domingo, 27 de novembro de 2022

ANJO



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98



Quando seu coração pede para que eu entre, O tempo esvanece, Uma novo universo floresce,  É o seu aconchego o que mais se sente, Quando estou dentro de você, A noite dos tempos se desprende, A luz de todas estações se acende, São suas cores primaveris o que mais se vê, Quando seu ser me oferece o ensejo, Meu mundo se abriga em sua alma, Meu espírito encontra paz e se acalma, São seus desígnios que realizam meu desejo, Quando viajo pelo seu corpo, Cruzo mares que se perdem no horizonte, Fico à deriva nas águas que jorram de sua fonte, É sua calmaria que impede-me de regressar ao meu porto, Quando sua substância se une a mim com fervor, O tempo pára à espera de um desenlace, O cosmos vibra e dá um passe, E o seu anjo interior produz amor.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

O QUE NOS TROUXE AO MUNDO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Tantas odisseias, Tantas guerras homéricas, Eternizadas por mentes epopeicas para esta parte única do mundo que chamamos de civilizada, E as mãos desprovidas de armas clamam por palavras que aproximem de nossos corações a natureza pacífica, À medida que chispam metais riscando os campos de batalhas, Próxima à água fria murmura a brisa, Farfalhando pelos galhos de maceira, Enquanto folhas trêmulas escorrem num sono profundo, E estas letras épicas e líricas, Juntas com tantas outras com o mesmo ideal de beleza e conhecimento, Abrigam-se num único recinto público, Escritos como vinhos, Quanto mais velhos mais sabem, Porém o barbarismo, Não satisfeito com tantos estupros, Assassinatos, E pilhagens, Tudo extingue com fogo, E ninguém tem o direito de destruir um único pensamento humano, Se um deus pagão pede vingança, Não se luta por um reino ou por riquezas, Mas como pessoas comuns, De liberdade perdida, De corpos dilacerados, E de filhas difamadas, E se um deus de batismo também quer sua desforra, Faz-se necessário obedecê-lo, Nem que se tenha cem pais e cem mães, Nem que se tenha um rei como pai, E não carece saber que amor ou ódio este deus tem por invasores, Suficiente é saber que todos eles serão expulsos, Exceto aqueles que aqui morrerão, E em toda a glória das que vencem por amor, Muito melhor é ser mendigas solteiras do que rainhas casadas, E sendo pobres aqueles que querem prestar honrarias às vitoriosas que lhes inspiram, Não tendo nos céus tecidos bordados, Decorados com luzes douradas e prateadas, Tecidos azuis, indistintos e escuros da noite e da luz da meia-luz, Faça-se, então, deitar sob os pés destas valiosas mulheres vossos sonhos, E elas cuidarão de neles andar suavemente, Pois sabem que caminham sobre o que lhes restam.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

IVONE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Velha combatente com arco de teixo, Minha princesa Sarracena de Espanha, Famosa em guerras, Ainda estou curioso para saber de você quantas moradas nossos irmãos egípcios nos reservam nos elísios, Isto é um tesouro que sei onde está enterrado, E espero trazê-lo à superfície e à vista de todos antes de encontrar a totalidade de minha alma, E se você encontrou a sua, Já deve saber que não sou mais o filho perdulário que retornou ao seu santuário, Nem seu melhor presente de natal, Mas tenho ainda o dorso de minha mão marcado com seu beijo de humildade, E abaixo de meus olhos seu corpo curvado em nobre reverência, E aquele seu gesto augusto subtraiu-me mais do que uma vida humana, E ainda que eu tenha outras mil e tantas, Pois, Como disse Olavo Bilac, Há nela cem mil vidas, Você censurou meu coração para sempre, Mas você deve saber também, Que seu paraninfo rico e poderoso banalizou sua modéstia, Na homenagem de corpo ausente que lhe prestaram, Roubando a palavra e a atenção para si, Recheando o réquiem com todos os predicados que, Segundo ele, Enchiam teus olhos, E para ti, Minha companheira de batalhas de mil anos, Sobraram palavras que  não podem te orgulhar: Tu és dona do descanso eterno, Amém, E entre os que ainda mantém-se no exercício do viver, Aquele que ouve conselhos de duendes embarcou Jesus num disco voador, O lapidador de pedras brutas trocou o alimento do espírito pelo adorno do corpo, Seu melhor amigo, O salvador da pátria, Segue doutrinando mais do que amando, Teu adulador varonil saiu combalido numa batalha pelo seu lugar e desapareceu, E o homem de ouro que primava por um calendário letivo, Enganou-nos com sua hipocrisia e ignorância, Portanto posso ser o pior de todos os crápulas, Mas não o único, Pois como dizia seu maior ídolo, Criminosos somos todos, Quando descobertos, Assim, De mim você nada deve esperar, Porquanto ainda continuo procurando saber o que fazer quando nosso sol está frio demais, Mas quem sabe o tempo ainda possa aguardar! Quem sabe, Antes de te reencontrar, Eu tire de debaixo da terra o tesouro que sempre desejei te mostrar! Enquanto a sucessão dos anos ociosos não se impacienta, Faço-me acompanhar de fantasias que remontam às nossas mais recentes origens, Aquela jovem donzela que, Em desespero, Atirou-se ao rio. Por causa de um amante infiel, Morreu, E transformou-se em sereia, E desde então, Ouve-se seu canto junto a uma rocha no rio, E também aquela outra jovem donzela, Que teve sétuplos, Seus filhos roubados pela sua sogra, E entregues à sua serva com ordens para matá-los, Seis deles transformaram-se em cisnes, Ao terem retiradas suas gargantilhas de nascença, Mas o sétimo sobreviveu, E salvou a própria mãe de ser queimada viva na fogueira, E você? Com quem anda ultimamente? Se você tiver um tempo de folga, Passe um dia desses nos meus sonhos, E leia nos meus pensamentos algumas preciosidades que sempre escondi de você, E, Se lhe for permitido, Antecipe-me algumas surpresas que me aguardam no seu lugar sagrado! Isso ficará somente entre nós dois, Nós dois e Deus que é não é só pai, Mas pai e mãe, Mãe de todas as mães, Pai de todos os pais, Deus como nós dois e todos somos, E como você sabe, Não há segredos entre irmãos de guerra, E este é outro tesouro que não se mantém em lugar recôndito.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

