quinta-feira, 3 de julho de 2025

SÓCRATES NA TERRA DO BEIJA-FLOR


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 
O Bra
sil masculino estava de ressaca. Eu e uma menor parcela da população feminina também. A seleção brasileira, patrocinada pela marca Topper da São Paulo Alpargatas S/A, acabara de ser deportada da Espanha por Paolo Rossi, Il Bambino d'Oro. Tele Santana, sempre sorridente e solícito, mesmo diante de uma decepção que parecia ser de proporção mundial, circulava pelas dependências do departamento de exportação da empresa, com a aura e a triunfal guirlanda de idealizador do futebol-arte, e autografava todos os pedidos. Em 1982, nenhum brasileiro imaginaria, nem nos mais dantescos pesadelos, que o verdadeiro holocausto de nosso hegemônico esporte bretão viria 32 anos depois, em nossas plenas terras de palmeiras e floresta tropical, onde cantam uirapurus e sabiás. As águias alemãs que aqui gorjeariam, entoariam nossos cantos canarinhos, bem mais melodiosos do que as aves toscanas naquele fatídico dia no Sarriá. Foi a última vez que padeci com nosso esporte mais popular, e, na esteira de minha purgação, pus fim a um sofrimento que encontrou indescritível consolo com a quebra de um jejum de muitos e angustiantes meses de emprego: eu estava de volta ao trabalho, e este seria o meu derradeiro na condição de empregado de carteira assinada. Não me deram muito tempo para me familiarizar com os produtos que eu deveria exportar, o que estava em perfeita contradição com a sucessão de meses que levaram para me contratar, desde o dia que respondi a um anúncio no velho Estadão. Em pouco mais de quatro semanas, fui despachado para nossos vizinhos do norte da America do Sul, da América Central e do Caribe, onde visitei lugares que deram arriscados e deleitosos contornos à minha primeira viagem àquelas bandas: as perigosas Bogotá e Cidade do Panamá, a medonha Zona Livre de Cólon, a sossegada Isla Margarita da Venezuela, a cordial e simpaticíssima Santo Domingo da República Dominicana, as paradisíacas Aruba, Curaçao e Barbados e, finalmente, o interessante e inesquecível Porto de Espanha, capital de Trinidad e Tobago. Este país que tinha, na época, menos de 1 milhão de habitantes, foi uma colônia britânica até 1962, e o inglês crioulo lá falado era e é, até hoje, bastante desafiador, mesmo para um nativo da Inglaterra. O drama pode ser sentido só com este exemplo: crowd (cráud)que significa multidão, soa como crow (crou) corvo. O representante comercial da empresa, um indiano, teve a cortesia de enviar seu motorista particular para me apanhar no aeroporto, e me levar ao luxuoso hotel Hilton, de cinco estrelas, quatro a mais que o meu salário. Ao entrar para fazer o check-in, setor da recepção para registrar-se e receber a chave do quarto, segundo o Sr. Aurélio, deparei-me com um mundaréu de homens falando alto, com a boca e as mãos, como os italianos. Ao aproximar-me, me dei conta que eles algazarravam em português brasileiro! Reconheci alguns rostos e identifiquei-me ao mais próximo, Adilson Monteiro Alves, sociólogo e um dos fundadores da Democracia Corintiana. Ao saber que eu trabalhava para o patrocinador do clube, foi logo me apresentando ao presidente, Waldemar Pires, ao técnico, Mario Travaglini, e convidando-me a juntar-me à comitiva do time e assistir ao amistoso contra a seleção de Trinidad e Tobago no dia seguinte, uma sexta-feira, dia 3 de Setembro de 1982. Meu primeiro encontro com o agente de vendas, completamente esquecido pela Alpargatas, foi decepcionante para ele, porque esperava que eu trouxesse a linha de calçados. Porém, eu era encarregado de vender somente produtos do setor chamado Resto: colchas de chenile e encerados. Nervoso e de nariz empinado, ele designou seu assistente para me acompanhar nas visitas a clientes, e recusou meu convite para assistir ao jogo do Corinthians à noite. Mal sabia ele, e jamais explicaria Deus, que, em pouco tempo, atingiríamos a misteriosa receita de mais de meio milhão de dólares anuais só com as antigas colchas Madrigal, num mercado menor que o bairro de Santo Amaro em São Paulo. Voltei ao hotel antes do pôr do sol. O calor era escaldante, como no verão carioca. Tirei o terno e a gravata, isso mesmo, você entendeu direito, esta indumentária me era imposta pelos meus superiores até nos desertos do Oriente Médio onde estive muitas vezes. De chinelo, camiseta e bermuda, fui para a área de lazer. Lá toda a delegação do Corinthians se concentrava. A maioria dos jogadores se divertia na piscina. Casagrande, com apenas 19 anos, era o brincalhão da turma. Adorava empurrar os companheiros na água. Sócrates não se misturava. Ficava na companhia dos dirigentes e da comissão técnica. Tirei um cigarro do maço de Hollywood e acheguei-me dele, recostado numa espreguiçadeira, segurando um livro, provavelmente de filosofia sobre seu xará. Mal puxei conversa e ele me pediu um cancerígeno. Perguntei:Você voltou a fumar? – para se preparar para a copa do mundo na Espanha, Sócrates absteve-se do tabaco por seis meses. Constatei, então, uma de suas marcas registradas: sua fama de arrogante. E o que você tem a ver com isso? Entornei o caldo de nosso quase monólogo ao pedir a ele para me falar sobre aquela partida contra a Itália. Não quero falar mais sobre isso. Ele me pediu para acender o cigarro e continuou lendo. Mais tarde, naquela noite, eu teria um verdadeiro diálogo com ele, mais amistoso, digamos, mas, para ser sincero mesmo, em circunstância anômala, na qual se inseria mais um de seus logotipos fora da cancha. Chegara a hora de ir para o estádio. Todos foram para seus quartos e desceram de calça e blusão de moletom da Topper. Três micro-ônibus nos aguardavam na saída do hotel. Embarquei num deles. No trajeto até o campo, os jogadores que estavam comigo vociferaram, alucinadamente, contra  todos os transeuntes. Se todos eles fossem submetidos ao exame antidoping, seriam reprovados, e se naqueles tempos já vigorassem as atuais leis disciplinares impostas pelos mafiosos STJD, CONMEBOL, CONCACAF e FIFA, eles pegariam um gancho pesado. Não tive permissão para entrar no vestiário. A preleção do técnico aos jogadores era segredo democrático, mas pude adentrar o gramado com o time formado por Solito, Sócrates, Ataliba, Casagrande, Zenon, Biro Biro, Mauro, Daniel González, Alfinete, Paulinho e Wladimir, uma grande equipe que fez época no futebol. Quando eu me encaminhava para o banco de reservas, um homem, elegantemente vestido, veio ter comigo, falando um bom cockney do East End de Londres. Eu era o único que falava inglês, e fui, imediatamente, confundido com o chefe da delegação. O cavalheiro era o Presidente da Federação de Futebol de Trinidad e Tobago. Suas efusivas saudações e paparicos fizeram me sentir um cartola. Tal qual um político brasileiro em campanha à reeleição, ele me levou  para dar uma volta em torno do campo, construído em 1980, e fez questão de me explicar, em detalhes, outras melhorias que ainda planejava fazer: a ampliação  das arquibancadas, a troca do gramado e a construção de uma pista de atletismo. O Estádio Hasely Crawford era um pouco acanhado. Não me recordo do seu tamanho. Minha memória de 67 anos já não se refresca com tanta facilidade, e já manifesta lampejos de Alzheimer. Acredito que fosse muito parecido com o antigo Parque Antártica do Palmeiras, com capacidade para 27 mil pessoas. O presidente trinitino-tobaguiano massageou meu ego, ainda em busca de autoafirmação, ao me oferecer a tribuna de honra. Encabulada e educadamente recusei, explicando que, por ser o único a falar a língua da terra, precisava estar junto aos ‘meus’ comandados para eventuais traduções, especialmente junto ao trio de arbitragem e nas entrevistas para a imprensa local. Ele entendeu e até se desculpou. Sentei-me no banco ao lado do lateral Zé Maria, às vésperas de pendurar as chuteiras. O jogo foi apenas um treino