como dispensá-los educadamente. Não foi preciso dizer nada. O embaixador antecipou-se: Alceu, fique à vontade, se quiser tome um banho primeiro e troque de roupa. Fizemos uma reserva para um jantar no restaurante deste hotel que é ótimo. É incrível! No restaurante é servido de tudo, do bom e do melhor, uma fartura de comes e bebes, inclusive a predileta carne de porco dos romenos. O motorista exclamou: Meu Deus há quanto tempo não como essa delícia! Perguntei-lhe por quê. Alceu, você não conhece a Romênia. Este país era livre e todos criavam porcos em casa. Daí vieram estes comunistas e tomaram tudo da população. Hoje, se alguém  quiser comer carne de porco tem que pagar uma fortuna! Ao final do jantar, o Embaixador me passou a programação: Amanhã cedo a Natasha vem te apanhar aqui no hotel e levá-lo à embaixada. Na parte da manhã meus assessores comerciais lhe darão uma explicação completa sobre como se faz negócios aqui na Romênia. Na parte da tarde você terá um encontro com a Ministra da Economia e com ela você poderá discutir todos os tipos de transações de Barter Business que nosso governo mantém com este país. A Natasha vai te acompanhar o tempo todo. Tinha uma pergunta para o Embaixador: Vou ficar aqui dois dias, depois embarco para Varsóvia e de lá vou para outra cidade que é um polo industrial polonês. Minha preocupação são estas agitações trabalhistas que levaram à formação do sindicato Solidariedade que agora é uma força política sob o comando deste Lech Walesa e que acabou se elegendo presidente no ano passado. Ele é anticomunista, quer converter a Polônia ao capitalismo. Dizem que os soviéticos estão se preparando para invadir a Polônia. O embaixador, tranquilo, respondeu: Alceu, isto não vai acontecer, a OTAN não vai permitir e, se você tiver algum problema, acho que não vai ter nenhum, em último caso basta você se refugiar numa embaixada brasileira. Bem, se em último caso eu teria que sair correndo para me abrigar num reduto brasileiro, então, em primeiro caso, cancelei esta viagem à Varsóvia e deixei a Polônia para outra vez, e daqui de Bucareste vou embarcar direto para Moscou. Lá estarei protegido because nobody has the guts to invade the USSR. Tinha outra pergunta ao Embaixador: Preciso trocar dólares. O hotel faz isso? Não faz. Não, Alceu, a Natasha fará isso para você. O câmbio negro paga muito mais. Ela te levará o dinheiro amanhã. Diga a ela quanto você precisa trocar. Na segunda-feira, Natasha, de olhar menos sóbrio que a roupa que vestia, chegou cedo ao hotel. Convidei-a para tomar café. Ela aceitou. Natasha era alta, muito bonita, mas não sorria. Era solícita, mas sempre circunspecta. Acreditava que ela recebeu instruções de seu patrão para dar o melhor atendimento possível a um visitante brasileiro. Ela tinha uma postura austera. Com ela não tinha conversa mole. Dava conselhos sobre como se comportar e falar com as pessoas na Romênia. Ela se vestia bem, mas o estilo de sua roupa não combinava com sua jovialidade, talvez porque quisesse manter-se na formalidade e no profissionalismo que seu trabalho exigia. Ela tirou um pacote da bolsa e me entregou. Era o dinheiro romeno. Em seguida tirei de minha maleta um pacote de dólares e ela se apavorou. Por favor, esconda isso rapidamente. Se alguém me vê com dólares posso ser presa. Você me dá os dólares no carro. Pedi desculpas e ela disse que desculpas não eram necessárias, porque eu não conhecia as regras do país. E por falar em regras, perguntei a ela sobre a noite passada, sobre toda aquela recepção no aeroporto, o jantar super pomposo para seis pessoas e pago pela embaixada. Seria o que eu estava pensando? Sim, Alceu, ela respondeu, sempre falando em inglês comigo, a Embaixada tem em seu orçamento uma quota para gastos com visitantes e, como isso  não é muito frequente, quando acontece, como no caso de sua visita, eles aproveitam para gastar tudo que está acumulado. Louvada seja essa extravagância com recursos dos