ENFIM, SEU GUILHERME, SOMOS CAMPEÕES DO MUNDO



 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Em 1957, meu pai deu início aos preparativos para deixar o ‘Pari’ dos depósitos de doces e fazer da região norte, do outro lado do Tietê, que abandonara sua agrestidade, sua última morada na superfície da terra. Foi um pedido de minha mãe, jovem e inexperiente, que queria sair imediatamente da casa onde morávamos para viver próximo de sua mãe. O motivo de tal súbita e urgente mudança foi uma morte na família. Primeiro, meu pai comprou um terreno para construir uma nova casa nos fins de semana e que levaria um ano para ficar pronta. Ao mesmo tempo, ele alugou uma casa na Vila Guilherme, onde nós permaneceríamos todo o ano de 1958. Dizem que várias ruas deste bairro receberam nomes de parentes do Seu Guilherme da Silva, o dono da antiga gleba. Sua esposa, Dona Maria Cândida, ficou com a principal via. Sua filha, Diva da Silva, ficou com uma secundária e perpendicular à da mãe, e foi nela que meu pai fixou nossa residência temporária, quase na esquina com a Rua Coronel Jordão. Seu Guilherme havia loteado todas suas terras, compradas da Dona Joaquina Ramalho Pinto de Castro, em sítios e chácaras, e estas, mais tarde, não resistiram ao progresso e foram divididas em terrenos para a construção de habitações. Meu pai e dois de seus irmãos compraram um grande lote e nele construíram uma daquelas antigas vilas, com rua sem saída e com várias casas conjugadas e simétricas, como as das periferias de Londres, mas bem mais modestas. Hoje se dá a esses tipos de construções o nome de condomínios. Meu pai e meus tios eram excelentes construtores. Aprenderam o ofício com o meu avô italiano. Mas eram péssimos negociantes e nada entendiam de economia. Venderam todas as casas com financiamento direto de seus bolsos esvaziados e devedores, sem intermediação de bancos, por um prazo quase a perder de vista e com prestações fixas e sem correção monetária. Anos depois, a inflação galopante os levou a passar as escrituras definitivas aos moradores antes da metade do prazo. O valor das prestações já não pagava nem mesmo o  custo de confecção dos carnês. Eles saíram no prejuízo. Receberam de volta pouco mais que o custo do empreendimento. Assim, meu pai e meus dois tios deram uma grande contribuição à Vila do Seu Guilherme, beneficiando cerca de trinta famílias com presentes de pai para filho: o sonho da casa própria por um preço irrisório e simbólico. Meus tios tomaram rumos diferentes do meu pai, que não baixava a cabeça e nem olhava para trás, contanto que o que ele fizera não tivesse prejudicado, mas, ao contrário, ajudado pessoas. Eu tinha 6 anos, um irmão de 2 e outro de 10. Eu estava começando a tatear o mundo exterior. Nos meses anteriores, vividos na Rua Pacheco e Silva, no Pari, eu não me lembro de ter brincado na rua uma única vez. Estranhamente, todas as lembranças da minha curta passagem por aquele bairro morreram junto com minha tia-mãe, Alice, que me chamava de filhão e não saiu daquela casa viva como profetizara. As únicas recordações que retive foram aquela grade de proteção à janela rente ao chão, que levava luz ao porão, e era vigiada por um vespeiro aguerrido, e as melancias que começaram a brotar na superfície do nosso quintal, às vésperas de nossa partida. Antes do Pari, na Rua Cantagalo, no Tatuapé, eu fiz apenas duas incursões fora de casa. Uma vez, acompanhado pelo meu irmão, que me levou até um terreno baldio onde alguém havia escondido um tesouro, um monte de bolinhas de gude coloridas. E trouxe-me de volta com um corte e vários pontos no pé esquerdo, que pisou em falso num caco de vidro. E outra vez com minha prima Janete, que descobriu, num vão estreito entre dois muros, vários cones de papelão para fios têxteis, e logo fez deles adereços de carnaval. A Rua Diva da Silva não era longa, mas, para uma criança como eu, ela parecia não ter fim. Às vezes eu acompanhava com os olhos meu irmão caminhando por ela até perdê-lo de vista. Um dia, resolvi segui-lo. Meus passos eram curtos, mas rápidos. Tinha medo de não chegar ao final da rua antes do dia acabar. Em poucos minutos, no entanto, eu já estava junto à esquina com a Rua Desembargador Urbano Marcondes e, do lado direito, descortinava-se diante de meus olhos o palco de um teatro mágico: crianças jogando futebol num campinho de terra. Então é assim que se pratica aquele esporte ao qual meu pai assiste todos os domingos na televisão! Então, é por isso que meus tios vêm frequentemente à minha casa, para assistir futebol! Enquanto eu encantava-me com a bola e os pés descalços levantando poeira, sem perceber eu adentrava o campo de jogo e meu irmão logo se deu conta da minha presença:
O que é que você está fazendo aqui?