para o Corinthians, que venceu por 8x2. O  futebol de Trinidad era embrionário, amador, e somente em 2006 conseguiria vaga para participar de sua primeira copa do mundo. Os dois gols do anfitrião foram  facilitados para retribuir a calorosa recepção que os corintianos receberam das autoridades e do público. Ataliba, recém-contratado junto ao Juventus da Rua Javari, foi cumprimentado por todos os jogadores ao fazer seu primeiro gol com o uniforme alvinegro depois de várias atuações sem sucesso. Nada como um saco de pancadas para se reabilitar. Além de dois gols e uma exibição a altura do craque que foi, com assistências inteligentes e liderança intelectual, Sócrates desfilou seu repertório de toques de calcanhar, sua marca registrada no adestramento da bola, uma marca visual da mesma maneira que as bandeirinhas se tornaram sinônimo da pintura de Volpi, como escreveu, inteligentemente, o talentoso Daniel Piza, por ocasião da morte do 'Doutor' em 2011. Havia apenas um repórter de campo brasileiro fazendo a cobertura do evento. Não me lembro se ele era da Gazeta Esportiva, do Diário da Noite ou da Revista Placar. Só sei que, a cada substituição, ele me chamava correndo junto ao mesário, para lhe explicar quem entrou no lugar de quem. Ao final da partida, o presidente da federação trinitina me abordou e me levou de volta ao hotel no seu carro. Sentado no banco de trás estava, nada mais nada menos que Juan Figger, uruguaio que se mudou para São Paulo em 1968, tornou-se rico e célebre por ser um dos maiores empresários de jogadores de futebol e promotores de jogos e torneios amistosos, e, segundo a imprensa, por praticar muitas atividades ilícitas: sonegação fiscal, evasão de divisas, falsificação de passaportes e influência na convocação de jogadores, por ele empresariados, para a seleção brasileira, com objetivo de valorizar o passe dos mesmos. Esse era o trabalho com o qual sonhei tanto: gerenciar esportistas, artistas e músicos. Em 1982, eu e um colega da Alpargatas planejamos um empreendimento que se tonaria uma realidade aqui somente nos anos 90: exportar jogadores brasileiros para a Europa e trazer bandas de rock britânico para apresentações no Brasil. Não executamos o plano, perdemos o momento, e outros ficaram com nossos sonhos. Juan, que organizou dois amistosos para o Corinthians em mares de céu azul caribenho, permaneceu calado o tempo todo. Já o presidente da federação, eufórico, delirava com ideias que ele queria deixar sob minha responsabilidade: um torneio em Trinidad, reunindo Santos, Corinthians, Palmeiras e Flamengo. De volta ao hotel, fui direto para o bar, sem nenhuma mágoa para afogar, simplesmente porque eu teria um fim de semana de folga e só voltaria a trabalhar na segunda-feira. Lá estava Sócrates, saboreando uísques, cervejas e outros baratos etílicos afins. Sentei-me ao seu lado e, desta vez, bebericamos juntos e jogamos muita conversa fora, literalmente, sobre todos os possíveis assuntos descartáveis, menos futebol. Sócrates estava, ainda, no primeiro de dez assaltos às malvadas, mas eu já estava meio grogue, tentando manter o equilíbrio, prestes a jogar a toalha. Os adversários do Corinthians tinham enorme dificuldade para acompanhar o Sócrates dentro das quatro linhas, mas era quase impossível acompanhá-lo na arte de ingerir as águas que os passarinhos não bebem. Fui salvo pelo gongo: foi anunciado o jantar que o hotel, ou a Federação Trinitina, ou não sei quem, ofereceu à delegação corintiana. Voltei ao meu apartamento, desabei na cama de sapato e tudo, e o quarto parecia enfeitiçado, girando como um carrossel. Contei poucos cavalinhos para ferrar no sono. Depois de um tempo imponderável, o telefone tocou. Passava da meia-noite. Quem era o filho da mãe que me ligou em plena madrugada de sábado, perguntaria o pai do bem sucedido corretor da bolsa de valores no filme O Lobo De Wall Street. Era tudo demais tudo de menos que outro representante comercial, outro indiano, da cidade de San Fernando. Nas poucas semanas que tive para me preparar para aquela longa viagem, ao triar as rumas de telexes sem respostas,  encontrei dois agentes interessados nos produtos da Alpargatas. Acabei ficando com o esnobe do Port Of Spain, mas, por precaução, avisei o sanfernandino que eu estaria em seu país. Mas por que ele me procurou a esta hora? O inoportuno soube, pela televisão, que o médico Sócrates estava em Trinidad, e queria conhecê-lo Rodopiando pelos corredores, consegui chegar ao bar. E lá estava Sócrates novamente, jantado, e agora acompanhado de vários camaradas. Tive que tomar algumas doses de uísque com o pródigo de Gandhi, que era médico também, e não veio falar sobre negócios. Apresentei-o ao Sócrates, larguei os dois no balcão do bar conversando, não sei em qual língua, provavelmente em libras. Trotando em zigue-zague, rumei em direção aos elevadores. Ao passar pelo saguão, fui interpelado pelo Daniel González, caindo pelas tabelas, tentando dar uma entrevista a um canal de TV local. A jovem e bonita jornalista pediu-me para ajudar na tradução. Cada pergunta dela era respondida com impropérios aqui intraduzíveis, como, por exemplo, este belo eufemismo: quero levá-la para meu quarto para fazer amor. Sempre polido, eu dizia à moça que o Daniel e todos os corintianos estavam adorando o país. Mais jogadores, completamente embriagados, juntaram-se àquela baixaria, que eu trasladava para uma solicitude. Para me desvencilhar deles, tive que enganá-los com uma falsa e súbita indisposição estomacal, embora meu vômito implorasse para abrir a porta. Escorando-me pelas paredes, consegui chegar ao meu apartamento. Com as mãos trêmulas, coloquei o aviso de não perturbe na maçaneta do lado de fora da porta, tirei o telefone do gancho, e desmaiei na cama. Meu inconsciente cancelou todos os sonhos programados para aquela noite. Acordei depois das 15 horas, com uma retumbante dor de cabeça e, rebuscando chavões, na consciência. Lentamente, comecei a recobrar os sentidos e a rememorar o que se passara nas últimas 24 horas. Lembrei-me que, enquanto estava sóbrio, Sócrates me disse que eles teriam que levantar às 6 da manhã no Sábado para pegar um voo para Curaçao, onde jogariam um amistoso  contra a seleção local no Domingo. Seleção de Curaçao? Impossível! O escrete desta ilha de encantos mil devia ser igual ao Íbis de Pernambuco, o pior time do mundo, que entrou para o Livro Guinness dos Recordes por ter conquistado a  façanha de três anos e onze meses sem comemorar uma única vitória. Mas, contra um time encharcado de engasga-gato, talvez os curaçaoanos conseguissem uma vitória. Quase! O jogo foi 0x0, e o Corinthians deve ter se arrastado numa lombeira tão confusa como o papiamento, língua oficial das antigas Antilhas Holandesas, mistura de holandês, alemão, inglês, espanhol e português. Se os corintianos não se refizeram da bebedeira com um trago de bebida que cura, significado da palavra Curaçao, então eles provaram da típica bebida Curaçau (com U mesmo), feita com cascas de laranjas da ilha e cachaça de cana de açúcar da melhor qualidade da região. Lembrei-me, também, de ter explicado ao Sócrates que Cristovão Colombo batizou o país de La Isla de La Trinidad, uma óbvia referência à Santíssima Trindade Cristã. Mas os ameríndios locais chamavam a ilha de Terra do  Beija Flor. Faz todo sentido. Afinal, dois humming birds adornam o brasão de armas de Trinidad. E Tobago, o que significa? Há tantas controvérsias sobre sua etimologia que prefiro não arriscar uma explicação. Melhor lembrar-me daqueles dias ouvindo a Enya cantar Caribbean Blue (Azul Caribenho): So the world goes round and round..., E o mundo gira e gira..., e eu completo: and so does my head, e assim também gira minha cabeça, while little colorful birds still hum in my mindenquanto passarinhos coloridos ainda zumbem em minha mente, saudosa do grande Sócrates brasileiro, que partiu cedo demais.