cofres públicos, fartados com o dinheiro do contribuinte. Na embaixada tudo transcorreu bem. Saí de lá bem escolado sobre a Romênia. Natasha me disse que antes de nosso encontro com a Ministra da Economia, marcado para às 14:00, ela deveria me levar para almoçar, por conta da Embaixada. Alceu, você tem alguma preferência? Natasha, o que você escolher está bom para mim. Então vou te levar a um restaurante que acho que você vai gostar. O restaurante tinha mais de 5 estrelas, exclusivo para uma minoria abastarda no topo do poder. Durante o almoço Natasha aproveitou para repassar várias instruções sobre o encontro com a Ministra. Eu lhe agradeci e acrescentei: Natasha, você é muito prestativa. Tudo que você me explica é muito útil e me facilita as coisas. Você é uma ótima profissional. Exerce sua função com seriedade e prazer ao mesmo tempo. Te agradeço muito por isso. Alceu, não estou acostumada a elogios deste tipo. Só estou cumprindo meu dever. Você é assim com todo mundo? E por que não deveria ser? Opa! Me desculpe. Fiz uma pergunta inconveniente. Desculpas não são necessárias. Você não conhece a Romênia. Mas agora estou conhecendo. Graças a você. E estou também conhecendo a Natasha. O que você está querendo me dizer? Sabe de uma coisa, Natasha, até agora você não me fez nenhuma pergunta pessoal. E deveria? Por quê? Não te perguntei qual é sua preferência? Natasha estava visivelmente encabulada, sem saber onde pousar o olhar. Agora era eu quem precisava facilitar as coisas para ela. Então vamos lá, Natasha. Já que você nada me pergunta eu respondo como se você tivesse me indagado. Tenho 29 anos. Sei que mulher não gosta de falar a idade que tem, mas arrisco dizer que você tem menos que 25 anos. Ela continuou inibida. Demorou para responder, e finalmente confirmou. Você está certo. Agora é sua vez. Minha vez? Sim, sua vez de me fazer uma pergunta ou me falar qualquer outra coisa sobre você mesma. Definidamente,  ela não estava à vontade. Pensou e, enfim, decidiu me fazer uma pergunta bem rebuscada. Está bem. Você é casado? Sim. E você? Ainda não. Ainda não encontrou seu príncipe encantado? Alceu, você costuma fazer este tipo de pergunta a todas as mulheres solteiras? Não! Faço este tipo de pergunta somente a mulheres bonitas, chamadas Natasha, que nunca sorriem, mas que escondem esplendor por trás desses olhares enigmáticos. Natasha sentiu-se perdida. Olhou para os lados, para cima, me periferiou - eta neologismo vagabundo - e looked away. E então, Natasha? O que você está esperando? Perdeu a esperança? Alceu, viver só de esperanças é o mesmo que esperar pela eternidade. Olha só! Além de bonita e simpática, a Natasha é filosofa! Ela pareceu não ter gostado desta observação. Talvez tivesse soado um pouco sarcástica, mas ela manteve a classe e me avisou que estava na hora de irmos. No Ministério da Economia  sentamos numa grande sala. Eu e Natasha de um lado da enorme mesa. A Ministra e seu assessor do outro. Depois das apresentações de praxe, a Ministra perguntou: Então, Sr. Natali, o que o senhor tem a nos oferecer? Sra. Ministra, eu trouxe o melhor fio de algodão para sua indústria têxtil. Ele é fabricado por uma multinacional japonesa no Brasil. O senhor trouxe amostras?Claro! Aqui estão 10 cones de 1 quilo cada. Acho que são suficientes para fazer testes. Se precisar de mais, despacho mais cones do Brasil bem rápido. Por ora esta quantidade basta. Se precisarmos de mais avisaremos através da Embaixada Brasileira. Por falar em área têxtil, tenho algo a lhe propor, mas antes preciso saber qual é sua contrapartida. Estamos muito interessados em ureia. Ótimo, nossa ureia é uma das melhores do mundo. Suponho que você queira amostras. Sim, preciso levar comigo. Vou providenciá-las amanhã cedo. Quer que eu envie para o hotel onde você esta hospedado? Natasha interveio: Sra. Ministra, não é preciso, eu mesma virei aqui apanhá-las. Está bem então. Sr. Natali, me dê licença por alguns minutos. Vou