Eu quero jogar também.
Que jogar o quê, moleque, volte já para casa antes que eu lhe de uns tabefes!
Meu pai foi o primeiro da família a comprar uma televisão. Por isso, muitos parentes vinham à minha casa nos finais de semana. Meu pai era especial. Logo que ele percebeu meu gosto pelo futebol, comprou-me uma pequena bola de ‘capotão’, que eu batia no quintal até ralar. Um garoto de minha idade, que morava quase em frente à minha casa, via-me com aquela bola todos os dias e chamou-me até sua casa para mostrar-me algo diferente: um jogo de botões.
Você não tem um?
Não, mas posso pedir ao meu pai para me comprar.
Tem com cores e distintivos de futebol.
É mesmo? Então, vou pedir ao meu pai para comprar um do Palmeiras.
Do Palmeiras, não! Compre do São Paulo que é o melhor de todos.
Meu pai era especial mesmo. A família Corintiana de minha mãe queria converter-me e, agora, meu pai resignadamente, e a contragosto, comprou-me um jogo de botão do São Paulo. Mas, no dia seguinte, ele me presenteou com uma camisa do Palmeiras e num domingo de 1959 levou-me ao Palestra Itália pela primeira vez, para assistir Palmeiras 6 X 1 Comercial (de Ribeirão Preto). Embora eu estivesse completamente fascinado pelo futebol que, um ano mais tarde, eu iria ver ao vivo, da arquibancada, eu ainda mantinha alguns estranhos vícios que começaram lá na Vila Guilherme. Eu costumava pegar um macacãozinho de meu irmão caçula, enche-lo de retalhos, improvisando-lhe uma cabeça de pano e balança-lo nos meus braços como um bebê, como uma boneca. Eu chamava-o de menino. Na idade adulta, quando fazia psicoterapia, perguntei se este costume não era indicativo de homossexualidade. Para minha surpresa, a psicóloga respondeu-me que era um fato insignificante da infância e de nenhuma relevância para minha análise. Mas, minha vizinha do lado esquerdo, uma mulher que adorava minha família, preocupava-se. Um dia ela surpreendeu-me com um  boneco de pano de verdade: um palhaço, como o torresmo. Isso aconteceu quando estávamos de mudança para o novo bairro. Definitivamente, meu pai esteve muito acima da média. Ele vinha almoçar em casa todos os dias. Certa vez, chegou todo feliz e orgulhoso com seu primeiro carro: um Bel-Air 54. Durante o almoço, ele prometeu que antes de voltar ao trabalho ia nos levar para dar uma volta. Meu irmão mais velho estava na escola. Eu sentei no meio, entre meu pai e meu irmãozinho, junto à porta. O carro mal rodou alguns metros e a porta do passageiro abriu-se e meu irmão de dois anos voou de cabeça para fora. O lamaçal que cobria a sarjeta amorteceu sua queda e ele não sofreu nenhum ferimento. Só tomou um banho e meu pai, empolgado com o carro, agora se penitenciava com tamanho descuido.
Certa vez, meu pai estava agitado, com o som do rádio às alturas. Ele havia gritado gol' três vezes.
É o Palmeiras?
Não, é o Brasil!
Quando ele gritou gol pela quarta vez, pegou-me pela mão e levou-me até a Praça Oscar Silva, na esquina da Maria Cândida com a Coronel Jordão. Ali se aglomerava um mundaréu de gente frenética debaixo das árvores frondosas. No alto de um dos galhos, pendurava-se um alto-falante, ligado a um rádio que irradiava para toda a Vila o Brasil jogando contra a Suécia. Antes do jogo acabar, gritaram gol de Pelé. O radialista, com a voz rouca de emoção, distorcida pela transmissão, e meio fanha com os ecos do alto-falante, mal conseguia falar. O público, eufórico, ainda mantinha-se atento às palavras que saiam daquela pequena caixa mágica. De repente, o locutor gritou: Termina a partida, somos campeões do mundo. Aquele povo, como se tivesse ensaiado, bradou uníssono: somos campeões do mundo! Todos se abraçavam e lançavam seus chapéus para o alto. Aquele foi um momento em que eu vi o tempo parar. Os chapéus pareciam estar suspensos no céu, quando a energia potencial estava prestes a dar lugar à cinética e tudo pairava no ar alguns segundos. E os chapéus pareciam descer em câmera lenta, contrariando as leis da física, que determinam subida e queda na mesma velocidade. Eram as leis humanas que ali imperavam. Nunca tinha visto tanta gente feliz em minha vida. Até mesmo os balões e fogos de artifícios que se alçavam aos céus, pareciam estar sorrindo. Nos dias que se seguiram, ouvia-se no rádio o dia inteiro: A taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa. Eh eta esquadrão de ouro, é bom no samba, é bom no couro. A próxima surpresa que meu pai me fez foi presentear-me com o uniforme da seleção, camisa amarela, calção e meias brancas, que eu levei, com muito orgulho, para o novo bairro onde fui morar. E de lá, da Vila Guilherme, eu trouxe comigo algo que eu nunca vira nos rostos dos adultos: felicidade.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