A PSICOGRAFIA DE CHICO XAVIER

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Há trinta anos, eu dei uma palestra sobre Sócrates numa casa espírita. O texto que preparei estava muito longe de ser espiritual, mas tive que fazer algumas pequenas concessões para que meu discurso pudesse receber a atenção do público heterogêneo daquela sociedade quase filantrópica. Uma das maiores preocupações dos dirigentes espíritas é evitar que uma personalidade histórica, como Sócrates, seja colocada lado a lado, em termos morais, com uma figura mitológica, como Jesus. Por ocasião da preparação de minha palestra, um desses dirigentes, bem-intencionado, entregou-me um livro psicografado por Chico Xavier, chamado Crônicas do Além-túmulo, e que contém uma entrevista que o suposto espírito de Humberto de Campos, escritor brasileiro morto em 1934, apelidado de Irmão X, fez com Sócrates no plano espiritual. Aquele curto texto de nada me serviu, mas seu conteúdo estarreceu-me com tanta falta de conhecimento e excesso de preconceitos. Encontro, agora, ensejo para escrever sobre a psicografia de Chico Xavier, uma vez que o espiritismo está na moda com os filmes CHICO XAVIER, AS MÃES DE CHICO, NOSSO LAR e O LIVRO DOS ESPÍRITOS, todos, aliás, muito fracos e piegas. O mais agravante é o fato de que os produtores desses filmes querem passar ao público a ideia de que não se trata de ficção (de baixa categoria), mas de realidade. Não há dúvidas que estes filmes levam ao delírio o único público que os assistem: os fanáticos espíritas. Para mim, Chico Xavier foi um criptomaníaco. Este neologismo não tem nada de pejorativo. Eu o inventei a partir de uma palavra verdadeira: criptomnésia. Portanto, quando digo que Chico Xavier foi um criptomaníaco, quero apenas dizer que ele foi uma pessoa afetada por criptomnésia. Enquanto os espiritualistas acreditam que tudo o que Chico escreveu foram mensagens psicografadas por espíritos de gente morta, uma análise científica dos seus textos prova que seus escritos são apenas resultados da criptomnésia, que é uma condição na qual uma pessoa tem lembranças ou habilidades que ela pode acessar, mas que foram adquiridas subconscientemente ou através de meios subliminares. Em geral, a pessoa não tem nenhum conhecimento de como ou quando tais memórias e habilidades foram adquiridas. Elas podem ficar armazenadas por um longo período de tempo até emergirem através de transe hipnótico, meditação e auto-hipnose. Há vários tipos de criptomnésia. Uma delas é a xenoglossia, a habilidade de falar idiomas que nunca se estudou e com os quais jamais se teve qualquer contato. Outra é a escrita automática, que os espíritas chamam de psicografia, que revela a capacidade que uma pessoa tem de escrever uma grande quantidade de informações a ela desconhecidas, sem nenhum desejo consciente de fazê-lo, decorrendo daí o fato de os espíritas acharem que tais escritas automáticas são iniciativas espontâneas de espíritos de pessoas que já faleceram e que resolvem escrever histórias, contos, crônicas e depoimentos através de pessoas dotadas de percepções extrassensoriais, ou médiuns, como o Chico. Eu não conheci o Chico Xavier, aliás, conheci-o somente por 60 segundos, insuficientes para fazer uma ideia de seu caráter. No entanto, conheci vários amigos íntimos de Chico que o descreveram como uma pessoa extraordinária, fora do comum. Logicamente, esses amigos do Chico são muito suspeitos para falar sobre ele porque são espíritas Kardecistas e, como todos sabem, os espíritas costumam viajar muito na maionese. De forma geral, muitas celebridades, artistas e até políticos que conheceram o Chico, reconheceram nele uma pessoa diferente e excepcional. Não duvido disso. Chico deve ter sido uma pessoa muito especial mesmo. Mas ele é mais conhecido pelo vasto acervo de livros que escreveu. Li vários destes livros e digo que a maioria deles é extremamente pobre de ideias. Muitos dos longos romances de Chico são exageradamente sentimentais, contaminados de moralismo puritano e religiosidade, como se a vida após a morte não fosse um fenômeno natural deste planeta e do universo, mas uma criação da fé cristã (para os espiritualistas, não há vida após a morte sem o cristianismo com todas as suas fantasias). Os livros do Chico são facilmente previsíveis, como os de Paulo Coelho. Depois da quinta página, já se sabe como a história vai terminar. São também excessivamente repetitivos, sempre com a mesma história e o mesmo enredo, mudando somente o cenário e os nomes dos personagens. Os textos mais curtos do Chico são igualmente enfadonhos, e alguns chegam a subestimar a inteligência e a cultura. Outros até que têm boas frases moralizantes e edificantes, mas, ainda assim, muito carolas. Enquanto ele escrevia histórias fictícias, mesmo bregas e melodramáticas, ele conseguia arrebanhar um público apaixonado e pouco culto, o mesmo que colocou os livros da Zibia Gasparetto entre os mais vendidos do país. Mas quando o Chico se punha a escrever sobre histórias reais que pudessem ser confrontadas por livros acadêmicos, Chico se saia muito mal. Como exemplo, analiso aqui um de seus textos curtos, justamente aquele que me foi dado para ler, sobre Sócrates. O texto original é separado em parágrafos numerados em itálico e negrito para facilitar a identificação de meus comentários marcados por letras azuis.

FRANCISCO CANDIDO XAVIER, CRÔNICAS DE ALÉM-TÚMULO, pelo Espírito Humberto de Campos, 25 - SÓCRATES, página 76, 7 de janeiro de 1937.