fazer um rápido despacho e já volto. A Ministra saiu com seu assessor e eu disse à Natasha: Você viu? Ela sorriu o tempo todo! Ela sorriu para você porque ela está apenas sendo diplomática. É um sorriso meio forçado. Você acha que me sai bem? Sim, acho que a ministra até gostou de você. E a Natasha, também gostou? Ela ficou mais séria do que normalmente era. Nada respondeu. A ministra voltou e foi direto ao assunto: Sr. Natali, temos uma indústria têxtil em franco desenvolvimento. Produzimos ótimas roupas femininas e gostaria que o senhor considerasse a possibilidade de importar nossas  roupas. Posso, sim. Então, te proponho uma visita à nossa melhor fábrica de moda feminina. Pode ser amanhã cedo, por volta das 10:00 horas. Está bom para o senhor? Está combinado! Meu assessor pode ir buscá-lo no hotel. Natasha: Não é necessário, Sra. Ministra. Basta a senhora me fornecer o endereço e levarei o Sr. Natali à fábrica com o carro da Embaixada. O dia foi produtivo. As perspectivas eram boas, mas importar roupas da Romênia iria ser difícil. Natasha me levou de volta ao hotel e me disse que estava incumbida de me levar para jantar. Natasha, hoje eu quero que você escolha um restaurante de sua preferência, ou melhor, um restaurante chique da cidade onde você nunca esteve. Está bem, Alceu, obrigada. Só que desta vez é por minha conta. Não, Alceu, não posso aceitar isso. Tenho que prestar contas à Embaixada. Deixe a Embaixada comigo. Brasileiros com brasileiros se entendem. Está bem, Alceu, como você quiser. Chegamos ao restaurante. Muito pomposo. Natasha, é este mesmo que você queria? Sim, ouço sempre falar deste restaurante, mas nunca estive aqui. Espero que você goste. Quem tem que gostar é você. O que você vai beber? Alceu, é você quem escolhe! Você esqueceu que hoje você é minha convidada? Pela primeira vez, Natasha me fez uma pergunta espontânea, sem que eu a forçasse. Qual é sua bebida favorita? Bem, depende. No meu país gosto muito de uma bebida tipicamente brasileira, chamada caipirinha, uma mistura de um tipo de aguardente, açúcar e limão. Mas, via de regra, costumo beber Whisky escocês. Mas aqui no leste europeu aprendi a gostar de vodca. A russa é demais. E qual é sua preferência? Eu bebo muito pouco. Às vezes tomo vinho. Então vamos pedir vinho! Não, Alceu, aceite o que te peço, por favor. Você gosta de vodca e aqui temos a melhor vodca russa. Pode pedir e eu te acompanho. Sério? Sim, sério. Sério sem um sorriso Natasha chegou a esboçá-lo, mas se conteve. Seu olhar penetrante dizia muito mais coisas que se podia imaginar. Vamos fazer um brinde à Natasha! E ao Alceu também! À Natasha, mulher linda, inteligente, prestativa, amiga, e o que mais? Dona de um olhar de raro fascínio, e eu tenho o privilégio de estar bem diante dele. Alceu, é muita gentileza sua. Não sou tudo isso que você diz. Além disso, como já te disse, não estou acostumada a receber elogios. Os homens deste país parecem que não enxergam muito bem - observação muito arriscada. Ela não era casada mas podia e deveria ter um namorado. Natasha quase sorriu, mas seu belo olhar frio ainda dominava seu semblante. No dia seguinte, fomos à fábrica. Entramos no show room e o que vi era desalentador. A moda romena era muito brega, super antiquada. Por educação e em nome de um boa relação comercial, pedi à Natasha para me ajudar a escolher algumas amostras. Você tem alguma preferência? A ideia é levar a moda romena ao Brasil. Então, escolha as melhores roupas romenas que você vestiria. Qualquer tamanho? Do seu tamanho! No carro de volta ao hotel, fiz uma confissão: Natasha, a moda brasileira é muito diferente da romena. Dificilmente esta roupa vai emplacar no Brasil. Não é uma questão de qualidade, mas de estilo. Vamos nos concentrar na ureia. Lamento, Alceu. Fiz você perder o seu tempo. Não, não foi tempo perdido. Pedi para você escolher as roupas porque elas são para você. Não, Alceu, não posso aceitar isso, de jeito nenhum! Pode