THE BRITISH INVASION - THE ROLLING STONES

 


THE BRITISH INVASION - THIS MORTAL COIL

 


THE BRITISH INVASION - THE BEATLES


 

THE BRITISH INVASION - WET LEG

 




THE BRITISH INVASION - CORNERSHOP

 


THE BRITISH INVASION - CHUMBAWAMBA

 








THE BRITISH INVASION: FLORENCE AND THE MACHINE


 

THE BRITISH INVASION - REPUBLICA

 






















MITOLOGIA CRISTÃ: SIMÃO DE CIRENE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98 




Uma única pessoa, anônima, mudou a história do mundo ocidental para sempre ao INVENTAR o primeiro evangelho da maior religião da humanidade. A identidade desta pessoa e a cidade onde ela morou permanecerão em segredo, por enquanto, porque pretendo escrever um livro sobre ela. Esta pessoa era da aristocracia e engajou-se no movimento religioso inaugurado por Paulo de Tarso. Ela não pretendia escrever uma biografia de Jesus, pois ela sabia que estava escrevendo apenas sobre um mito. Seu propósito era duplo: criar uma cartilha para ser lida nos encontros com a comunidade cristã que ela comandava e, de certa forma, dar substância e verossimilhança ao proselitismo místico de Paulo de Tarso e, também, diminuir sua importância como inventor da nova crença. Seu evangelho é conhecido como MARCOS, nome de uma pessoa inventado pela igreja cristã tardia e que nunca existiu. Com esse evangelho, esta pessoa, que vou chamar aqui de MARCOS somente para efeitos práticos de identificação, criou um novo gênero literário que incluía a execução inverossímil de João Batista, a paixão, também inverossímil, de Jesus, parábolas, provérbios, histórias de milagres, controvérsias com supostos oponentes de Jesus e vários símiles em forma de quiasmo. Esta pessoa foi a mais irônica de todos os evangelistas. Ela é a inventora da maior história já contada na terra. Seu evangelho, no entanto, não ficou restrito à comunidade cristã de sua cidade, mas espalhou-se por todo o mundo dominado pelos romanos e caiu no gosto de muitas pessoas que, como ela, entraram no movimento cristão em várias colonias do império. Muitas pessoas começaram a copiar o evangelho de MARCOS, a expandi-lo, reeditá-lo e a inventar novos evangelhos, sempre inspirados no livro de MARCOS. Muitas pessoas no império romano, adulteraram os textos de MARCOS, inventaram novas histórias, suas próprias parábolas e seus próprios milagres. Não se sabe, ao certo, quantos evangelhos foram escritos. Com certeza eles passam de 50. Muitos foram perdidos para sempre e são conhecidos apenas através de referências a eles feitas por apologistas cristãos enquanto tais evangelhos existiam. Muitos só existem em forma de fragmentos. Outros, completos, foram banidos pela igreja como sendo apócrifos (hereges). Hoje, são famosos apenas aqueles quatro que a igreja sancionou como sendo autênticos e válidos, os canônicos: MARCOS, MATEUS, LUCAS e JOÃO. Três desses quatro evangelhos são chamados de sinóticos, por causa da enorme semelhança entre eles: MARCOS, MATEUS e LUCAS. Para entender estas semelhanças, basta entender como MATEUS E LUCAS inventaram seus próprios evangelhos.
MATEUS gostou muito do evangelho de MARCOS e COPIOU 90% dele! O evangelho de MATEUS é 53% maior que o de MARCOS e é composto das seguintes partes: 60% copiado de MARCOS, 15% copiado de um evangelho perdido e apelidado de Q, da palavra QUELLE, que em alemão significa FONTE, e 25% de material próprio de MATEUS (inventado por ele ou copiado de alguma outra fonte perdida). Os números aqui foram arredondados de 1 a 3 pontos percentuais, para cima e para baixo, apenas para facilitar a leitura.
LUCAS também gostou do evangelho de MARCOS e copiou parte dele, menos do que MATEUS, apenas 25%. O evangelho de LUCAS tem, praticamente, o mesmo tamanho do evangelho de MATEUS, com a diferença que LUCAS tem mais material próprio do que copiado dos outros: 25% de MARCOS, os mesmos 15% copiados do evangelho perdido chamado Q e 60% de material próprio. Aqui, também, os percentuais foram arredondados.
O propósito deste texto é mostrar como diferentes evangelistas reeditavam material copiado de um fonte comum para mostrar um diferente ponto de vista sobre um mesmo tema. Como exemplo, eu escolhi uma passagem que ambos, MATEUS e LUCAS, copiaram do evangelho Q. As diferenças parecem não alterar o significado, mas, com um pouco de atenção e um pouco de leitura sobre o assunto, o leitor perceberá divergentes pontos de vista. Prestem atenção nestes versos. Há muitas sutilezas neles:
MATEUS 5:38-42
...se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto! Se alguém te forçar a acompanhá-lo por um quilômetro, caminha dois com ele...
LUCAS 6:29-30
...se alguém lhe dá um tapa numa face, ofereça também a outra; se alguém lhe toma o manto, deixe que leve também a túnica...
Notaram as diferenças? Elas são claras! Lucas fala apenas em oferecer a outra face se você receber um tapa numa delas, mas Mateus recomenda oferecer a face ESQUERDA se você receber um tapa na face DIREITA! Estes detalhes fazem alguma diferença na interpretação da passagem? Sim, fazem uma enorme diferença!
Lucas recomenda dar, também, a TÚNICA se alguém lhe tirar o MANTO. Mateus inverte a ordem. Ele recomenda dar, também, o MANTO se alguém lhe demandar a TÚNICA. Faz alguma diferença a ordem dos fatores, MANTO – TÚNICA e TÚNICA – MANTO? Sim, faz uma enorme diferença!