1. Foi no Instituto Celeste de Pitágoras (1) que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre filho de Sofronisco e Fenareta. A reunião, nesse castelo luminoso dos planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as melodias da Natureza. O palácio consagrado a Pitágoras tinha aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado.

a) Como o suposto autor espiritual deste texto foi um poeta e escritor, Chico se permite florear em demasia a descrição do local onde Sócrates é esperado, a ponto de fazer alusão a personagens da mitologia grega, como Orfeu e Pan. Se existe vida após a morte, imagino que o lado de lá não seja idêntico ao lado de cá. Mas esta não parecia ser a opinião do Chico. Não sabemos se os espíritos resolveram prestar uma homenagem à civilização mais inteligente que já houve na terra, ou se a réplica, no plano espiritual, das edificações da gloriosa Atenas é mero fruto de uma doentia saudade dos tempos de encarnados na terra. Logo saberemos.

2. Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo. Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucídides, Lísis, Esquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens.

b) Faltam, nesta lista do Chico, vários dos cidadãos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas: Galileu Galilei, Francis Bacon, Rene Descartes, Thomas Hobbes, John Locke, Isaac Newton, George Berkeley, David Hume, Immanuel Kant, George Wilhelm, Friedrich Hegel, Auguste Comte, Karl Marx, etc. Para Chico, os mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas são apenas os helenos da Grécia clássica! Poetas, escritores, músicos, filósofos, políticos, oradores e historiadores. Mas, mesmo nesta relação de Gregos clássicos, faltam exatamente as figuras mais respeitáveis na história da produção do conhecimento humano: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides, Heráclito, Demócrito, Zenão, Epícuro, Pirron, etc. Nem mesmo o grande Pitágoras, a quem Chico diz ter sido consagrado aquele Instituto Celeste, é mencionado!

3. Admirei-me, porém, de não encontrar ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento...

c) A preocupação com a ausência de Platão é injustificável, tendo em vista que a maioria dos gênios da humanidade não está presente. Também não se justifica esperar que os juízes que condenaram Sócrates, e que não deram nenhuma contribuição à ciência ou à filosofia, pudessem estar presentes num conclave dos vultos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todos os tempos.

4. ...quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve moldavam-lhe o semblante jovial e tranquilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura.

d) O Chico era famoso por fazer uso demasiado de adjetivos (e eu sou também, mas não famoso). Aqui ele emprega vários em poucas frases. Soma-se à adjetivação o estilo excessivamente floreado.

5. As palavras de Sócrates contornaram as teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais, tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro espiritual. É verdade que não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a abordá-lo:

e) Segundo a história, o humilde Sócrates costumava falar aos jovens nas praças públicas com extrema clareza e simplicidade, mas agora ele fala nos palanques celestiais do plano espiritual com extrema complexidade e sofisticação. Ao deixar o mundo terreno e mudar-se para os planos divinos, o Sócrates do Chico deixa a humildade de lado e fala de forma tão complicada que se torna impossível transmitir ao mundo a expressão exata de seus ensinamentos. Nem mesmo Deus é capaz de entender sua avançada sabedoria espiritual. Quando NADA se sabe sobre alguém e, mesmo assim, tem-se a pretensão de conhecê-lo a fundo, é muito comum ouvir explicações como esta: ‘Não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual’. Oras, eu, também, não tendo condições de provar que estamos sendo visitados por alienígenas, posso dizer aos meus amigos que mantive contato imediato do quarto grau com os ocupantes dos discos voadores, mas não posso descrevê-los para eles e nem mesmo transmitir-lhes a expressão exata da sabedoria de suas comunicações telepáticas, estribados na mais elevada das perfeições morais, levando-se em conta a sofisticação de suas tecnologias, incompreensíveis para as ciências atuais de nosso planeta. Simples, não?

6. - Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias? - Seria inútil - respondeu-me bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando lhes os mais nobres sentimentos de humanidade.

f) O Sócrates da história teria ficado lisonjeado se fosse convidado a falar aos homens comuns, mas o Sócrates do Chico SE NEGA a falar a gente simples, pois agora ele faz parte do mundo das criaturas superiores, mas, mesmo assim, ele se esquece de quem foi (ou ainda é) e comete alguns deslizes humanos, como, por exemplo, repetir o chavão não reconhecem a si mesmos.

7. - Mas. . . - retorqui - lá no mundo há uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir! ...
- Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência. A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência individual, quase sempre difícil e dolorosa.

g) O Sócrates de Chico e dos raciocínios profundos e transcendentes continua se negando a falar aos homens comuns, porque ele está muito acima deles. Agora, ele é um Deus!

8. Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os Espíritos aí encarnados deixarem de serem cidadãos para serem homens conscientes de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas, enquanto existirem sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender essa fraternidade no campo sociológico. Impressionado com essas respostas, continuei a interrogá-lo:

h) O Sócrates de Chico diz que o homem precisa deixar de ser cidadão, porém o Sócrates histórico foi um ferrenho cidadão Ateniense, tendo, inclusive, servido o exército para defender sua Cidade-Estado. O Sócrates do Chico perdeu a oportunidade de ter nos ensinado quais invenções na terra NÃO SÃO puramente humanas. E mais uma vez, o Sócrates do Chico repete o chavão o homem não se descobriu a si mesmo.

9. - Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que cometeram, condenando-vos à morte?
- De modo algum. Miletos e outros acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o exemplo vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor e da morte.

i) Nos parágrafos 6 e 7, Sócrates diz ser inútil enviar suas mensagens benevolentes e sábias para o mundo e para uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de ouvi-lo, mas, para ele, é MUITO OPORTUNO criticar um insignificante personagem Grego como Mileto! Está claro que a criptomnésia não agraciou Chico com qualquer conhecimento sobre Sócrates, por isso a única coisa que Chico tem a dizer sobre Sócrates é aquele velho chavão que todos nós conhecemos e que ele repete, pela terceira vez, neste curto texto: enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma.

10 - Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos discípulos?
- Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre -, é de lamentar as observações mal avisadas de Xenofonte, lamentando eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e benfeitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época e nem se desviaria- para as afirmações dogmáticas no terreno metafísico...

j) Quando perguntado, três vezes, se ele gostaria de dizer algo ao mundo, o Sócrates de Chico disse, terminantemente, ser inútil! Mas, quando perguntado se ele gostaria de falar sobre seus discípulos, não hesitou em responder: perfeitamente! Este é o momento catártico do texto que tem como objetivo principal criticar os que foram aclamados como grandes homens pela história e que incomodam o Sócrates do Chico. As chamadas palavras desavisadas de Xenofonte as quais o Sócrates de Chico refere-se são aquelas que mostram o Sócrates humano, que não trabalha, que briga com a mulher, não se dá com o filho mais velho, não toma banho, anda descalço e fica uma semana inteira sem trocar de roupa. As palavras desavisadas são aquelas que mostram um Sócrates menos sábio do que moralista e menos moralista do que desmazelado. Mas o calcanhar de Aquiles do Sócrates de Chico não é Xenofonte; é Platão, o verdadeiro gênio, e quando ele se põe a falar de seu maior admirador, ele começa a dar sinais de ignorância. Eu, que sou leigo e um Zé-ninguém, sei que, quando escreveu o livro Apologia, Platão não reproduziu palavras de Sócrates, mas apenas escreveu o que ele, Platão, gostaria de ter dito, em defesa de Sócrates, aos juízes que o condenaram. Vejam só a maestria das ‘ladainhas laudatórias’ de Platão que tanto irritam a fonte inconsciente de Chico: ‘Não me insurjo contra os que votaram contra mim ou me acusaram. A verdade é que não me acusaram e me condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano; nisso merecem censura. Contudo, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos cresceram, castigai-os e atormentem-nos com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude. Se eles se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem, e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu terei recebido de vós justiça; eu e meus filhos também’. Até Deus aplaude estas frases que o Sócrates de Chico chama de ladainhas laudatórias.