sim, e você me deve uma coisa. Eu te devo? O quê? Ontem à noite você me pediu para aceitar a vodca e eu aceitei, agora peço que você aceite estas roupas. É muita gentileza sua, Alceu. Que bom que a Natasha aceitou. Agora só falta ela sorrir. Ela desconversou e emendou: Eu vou te levar ao aeroporto no final do dia. Temos a tarde livre. Posso te levar para conhecer alguns lugares históricos ou para você fazer compras se quiser. Tenho uma ideia. Você conhece alguma loja de luxo, de moda feminina, mesmo que seja clandestina, que vende roupas ocidentais, roupas francesas e contrabandeadas? Ouço falar de uma bem famosa, frequentada somente pelas madames ricas, esposas de nossos mandatários, mas dizem que os preços lá são exorbitantes. Você me leva lá? Está bem, vou conseguir o endereço com uma amiga. Descanse um pouco. Volto na hora que você fizer o check out. Está bem? Ok, você é quem manda, Natasha do sorriso guardado a sete chaves. Chegamos à loja e não queriam nos deixar entrar. Só conseguimos quando disse que estava lá à pedido do Embaixador brasileiro e a Natasha mostrou documentos oficiais. A loja era pura ostentação, extravagante, com roupas da alta moda francesa. Natasha, me ajude a escolher. Qual  destes vestidos você usaria? Eu? Todos! Escolha o melhor, o que você mais gostou. Você está pensando em levar um presente para sua esposa? Sim. Qual é o tamanho dela? O seu! Ela tem sua altura. Prove-o. Se você gostar eu vou levá-lo. Natasha escolheu um vestido preto, estiloso, a cor que combina com tudo e está sempre na moda, e que realçava ainda mais seus lindos olhos verdes claros e cintilantes. Ela se olhou no espelho e deixou a timidez de lado. Nossa, Alceu, é lindo demais. Sua esposa vai adorar. Comprei o vestido, mandei embrulhar para presente e, de fato, o preço era bem salgado. Saímos da loja. Ainda tínhamos tempo para gastar antes de ir ao aeroporto. Fiz uma proposta. Vamos parar num bar por aí e beber mais uma vodca? Uma despedida! Está bem. Vou fazer mais um brinde à Natasha. Mais um!, Alceu, você não precisa me fazer mais elogios. Você tem sido muito gentil comigo. Entreguei o vestido à Natasha. O que é isso, Alceu? O vestido é seu! Nem pensar! Não posso aceitar. Pode sim. Não, Alceu, eu não poderei usar este vestido tão sofisticado. Todos vão notar. As pessoas irão desconfiar de mim. Elas sabem que só uma pessoa rica usaria um vestido elegante e caro como este. Eu  acredito no que você diz. Mas tenho outra proposta: você me devolve o vestido mas, em troca, me abre um  largo sorriso, está bem? Ela emudeceu. Não conseguia falar e nem olhar para mim. De repente, ela me veio com esta: Alceu, antes de te levar ao aeroporto preciso ir em casa resolver um pequeno problema que esqueci, mas é bem rápido. Me espere aqui mesmo. Não vou demorar mais do que meia hora. Está bem? Ok, Natasha, te espero bebendo esta vodca que é demais. Natasha saiu com o vestido embrulhado debaixo do braço. Pensei comigo, o que ela pretende fazer? vai esconder o vestido em casa, ou vendê-lo? Eta pensamento grosseiro e deselegante que foi detonado com  uma incrível surpresa. Natasha aparece trajando o vestido francês, e uma blusa rustica por cima, para esconder um pouco da sofisticação do público. Seus cabelos volumosos, sempre presos, desfraldaram-se, deixando à mostra suas lindas melenas encaracoladas. Ela está radiante, é um fetiche de mulher. Sem demonstrar a menor preocupação de ser por mim notada, ainda sem sorrir  e  sempre carregando suas pastas de trabalho, ela apenas diz:  Vamos para o aeroporto? Ok, vamos. À propósito, o vestido fica muito mais belo em você, mas ainda perde para seu olhar. No trajeto até o aeroporto, ela manteve-se calada. Um pouco inquieta. Tentei puxar conversa, mas ela se limitava a dizer sim e não para tudo. Ao chegar fiz logo check in e despachei a bagagem. Faltava menos de meia hora para o embarque. Fomos para a área de imigração onde nos despediríamos. Eu estava pronto para