Lucas omite a frase de Mateus: ‘Se alguém te forçar a acompanhá-lo por um quilômetro, caminha dois com ele...’ e isso, também, faz diferença!
MATEUS é o mais beato de todos os evangelistas. É o que mais recorre a frases do Antigo Testamento. É aquele que quer passar aos seu leitores a ideia de que Jesus é o novo Moisés. Nos versos acima citados, MATEUS se insurge contra a aplicação de leis tradicionais, religiosas e administrativas no que refere-se a insultos, empréstimos e direitos romanos.
LUCAS é o menos beato de todos. É o que menos recorre a citações do Antigo Testamento e, onde ele encontra tais citações, ele as substitui por frases mais universais. Na mesma passagem acima, a recomendação de LUCAS é NÃO resistir ou revidar uma violência e um roubo, sem entrar no mérito das ações previstas em lei para coibir e punir tais atos ilícitos. Eis as diferenças entre os dois evangelistas:
1) BATER NA FACE
VERSÃO DE MATEUS
A maioria das pessoas é DESTRA e quando um DESTRO bate na face DIREITA de alguém com a mão direita, ele bate com as costas das mãos e não com a palma da mão. Na Palestina do primeiro seculo da era cristã, bater com as costas das mãos na face de alguém era considerado um INSULTO GRAVE e sujeito ao pagamento de uma multa, de acordo com os costumes da época. MATEUS é contra tais leis e é por isso que ele diz que ao invés de pedir o pagamento da multa quando você é esbofeteado na face direita, você deve esquecer o insulto e a multa e, ainda, oferecer a face esquerda (que será atingida com a palma da mão e doerá mais ainda).
VERSÃO DE LUCAS.
Lucas não está preocupado com as LEIS vigentes. Ele apenas pede para que não se resista a uma violência. Por isso ele diz apenas que, se alguém te agredir com um tapa numa das faces, você deve oferecer a outra como prova de que é contra a retaliação.
2) TÚNICA E MANTO
VERSÃO DE MATEUS
Túnica é a roupa de baixo que se usava para dormir. Manto é a capa que se usava por cima da roupa de baixo para sair de casa. No Antigo Testamento, mais precisamente no Deuteronômio, há uma lei que diz: ‘se você emprestar dinheiro a alguém você pode pedir como garantia a túnica do sujeito. Se ele não devolver o dinheiro, você pode, por lei, ficar com a túnica dele'. Agora, imagine esta situação: o sujeito não consegue pagar a dívida e perde a túnica. A gente deduz que, se o sujeito for pobre e tiver apenas uma única túnica, ele não poderá sair de casa (para trabalhar, por exemplo). MATEUS torna-se até irônico, sem querer, ao insurgir-se contra esta lei: ‘Se alguém te demandar a túnica, dê-lhe, também, o manto.' Aqui, eu imagino a seguinte ironia: ‘Já que não posso sair de casa sem a roupa de baixo, o que vou ficar fazendo em casa com um manto? Então, vou ficar pelado dentro de casa de uma vez, sem túnica e sem manto’!
VERSÃO DE LUCAS
Em quais circunstancias você poderia ter o manto roubado? Aqui vai um exemplo bem simples. Você peregrina de uma cidade a outra durante três dias, como, por exemplo, ir da Galileia a Jerusalém para a páscoa. À noite, você precisa parar para dormir ao relento. Você dorme com a túnica e se cobre com o manto. Mas um ladrão aparece na surdina, lhe rouba o manto e sai correndo. Ao invés de sair atrás do ladrão, Lucas recomenda que se dê ao ladrão a túnica também. Daí você vai ficar, literalmente, pelado no meio do mato! Outra ironia!
SER FORÇADO A ANDAR PELOS OUTROS
Todos vocês já estão cansados de ver aquela famosa cena de filmes policiais americanos quando um agente, perseguindo um ladrão a pé, pára um carro qualquer, mostra o distintivo de policial, e pede o carro do sujeito para ir atrás do criminoso. E nos EUA é assim mesmo: você tem que fazer o que a autoridade manda. No império romano era a mesmíssima coisa. Se você voltasse para casa montado num burro, você poderia ser parado por um soldado romano e ter seu burro emprestado para que ele não se atrasasse onde quer que ele precisasse ir. Você tinha que dar o seu animal sem reclamar. Outro exemplo: um soldado romano tem que levar um pacote pesado até a Fortaleza Antônia. Ele pára o primeiro que ele vê e lhe diz: ‘Ei, você ai, venha ajudar-me a levar este pacote pesado até a casa de Pilatos’. O mesmo ocorre com Simão de Cirene. Na via-crúcis Jesus cai pela terceira vez e não aguenta mais carregar a cruz. O soldado pega o primeiro que ele vê na frente e diz: 'Ei, você ai, ajuda este desgraçado a carregar a cruz até o calvário’.
A VERSÃO DE MATEUS
Já está explicada acima. Basta acrescentar que há um pouquinho de ironia em Mateus: ‘Pode deixar, eu ando não 1, mas até 2 km’. Quem tinha coragem de dizer não a um soldado romano?
VERSÃO DE LUCAS
Por que Lucas omite esta passagem? Por duas razões: ele não considerava uma violência as leis impostas pelos romanos no que diz respeito ao uso de bens e indivíduos a serviço público do império. A outra razão é que o público de LUCAS é gentio e já está acostumado com as regras romanas. Lucas não está interessado nas leis, nem judaicas, nem romanas.
Estas diferenças aqui apresentadas são bem pequenas. Leiam os três evangelhos sinóticos com MUITA atenção e vocês descobrirão grandes diferenças de arrepiar os cabelos e tirar o sono dos cristãos tementes a Deus!