11. ...Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias.

k) É sempre FÁCIL falar bem de pessoas das quais pouco se sabe, como Antístenes. Quanto menos se sabe de uma pessoa, mais ela é endeusada e mais dela se fala e este é o caso de Jesus. Mas aqui, ao falar pela segunda vez de seu desafeto, chamado Platão, o Sócrates de Chico assina o atestado de burrice com a frase Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio?’ No seu magnífico livro chamado Fedão, Platão narra a conversa que Sócrates teve com vários amigos no seu último dia na prisão quando, antes do por do sol, ele seria executado. Historicamente, Platão não esteve presente, mas soube de todos que lá estiveram e até mesmo o que conversaram. Platão não narra o que realmente foi falado naquele último dia de Sócrates. Ele apenas escreve, com sua genialidade, sobre o que ele, Platão, acha que seu mestre poderia ter conversado com seus amigos. Para alguém que está prestes a partir para o outro lado, nada melhor do que falar sobre a alma e o que nos espera após a morte (um dos assuntos prediletos de Platão - Leiam o tomo número 10 de A República). Se vocês lerem o Fedão de Platão, notarão que o tempo todo ele faz Sócrates descrever a morte como uma libertação final do espírito, afirmando que o corpo físico nada mais é que uma prisão para a alma e que, quando se morre, o espírito se vê livre desta doença chamada corpo. Como se sabe, Sócrates foi condenado à morte sob a acusação de desvirtuar os jovens com ideias nada convencionais e de denegrir a imagem da religião grega de muitos deuses. No momento derradeiro do livro, o carrasco faz Sócrates beber cicuta. Quando o veneno começa a fazer efeito, Sócrates desaba sobre a cama e permanece quase imóvel. Um de seus amigos o segura pela cabeça e pergunta se ele deseja dizer suas últimas palavras. Sócrates responde: Não se esqueça de que devemos pagar um galo ao deus Asclépio (Esculápio para os romanos). Frase magistral! Mata dois coelhos com uma cajadada só. Asclépio era o deus da medicina e da saúde ao qual as pessoas com enfermidades faziam promessas para se curarem e lhe ofereciam um animal para sacrifício, da mesma forma, como nos dias de hoje, muitas pessoas vão a Aparecida do Norte e fazem promessas para curarem-se de suas enfermidades e oferecem os mais diferentes objetos como pagamento pelo pedido atendido. Com essa lembrança do deus Asclépio, exatamente nos últimos instantes da vida de seu mestre, Platão quis mostrar que, na verdade, Sócrates nada tinha contra a religião de muitos deuses da Grécia, e, ao mesmo tempo, ao pedir para seu amigo pagar um galo a Asclépio, ele está sendo coerente com o tema que ele escolheu para discutir no seu último dia de vida e, assim, pagar uma promessa por uma graça alcançada: Ele está morrendo e seu espírito está sendo curado desta doença chamada corpo, graças a Asclépio, o deus da saúde. Simplesmente genial! E é dessa frase que o Sócrates de Chico tem ciúmes a ponto de achar que Platão teria insinuado que o Sócrates histórico falou isso de verdade. Quanta ingenuidade! Quanta falta de cultura! Quanta falta de inteligência!

12. - Mestre, e o mundo? - indaguei.
- O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon, os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!. . . A nossa única realidade é a vida do Espírito.

l) Todos os espiritualistas dizem que nossa única realidade é a vida espiritual e não a material. O problema é que não existe prova nenhuma de que existe vida após a morte ou vida espiritual e, enquanto não obtemos uma prova concreta, resta-nos deliciarmo-nos com A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que narra as lutas de Atenas e Esparta; encantarmo-nos com as glórias do Pártenon que ainda está de pé na Grécia atual e com os esplendores do século de Péricles registrados nesta grande invenção puramente humana chamada livro. Se o mundo espiritual realmente existe como acreditava Chico, então não devemos nos preocupar com tudo que ficou reduzido a cinzas na terra, pois tudo está sendo reconstituído nos planos divinos, se levarmos a sério o que está escrito no parágrafo 1.

13. - Não vos tentaria alguma missão de amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração humana?
- Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo.

m) Por três vezes, o Sócrates de Chico recusou-se a enviar uma mensagem de solidariedade aos simples mortais ainda encarnados. Agora, ele insinua ser inútil voltar à terra com uma missão de amor, porque o esforço que o homem faz na terra não passa de puro verbalismo. No entanto, tudo o que o Humberto e o Sócrates de Chico disseram neste texto não passa de puro verbalismo: muita eloquência, nenhuma substância e nenhuma lógica.

14. E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o, grande filósofo sentenciou:
- As criaturas humanas ainda não estão preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda, todos os discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!

n) E se todas as palavras proferidas pelos mais venerados sábios do plano espiritual forem semelhantes a estas, estaremos despreparados não somente para o amor e a para a liberdade, mas também para a sabedoria e a imparcialidade!

15. E enquanto o ilustre sábio ateniense se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e rara entrevista.

O que aprendemos com esta entrevista do Sócrates do Chico? Absolutamente nada! O Sócrates de Chico limita-se a repetir o que qualquer leigo já sabe: que devemos conhecer a nós mesmos. O resto é puro verbalismo de quem não sabe o que escrever sobre o Sócrates histórico. Se você, leitor, tiver um pouquinho da inteligência do Platão, descobrirá que este texto não é sobre Sócrates. Desde o terceiro parágrafo, o autor vem preparando o leitor para o que mais lhe interessa: criticar Platão. E por que criticá-lo? Talvez porque ele foi o verdadeiro filósofo de todos os séculos. Ou talvez porque o cristianismo é o piano da mitologia judaica carregado pelos ombros do neo-platonismo e do estoicismo e que receberam o rótulo de moral cristã (com uma oportuna contribuição do império romano), fanaticamente atribuída a um personagem chamado Jesus de Nazaré que não existiu. Mas o Chico não teve culpa disso. Como eu disse, ele era afetado pela criptomnésia, isto é, ele tinha acesso inconsciente a uma fonte de informação que ele desconhecia (se quiser, pode chamar isto de percepção do inconsciente coletivo no estado vígil). A única coisa que podemos asseverar, com toda a certeza, é que a fonte a qual ele teve acesso, pelo menos para escrever este texto, nos dá uma verdadeira aula sobre como fazer críticas levianas a gênios da humanidade, primando pela adoração das palavras e gosto da eloquência vazia de conteúdo e significado. Aos cristãos e, em especial, aos espíritas, isto que vou dizer parecerá um sacrilégio: boa parte da chamada moral cristã foi simplesmente chupada dos livros de Platão. Esta deve ser é uma das razões pela qual Platão foi tão invejado e criticado neste texto do Chico. Ah, que bom seria se todas as máximas da moral cristã fossem, realmente, de autoria do mito chamado Jesus Cristo!