dizer um simples adeus e lhe agradecer por tudo quando Natasha me surpreendeu com perguntas: Alceu, você tem planos de voltar à Romênia? Depende, Natasha. As perspectivas de negócios aqui são promissoras. Se elas prosperarem certamente terei que voltar aqui. E então, para meu assombro, Natasha me fez uma pergunta desconcertante: Alceu, este seria o único motivo que o traria de volta à Romênia? Foi minha vez de calar. O que mais me levaria de volta àquele país senão o trabalho? Ela me pegou desprevenido e eu não sabia, sinceramente, o que responder. Hesitei e ela percebeu. Então, como se soubesse que eu nunca mais voltaria à Romênia, ela me fez outra pergunta ainda mais desnorteante, mas não tão difícil de ser respondida: Você vai me escrever? Neste momento me fiz de desentendido e saí com uma resposta bem estúpida: Te escrever? Como? Nem tenho seu endereço! Tem, sim! É óbvio que tenho. É o endereço da Embaixada. Eu estava pronto para lhe dizer que iria lhe enviar uma carta na embaixada quando, finalmente, ela abriu um sorriso de felicidade, exteriorizando uma gama numerosa de sentimentos. Quer saber de uma coisa, pensei comigo, e lhe disse: Oras, um sorriso tão lindo assim merece um abraço! Abracei-a e ela também me abraçou bem forte. Lentamente afastei-me um pouco, e beijei-lhe a testa e, o inimaginável aconteceu: ela beijou-me nos lábios. Perdi completamente o rebolado. Não sabia o que falar. Apenas disse adeus, e ela nada respondeu. Encaminhei-me para o corredor que leva ao setor de imigração. Parei, olhei para trás, e lá estava ela, sem sorrir, e com o mesmo olhar deslumbrante. Virei as costas e fui embora. Aquele sorriso, aquele abraço, aquele beijo, aquele olhar me acompanharam o tempo todo, até na hora de apertar o cinto para decolar no mesmo Tupolev russo que agora me levaria à capital do império soviético. Seguindo uma velha mania, revistei todos os meus bolsos novamente para ter a certeza que estava tudo no lugar, que nada faltava, mas no bolso lateral do paletó do lado esquerdo toquei num objeto estranho. Um papel dobrado em quatro, do tamanho de uma caixa de fósforo. Abri-o e perdi o fôlego. Era um bilhete da Natasha. Quando foi que ela colocou este bilhete no meu bolso? Na hora em que nos abraçamos? Comecei a ler e fiquei emocionado. O bilhete dizia: O endereço da Natasha é...Certamente era o endereço de sua casa, mas o mais comovente estava logo abaixo. Ela escreveu as seguintes palavras em três idiomas, romeno, inglês e até português:

Alceu, 
Esperar é difícil, mas suportável, Desde que a esperança não ganhe ares de eternidade. Insuportável mesmo é não ter, Todos os dias, Alguém para quem se possa sorrir e dar amor. 
Sua filósofa, Natasha


Já se passaram quase quatro décadas e muita coisa mudou no mundo. Estive muitas vezes na Europa ocidental e oriental, antes e depois do fim do comunismo, mas nunca mais voltei à Romênia. Os negócios com aquele país não deram certo. Não tenho dúvidas que a Natasha ficou muito indignada por eu jamais ter, pelo menos, enviado uma carta a ela. Não o fiz pelos mesmos motivos que me convenceram a não voltar à Romênia a trabalho, mesmo estando na Europa e bem perto dela. Eu só tinha 29 anos e ainda não estava maduro e preparado o suficiente para tomar decisões levado pela paixão. Tinha certeza absoluta que se eu resolvesse voltar à Romênia só para revê-la não me limitaria a lhe fazer apenas uma visita de cortesia. Eu a tiraria de Bucareste e a levaria embora comigo. Mas optei por ter aquela jovem mulher somente no meu coração e no meu pensamento. Escolhi uma música que me faz lembrar de tudo o que senti junto a ela por apenas dois dias e, desde então, separado por 40 anos. Muita coisa mudou no mundo, mas há certas coisas na vida das pessoas que nunca mudam. Então, o que foram aquele vestido francês e aquele beijo nos lábios? Um presente de agradecimento ou de afeto? Mas e aquela pergunta sobre o que mais me traria de volta à Romênia? O seu amor?