sábado, 30 de julho de 2022

THE BRITISH INVASION - THE BEATLES

 


TE VEJO EM SETEMBRO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 





Vejo-te em Setembro quando o verão deixa o hemisfério norte e se põe a caminho do sul, minha adorada, e para você estou voando, pátria amada, fugindo das folhas caídas, pegando um resto de frio acalorado, vendo as flores preparando-se para desabrochar. Do meu lado há um professor de educação física, dos tempos do chicote para menos de 300 abdominais de uma só vez. Ele faz uma oração a Santo Egídio antes de o avião decolar. Parece uma corça que come desconfiada na relva sossegada onde o leão está longe, mas não descarta a remota chance de aparecer. Um sujeito alto perambula pelos corredores procurando seu assento. Tem uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Não é turista. Deve ser repórter, pois veste um colete de lona cheio de bolsos carregados. Encontra um lugar ao lado de um soldado cuja farda toda azulada lembra-me da velha guarda civil dos meus tempos de criança e respeito pelos cidadãos. A autoridade que deve proteger também pede proteção. Ele fala com Santa Dorotéia, própria da estação que está por vir. Sua prece é fervorosa e convence até Crista e Calista. Atrás de mim duas pessoas conversam sobre a fauna e a flora amazônica. Um é biólogo e ressalta o grande número de animais ainda desconhecidos pelo homem. O outro é farmacêutico e fala das muitas plantas medicinais raras que são contrabandeadas para o exterior. A aeronave desgruda do chão e os dois interrompem a conversa instantaneamente. Sobra apenas uma dupla de murmúrio parecido com canto gregoriano com redutor de ruído Dolby. Decifro as palavras balbuciadas e delas vêm São Moisés e Santo Herculano. Eu não sabia que existe santo com este nome. Quantas pessoas rezam para Moisés? Quantos sabem que Herculano foi um soldado romano? O sujeito do meu outro lado é gentil e se apresenta, mas logo sai dizendo que é um alfaiate. Por que alguém em pleno ar precisa dizer que é alfaiate? Será que estou tão mal vestido com minha calça cargo, camiseta de cinco dólares e chinelo e estou precisando de uma faxina indumentária? O alfaiate logo se volta para o passageiro sentado no último banco da fileira e arrisca: ‘Aposto que você é administrador de empresas?’ Há quem diga que quem é formado em administração não é formado em nada, mas será que é tão fácil assim identificar um administrador? O alfaiate não me perguntou sobre minha profissão, e eu sou administrador, ou seja, não sou nada, e o hipotético administrador junto à janela nada respondeu. Manteve-se imóvel, imerso em sua reza a São Zacarias. E Zacarias, tornou-se santo só porque era primo de Maria? Se ele é santo, então sua mulher, Isabel, deve ser também. Da boca do inerte só saiu o nome masculino, solene, respeitoso, como se estivesse cantando o hino nacional pela primeira vez, faltando apenas soltar o grito de independência ou morte. Os avisos de apertar o cinto de segurança foram apagados. Levanto-me para esticar as pernas. Estou gordo e não aguento ficar sentado num apertado cubículo. Vou ao banheiro e fico andando pelos corredores antes do serviço de bordo começar. Há muita gente descontraída e muita gente apreensiva, e com fome também. Uma mulher diz a outra: ‘Sou alfabetizadora’. Ela quis dizer ‘professora’. A outra responde: ‘Sou cuidadora de animais’. Ela quis dizer ‘veterinária’. A primeira diz: ‘Sou devota de Santa Regina’. A segunda responde: ‘E eu de Santa Anastácia’. Outra mulher no assento de trás cutuca as duas e diz: ‘Prazer, sou