Nem tudo o que Chico escreveu provém da criptomnésia. Vários de seus escritos e declarações advêm de seu inconsciente e consciente pessoal e coletivo, refletindo o ambiente em que foi criado, as influências sociais e religiosas que sofreu, seu nível cultural e intelectual e sua indiscutível percepção extrassensorial e sua cripto. No entanto, se este texto do Chico é uma prova de que existe vida após a morte, deduzo que 1) Sócrates não era tão sábio como conta a história, mas, ao contrário, muito burro ou 2) O espírito de  Humberto de Campos mentiu ao dizer que encontrou-se com o espírito de Sócrates e inventou uma suposta entrevista apenas para criticar Platão, seu desafeto e um filósofo de quem ele tem uma insuportável inveja ou 3) O inconsciente/consciente de Chico foi afetado pelo fanatismo espiritualista A propósito, naquele famoso e antigo programa chamado PINGA FOGO, por exemplo, Chico fez duas declarações mirabolantes e hilariantes que ele poderia ter evitado. Não tendo condições de explicar porque ele não psicografava ideias de Platão, Chico tentou diminuir a importância do grande filósofo ao insinuar que ele não era o verdadeiro autor das grandes lições morais e intelectuais que nos legou, mas apenas um médium que psicografava as ideias dos outros! Foi muito triste ouvir de nosso gentil Chico algo tão hilário assim. Mais triste ainda foi Chico dizer que o primeiro livro da história da humanidade foi ditado por espíritos e psicografado por Moisés numa pedra. Uma utopia sem precedentes (para os homens, isso é pior que câncer nos testículos). Talvez por falta de oportunidade e tempo para estudos científicos, Chico não sabia que Moisés não existiu e que os judeus plagiaram os dez mandamentos do Livro dos Mortos dos Egípcios e o  enxertaram com contradições (você não pode cometer adultério - mandamento 7, mas pode comer sua escrava - mandamento 10; você não pode matar - mandamento 6, mas pode instituir a pena de morte segundo a lei do olho por olho, dente por dente, Êxodo 21:24), preconceitos (deus aprova a escravidão, permite que você tenha escravos e permite que você cobice seus escravos que são comparados a animais e objetos, mas deus não gosta que você cobice os escravos dos outros - mandamento 10 - Qual é a mensagem de deus para as pessoas que são escravizadas?), soberba (nos quatro primeiros mandamentos deus só fala de si mesmo).

Em tempo: O público em geral, religiosos e ateus, não sabe que Sócrates jamais disse a frase 'Conhece-te a ti mesmo'. Estas palavras foram encontradas numa inscrição no Oráculo de Delfos, na Grécia. Antigamente, só os acadêmicos sabiam disso, mas em nossos dias até o Google sabe. E eu, um desprezível Zé Ninguém, já sabia disso com 15 anos de idade, lendo livros acadêmicos, é claro!

ANO 2446

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

A paisagem não era um esplendor, e a terra parecia um pouco desolada, com pouca vegetação, solo pedregoso e arenoso, como um sertão de pedras. Nosso guia turístico nos escoltava numa caminhada por lugares históricos e ecológicos. A ideia era praticar trekking com espírito de aventura, mas alguns lugares por onde passamos tinham aspecto inóspito. Eu deveria ser o único brasileiro num grupo de estrangeiros de diferentes países. Nossa excursão incluía escaladas. Logo surgiu uma colina, um tanto íngreme, e nosso guia gritou:
- Vamos lá, pessoal, força nas pernas!
A trilha era de chão batido, espaçosa, da largura de uma ruela. Uns caminhavam mais rápidos que os outros, mas o grupo não se dispersava. Subitamente, ouvi um alvoroço vindo de baixo. Olhei para trás e vi um urso subindo a ladeira a largas passadas, abrindo alas entre os humanos, esbravejando, ameaçando com patadas no ar e bramidos nervosos. Ao passar por mim, tive que sair de lado rapidamente para que ele não me arranhasse. O urso era jovem, esbelto, andava como um ser humano, e logo chegou ao alto do monte e sumiu. Poucos minutos depois todos nós chegamos ao cume e nos deparamos com uma visão magnífica: um antigo templo em ruínas que lembrava um pouco o santuário egípcio de Debod localizado no centro de Madri, sustentado e coberto por pesadas lajes de pedras semelhantes às encontradas em Stonehenge na Inglaterra. Todos estavam deslumbrados, mas ninguém fez qualquer comentário sobre o estranho urso que passou por nós. Imaginei que ele estivesse escondido dentro daquele monumento. O guia nos convidou a entrar. O interior era pouco iluminado e afigurava um salão central ladeado por várias reentrâncias em forma de labirintos. Enquanto admirávamos aquelas majestosas e rústicas paredes de rocha, começaram a surgir enormes ursos de todos os cantos, vindo para cima de nós, formando um círculo à nossa volta e fechando o cerco. Abraçados uns aos outros à espera da morte, ouvimos um urso gritar:
- Surpresa, humanos! Fechem os olhos!
Nunca imaginei que morreria assim, devorado por ursos que falam como gente. E o mesmo urso tornou a gritar:
- Agora já podem abrir os olhos!
Para nossa surpresa, surgiu, como num passe de mágica, uma enorme mesa cheia de comes e bebes, um verdadeiro banquete.
- Aproximem-se, humanos! Vamos nos confraternizar. Fiquem à vontade!
Incrédulo, vi homens e ursos bebericando, comendo e conversando! O guia juntou-se a mim e antes que eu pudesse indagá-lo um urso adolescente veio até nós. Ele tinha pendurado no pescoço uma corrente com a estrela de David. Amistoso e sorridente, ele solenizou:
- Espero que vocês estejam gostando da recepção. Não se acanhem. Comam e bebam à vontade. Embora todos nós pareçamos iguais, temos ideologias diferentes. Sintam-se em casa!
O urso foi cumprimentar outros humanos e eu, estupefato, fui puxado pela mão do nosso guia. Ele me levou a um canto do labirinto, apertou o dedo contra uma parede e portas abriram-se. Era um elevador. Ele entrou e me trouxe para dentro. As portas fecharam-se e o elevador começou a descer rapidamente. O guia nada falava e eu não sabia nem mesmo o que falar de tão pasmado. O elevador parecia estar em queda livre. Com a voz embargada, perguntei ao guia:
- Demora muito ainda para chegarmos à superfície?
- Já chegamos a ela. Agora estamos descendo ao subterrâneo.
Pela velocidade e o tempo decorrido imaginei que já tivéssemos descido mais de 200 andares. Finalmente o elevador parou. As portas se abriram, e surgiram diante de nós duas moças gêmeas, muito bonitas, com sorrisos simpáticos, olhando-nos com ternura. Elas tinham a pele mais branca que leite, cabelos lisos e negros, aparados na altura da nuca, a la chanel, e olhos negros e cintilantes. Vestiam um tipo de macacão, dos pés ao pescoço, um colante bem justo e apertado no corpo, aderente como se fosse a mesma pele da face clara e translúcida. E elas permaneciam diante de nós, sem falar nada, apenas sorrindo. Detive-me por vários segundos, hesitei e, então, arrisquei:
- Podemos entrar?
- Você perguntou se podem entrar e te respondo que sim, vocês podem entrar.
Saí do elevador e adentrei um vasto salão todo branco, tão estranho quanto às duas moças que se mantinham ao meu lado. Percorri o ambiente com os olhos rapidamente e tudo o que via era uma imensidão branca. Não atinava para nada e decidi, então, fazer uma pergunta mais arriscada:
- Que planeta é este?
- Você perguntou que planeta é este e eu te respondo que este é o planeta terra.
- Mas isso aqui não se parece com a terra! Vi ursos na superfície falando e se comportando como humanos e este ambiente em nada se parece com qualquer coisa que conheço. Este não é meu tempo, é?
- Você perguntou se este não é seu tempo e eu te respondo que este não é seu tempo.
- Em que ano estamos?
- Você perguntou em que ano estamos e eu te respondo que estamos no ano de 2446.
Fiquei completamente sem ação, sem saber o que fazer e o que mais perguntar. As duas moças mantinham seus olhos fixos nos meus, sem hesitar, sem piscar. Sentindo-me meio perdido, mas com um sensação de bem-estar incomum, resolvi fazer a primeira pergunta que me veio à mente:
- Posso dar uma volta por aí, para conhecer o lugar?
- Você perguntou se pode dar uma volta por aí para conhecer o lugar e eu te respondo que você pode.
Qualquer pessoa se sentiria incomodada com a maneira da moça sempre repetir minha pergunta antes de respondê-la, no entanto, estranhamente, eu achava isso natural. A moça tinha uma voz humana suave, falava com extrema delicadeza, sempre solícita e educada, e cada vez que respondia seus olhos denunciavam um notório e sincero interesse por mim e minhas perguntas. Pedi licença às duas moças e comecei a caminhar pelo ambiente. Logo percebi que havia várias moças idênticas transitando através daquele imenso recinto. Ele tinha assoalho, paredes, portas, janelas, teto, e móveis, mas não era possível vê-los à distância, no entanto eu sentia que tudo estava lá. Não era possível divisar contornos como cantos de paredes ou a altura do teto, mas, de uma maneira que não sei explicar, eu conseguia perceber as delimitações dos espaços. Tinha uma perfeita noção espacial da área que certamente se dividia em muitos ambientes separados. Depois de muito andar finalmente me deparei com algo sólido, uma parede com uma porta. Tudo branco. Só era possível enxergá-las estando bem próximo delas. Decidi abrir a porta e, no exato momento que eu ia colocar a mão numa especie de maçaneta, outra moça idêntica às outras gentilmente se colocou entre mim e a porta e abriu um irradiante e cativante sorriso.
- Me desculpe, não tive intenção de me intrometer. Só queria conhecer outros cômodos. Posso abrir esta porta?
- Você perguntou se pode abrir esta porta e eu te repondo que hoje você não pode, mas um dia  poderá.
- Então eu vou ser trazido de volta a este lugar, quero dizer, a este tempo?
- Você perguntou se será trazido de volta a este lugar, querendo dizer, a este tempo e eu te respondo que sim, você um dia aqui voltará, porém por livre e espontânea vontade,  da mesma maneira como aqui chegou hoje.
Agradeci a moça e achei que o melhor a fazer era voltar. Só neste momento me dei conta que meu guia não estava comigo. Olhei em todas as direções e lá num fundo indistinto vi meu guia recostado em alguma coisa sólida, talvez uma parede, com uma perna dobrada e a sola do pé escorada contra esta coisa sólida. Fui em direção a ele e quando me aproximei percebi que ele estava recostado na porta do elevador. Ele me olhou com um ar de motorista apoiado em seu táxi esperando seu cliente voltar. As portas do elevador se abriram, o guia entrou e com apenas uma olhadela pediu-me para entrar. O elevador começou a subir rapidamente. Olhei para o guia e perguntei:
- Me diga uma coisa. Essas pessoas daqui são todas assim? Lindas, branquelas, de cabelos e olhos negros?
- Sim, todas, mas algumas têm olhos coloridos, verdes, azuis, amarelos, vermelhos, cinzas, castanhos...
- E são todas gêmeas e clonadas?
- A maioria é, mas há híbridas também, não repetidoras, não questionadoras, adutoras da sua vontade de descer, entrar e ficar, de perguntar, de querer saber e aprender, de descobrir, partir, subir e compartilhar com seu tempo tudo o que você viu aqui. Elas são atemporais, não robotizadas, não controladas, humanadas na sua vontade de subir, entrar e ficar, de ouvir, de querer entender e respeitar, de confraternizar com os não humanos, como os ursos da superfície, de voltar, descer e esperar. Elas são acólitas, não anacrônicas, não icônicas, sincrônicas de seus desejos de subir, descer e igualar, de escrever, de querer transmitir e disponibilizar, de dividir, de aqui voltar um dia, descer de novo e desvendar tudo.
- Você é muito estranho. Sabe tudo sobre este mundo subterrâneo. Enquanto estivemos lá em baixo com aquelas mulheres clonadas você não demonstrou nenhuma surpresa e agora, com essa conversa estranha sobre descer, subir, ficar, voltar, está claro para mim que você é daqui, é um deles! Como você conseguiu me trazer aqui e por quê?
- Você assistiu ao filme DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS?
- Por que você responde minha pergunta com outra pergunta?
- Assistiu ou não?
- Sim, assisti. Faz muito tempo. Acho que foi em 1974. Por quê?
- No filme O PLANETA DOS MACACOS os símios dominaram a terra, escravizaram os humanos e os tratavam como animais. Na sequência, DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS, os símios vivem na superfície, mas descobrem que há uma pequena população remanescente de humanos super inteligentes, que vivem debaixo da terra, e desenvolveram poderes psíquicos que aterrorizam os macacos. Eles controlam tudo e todos só com a mente.
- Já entendi. Você está querendo dizer que tudo isso não passa de um sonho. Que eu o criei a partir de imagens de um filme que ficaram retidas no meu inconsciente. É simples assim?
- E por quê não?
- E você, onde você entra nessa história?
- Você assistiu ao filme A ORIGEM? Este é bem recente, de 2010.
- Sim, assisti, e daí?
- Daí que uma pessoa pode fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas. Uma pessoa, como uma arquiteta, projeta um mundo num sonho e leva com ela várias pessoas para esse mundo. Uma delas age como seu guia e se incumbe de povoar o mundo criado pela arquiteta com pessoas de seu subconsciente. Você nunca se lembra como seu sonho começou. Você só se dá conta quando já está no meio dele. É por isso que, de repente, você surgiu no meio de um grupo de turistas guiados por mim.
- Quer dizer, então, que eu sou o arquiteto que fabricou este mundo do futuro e você é meu guia que o povoou com ursos e pessoas clonadas. Como isso é possível se eu nem te conheço na vida real. Como eu poderia compartilhar um sonho com uma pessoa que eu não conheço. Afinal de contas, quem é você?
- Depende do que você quer acreditar. Que tudo isso é um sonho ou que tudo isso é real. O elevador parou. Chegamos à superfície. Vamos descer e não nos veremos mais. Será como acordar de um sonho, nada mais. Uma última informação. As duas coisas são possíveis: fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas e conhecer o futuro só com a mente através de um sonho espontâneo, não fabricado por você, mas pelo inconsciente coletivo que é patrimônio da humanidade. Quando você voltar aqui talvez se encontre com uma híbrida. Não se preocupe, ela estará te guiando o tempo todo!
- Então, me diga: estou sonhando ou tendo uma visão do futuro?
- Você está no futuro agora! 2446!
- E que negócio é esse de me encontrar com uma híbrida?
- Eu sou um mero servidor, dando uma de guia turístico para você e todas aquelas pessoas que mergulharam no inconsciente coletivo durante o sono e vieram parar aqui. Me pediram para levar somente você lá para baixo, não me pergunte por quê, e me disseram que da próxima vez você será guiado por alguém do topo da hierarquia deste tempo. Uma híbrida! Agora, me dá licença. Há mais turistas chegando.