velocista e devota de São Adriano’. Não sei o que ela quis dizer com velocista. Motociclista? Piloto da fórmula Indy? Corredora dos 100 metros sem barreira? Perguntei-me quantos tipos de profissionais pode-se encontrar num voo com centenas de humanos. Um caixeiro viajante? Um serventuário? Um oficial  da justiça? Um cabeleireiro? Um impressor? Continuo minha andança e passo por um homem solitário lendo um jornal com tanta curiosidade e tanto pasmo que parece estar lendo o primeiro jornal do país. De repente, turbulência! O avião começa chacoalhar, a dançar frevo. A comissária pede a todos para afivelarem seus cintos e permanecerem sentados. Tento voltar para meu lugar aos trancos e barrancos, jogado pra lá e pra cá. Uma mulher segura um terço com uma cruz e abre o bico: ‘Minha Santa Pulquéria, ajuda-nos, por favor!’ Eu não estranho nomes como este porque conheci um sujeito chamado Vazinton. A intenção do pai dele era dar-lhe o nome de Washington. O que eu estranho é um piloto anunciar para todos que estamos perdidos no meio de uma tempestade, mas que o operador de rastreamento em terra já foi avisado! ‘São Jacinto’, grita outra mulher, 'faça esta tempestade parar’. Um homem ao lado dela fala manso: ‘Não se perturbe, mulher, estamos sob a proteção de São Roberto Belarmino e nada vai nos acontecer’. E a mulher ao lado dela arremata: ‘E de Santa Dulce também’. Estranho também é um jovem tranquilo em meio a tanto desespero tirar uma flauta da bolsa e começar a tocar aquela música SEE YOU IN SEPTEMBER. Não resisti e perguntei-lhe: ‘Por acaso você é músico, devoto de São Francisco ou coisa parecida?’. E ele responde: ‘Sou musicoterapeuta, quer ser meu cliente?’. Com todo respeito à serenidade do rapaz, a única música que acalma meu espírito é a britânica. A comissária vem atrás de mim e me pede para voltar urgentemente ao meu assento, mas não deu tempo. A borrasca parou, a aeronave se aprumou e o piloto avisou: ‘Graças a São Geraldo nos livramos do pior’. Um passageiro grita: ‘Não foi não, foi graças a São João Crisósteomo’. Outro retruca: ‘Nada disso, foi graças a Nossa Senhora das Dores’. E uma mulher ainda arruma fôlego para discordar: ‘Gente, foi São Cornélio, ele nunca falha’. Quando voltei ao meu assento percebi que o conjeturado administrador havia começado a falar com o alfaiate e eu entrei na conversa. O sujeito com cara de administrador começou a fazer conjecturas. ‘Creio que este problema de temporal a dez quilômetros de altura tem a ver com a falta de preservação da camada de ozônio. É preciso que haja uma compreensão mundial sobre o assunto. Todos os países estão preocupados apenas com seus símbolos  nacionais, mas não pensam de forma global, de forma planetária’. Interpelei-o: Que mal lhe pergunte, qual é sua profissão?’. E ele respondeu: Por acaso tenho cara de administrador?’. Respondi que não. E ele completou: 'Sou teatrista e devoto de São Zacarias, e o senhor?’. Para agradar gregos e troianos, judeus e samaritanos, eu disse: ‘Embora não pareça, sou administrador e devoto de Deus, portanto sou devoto de todos os santos’. Mas o teatrista, e acho que ele quis dizer ator de teatro, cobrou: ‘Quais são seus favoritos?’. Fiquei numa saia justa, mas nestas alturas, com tantos nomes exóticos pegando carona no avião, arrisquei: São Panfilo, São Januário, São Maurício e muitos outros’. Mas ele continuou cobrando: ‘Nenhuma santa?’. ‘Claro que sim, Santa Fausta, Santa Ifigênia, Nossa Senhora das Mercês e várias outras’. Antes de o teatrista fazer mais uma pergunta, pedi licença para ir ao banheiro, mas na verdade saí só para deixa-lo por conta do alfaiate e esticar as pernas. Antes da tempestade havia uma mistura de descontração e apreensão, agora havia muito alívio e falação. Lembrei-me de um amigo que é agente de viagens e que me tranquilizava quando eu lhe perguntava se a companhia aérea que ele escolheu era segura. ‘Até agora, que eu saiba, nenhum avião desta linha aérea caiu’. Pior que isso é você ouvir: ‘Não se preocupe, uma avião nunca cai no mesmo lugar duas vezes’. Nas minhas perambulações pelas alas, resolvi juntar-me às arengas. ‘Prazer, sou administrador e devoto de São Firmino, e o senhor?’ ‘Mucho gusto, sou gaúcho, funcionário municipal aposentado prematuramente por deficiência física, tornei-me um fazendeiro, só planto árvores e sou devoto de São Cosme e Damião’. O simpático moço sentado à frente ouve nossa conversa e se antecipa: ‘Sou devoto de São Vicente de Paula e contador’. ‘Contador de histórias?’, perguntei. ‘Não, apesar de jovem, já sou formado em ciências contábeis’. Outro mais atrás completa: ‘E eu sou devoto de São Venceslau e soldador’. ‘Vai seguir a carreira de soldado?’, perguntei. ‘Não, trabalho com máquinas de solda’. Eu queria parar de dar foras, mas outro nas proximidades emendou: ‘Sou devoto dos Santos Miguel, Gabriel e Rafael e sou técnico industrial e de edificações’. Fui salvo pelo carrinho pedindo passagem para servir o jantar. Por sorte, nas imediações, havia um assento vago. Definitivamente, não queria comer entre o alfaiate e o teatrista. A comissária fez a pergunta clássica: ‘Frango ou carne de vaca?’. A mulher do meu lado pergunta se tem sorvete. Estamos na classe econômica e ela vai ter que se contentar com um pote de geleia na sobremesa. Depois de comer, preciso levantar andar e papagaiar. ‘Prazer, sou administrador e devoto de São Jerônimo, e o senhor?’. ‘Sou ateu e relação pública no departamento de trânsito’. Um sujeito logo à frente me diz que é surdo, mas não mudo, e faz leituras labiais e me explica que é encanador, devoto de São Lino e que me acha muito engraçado. Eu não deixo por menos: ‘Você colhe canas?’. Ele ri e me pergunta se estou viajando a trabalho. Eu só viajo a trabalho. Não tenho este luxo de fazer turismo internacional. Um senhor idoso parece ser médium e ler os pensamentos dos outros: ‘O senhor tem alguma coisa contra Isabel ser santa como seu marido Zacarias?’. ‘Me desculpe, mas eu não disse isso em nenhum momento e respeito sua devoção à Santa Isabel’. Sou devoto de Isabel, mas não da santa’. ‘De qual Isabel o senhor está falando?’. ‘Da Isabel que proclamou a lei do Ventre Livre’. ‘Por acaso o senhor é médium?’. ‘Não, sou anunciante’. ‘Um profeta?’. 'Não, faço anúncios em jornais e revistas. Mas já fiz de tudo na minha vida. Já trabalhei em poços de petróleo, na navegação marítima e fluvial, já fui jornaleiro e tradutor. Mas nunca realizei meu sonho de ser secretário, porque em nosso pais só as mulheres podem ser secretárias. E o senhor sabe que outros tipos de profissionais eu gostaria de ser e que podem ser encontrados neste voo? Comprador, hidrófago, cantor, tia, amante, radialista, banana... ’. A conversa ficou estranha demais e pedi licença para ir ao banheiro. Voltei para meu assento e, por sorte, o teatrista e o alfaiate estavam dormindo e roncando. Dormi o resto da viagem e só acordei pouco antes do pouso. Chegamos ao destino final, um país tropical. Agora é só esperar a primavera chegar e torcer para que minha amada tenha me esperado e largado qualquer outro namorado. Não é isso que diz o cara naquela canção WHEN SUMMER IS GONE