HUMPHREY BOGART


 Texto de autoria de Alceu Natali, com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Estávamos procurando um lugar para nos abrigar do sol escaldante, aguardar o amanhecer, e rumar bem cedo para a Rota 66, para ver Casablanca. Passamos a noite num moquiço balangando como muxiba acima de uma loja de artigos de umbanda. Não pregamos os olhos. Fizemos amor quatro vezes em pouco mais de doze horas, um recorde desde os nossos tempos de adolescentes. Nos intervalos entre as transas, fumamos muito baseado. Dizem que fumar é morrer um pouco. Nós, ao contrário, passando da meia-idade, nos sentíamos redivivos. Muitas coisas mudaram em nossas vidas desde aquele mistério no cemitério da quarta parada, quando meu celular foi enterrado junto com meu amigo e passou a fazer ligações por conta própria. De debochado e incrédulo passei a ser um homem desconfiado e medroso. Ironicamente, somente o anarquismo mental da Célia não permitiu que eu me desequilibrasse emocionalmente por completo. É impressionante e inexplicável a súbita e radical mudança de comportamento e pensamento de uma mulher que era tão ciumenta e rabugenta. Ela voltou à sua juventude com outra mentalidade, e embora se mantivesse sempre fiel a mim, gosta de dizer que é uma garota-pissu, daquelas que transam com qualquer um, como se dizia nos anos 60, veste-se como uma hippie, invariavelmente com jeans desbotados, bata indiana multicolorida, flores nos cabelos, pulseiras e colares sobrepostos, bottoms de paz e amor e pés descalços. Cantarola dia e noite ao som dos The Byrds (Mr. Tambourine Man - ela pede ao homem do pandeiro para tocar uma música para ela – também conhecido como o fornecedor de drogas), Lovin´ Spoonful (Daydream - sonha acordada o tempo todo) e The Mamas & The Papas (Creeque Alley - estamos sempre chapados e o único que não emagrece sou eu). Seu apetite sexual é insaciável e não passa um dia sequer sem puxar um fumo e beber uma meia de seda (leite condensado, licor de cacau e conhaque batidos no liquidificador). Quer ser chamada de Sally, nome de uma música do The Who (Sally Simpson), e só me chama de Ernie, outro personagem da ópera rock Tommy de 1969. Como meu nome é Bernardo, pensei que fosse me rebatizar de Ben ou Bernie, mas ela prefere os nomes descolados da década de ouro. De minha antiga mulher, só sobrou uma pitada de romantismo anacrônico que não combina com seu liberalismo atual. Ela quer rever todos os filmes com atores americanos dos anos 40 como Humphrey Bogart, Cary Grant, Katharine Hepburn, Bette Davis, Greta Garbo, Lauren Bacall e muitos outros. Foi dela a ideia de tirarmos uma semana de férias e percorrermos mais de mil quilômetros desta rota submundista e circense, que mais parece um trem fantasma, e onde, segundo ela, há um vilarejo com um cinema retrô exibindo um festival de filmes com Humphrey Bogart. Vira e mexe, ela me vem com umas tiradas em inglês. Não sei onde ela aprendeu a língua com tal fluência. Ela diz que é autodidata e disso já nem duvido mais. Ela passa muitas noites em claro. Também não sei de onde ela tira tanta energia. Ela me acordou antes da aurora, com um pacau aceso. Ela sempre divide seus bagulhos comigo. Se demoro para devolver o boró ela sempre me vem com essa: ''Don´t bogart that joint, my dear, pass it over to me''. Caímos na longa vereda, dominada pelo cerrado e salpicada de arraiais, onde assistem populações mescladas e todos os tipos de biroscas e espeluncas. Passamos por um rancho de calangos, bancas de carnes negras, aquelas que vi no Paquistão, expostas ao sol e cobertas de moscas, um posto de gasolina com uma bomba movida a manivela, feira de índios redutores de cabeça e vários puteiros e pardieiros esquisitos. Logo adiante vi uma placa com o nome Rota 999. Pensei ter pego a entrada errada. Parei no acostamento e desci para conferir. Descobri que algum idiota virou a placa de ponta cabeça e ainda acrescentou à mão um terceiro número seis. Em volta da placa havia galinhas pretas sacrificadas, velas vermelhas, pratos de farofa, charutos, pinga e outras bugigangas. Levei a pinga para a Célia. 
- Onde você arrumou esse marafo,  Ernie?
- Tirei de uma macumba.
- Cacilda, esse deve ser dos bons. Would you like a hit?
- Você não acha que é muito cedo para beber, Sally? Você está queimando fumo desde ontem à noite.
- Deixa de ser careta, Ernie! Lá não tem frango?
- Tem galinha morta, mas cheirando mal. Deve estar lá há dias.
- Afinal, estamos no caminho certo?
- Sim.
- E por que aquela placa 999?
- Coisa do demônio. Inverteram a placa, como satanás faz com crucifixos nas paredes, e ainda acrescentaram mais um seis para parecer o número da besta, o 666.
- Que é isso, Ernie? Você sempre foi ateu. Tá ficando supersticioso agora?
- Deixa pra lá, Sally.
Seguimos viagem e em poucos quilômetros o motor da lambreta começou a ratear.
- Está vendo, Sally? Isso só pode ser coisa do tinhoso porque mexi na macumba e arrumei a placa.
- Não é falta de gasolina?
- Não! O tanque está pela metade.
Menos de um quilômetro mais adiante, o motor pifou de vez. Tivemos que continuar a pé, puxando a maldita motoneta.
- Sally, você que pesquisou tanto para fazer esta viagem deve saber onde se acha uma oficina neste fim de mundo, não sabe?
- Claro que sei, Ernie! Seja otimista. Vamos curtir a natureza, queimar papel de galo e aproveitar o tempo que perdemos. Uma oficina logo aparecerá. Além disso, caminhar também faz bem para a saúde e faz parte do nosso programa.
Se eu dissesse que a Célia levava jeito para médium ninguém na família acreditaria. Cinco minutos depois de caminhada, a Célia exclamou:
- Lá esta ela!
- Aquilo é uma oficina? Você leu o que está escrito na parede?
- Se eles consertam até disco voador, arrumar uma moto deve ser a maior moleza para eles.
-Você deve estar de brincadeira, Sally. Disco voador não existe. Acho que você está abusando da erva.
- Que é isso, Ernie? Fumo e cheiro numa boa, estou feliz e tão bem como nunca estive antes de dobrar o cabo da boa esperança. Agora me diga uma coisa: se dissesse a alguém que o seu celular foi enterrado junto com o defunto e que ele começou a fazer chamadas para a casa, acha que alguém acreditaria?
- Você tem razão. Não acreditaria até acontecer comigo.
- Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay. We never know, Ernie. Accidents will happen...
- Está bem, Sally, chega de provérbios. Vou bater na porta.
A porta rangeu como nas casas mal assombradas, abriu uma fresta e dela despontou a cabeça de um anão, de boca aberta, mostrando dentes navalhados, e vociferou:
- O que vocês querem?
- Boa tarde. Aqui é uma oficina mecânica, não?
- O que você acha?
- Acho que é.
- Então por que pergunta?
- É que não tem nenhuma placa, só este aviso engraçado sobre conserto de disco voador.
- Qual é a graça? Tá rindo do quê? Tenho cara de palhaço? Acha que sou um Umpa-Lumpa e que aqui é fábrica de chocolate? Cai fora!
- Espere, por favor! Não quis ofender. Desculpe-me esta infeliz observação. Vocês consertam motos?
- Sim, mas a oficina está cheia. Volte daqui a 3 meses.
- Espere, por favor. Minha lambreta pifou e não tenho onde ficar. Por favor, dê uma olhada nela. Não deve ser nada. Não vai te tomar tempo.
- O que há com esta bosta caindo aos pedaços?
- Você pode não acreditar, mas viemos de longe até aqui, e ela estava funcionando muito bem. De repente, o motor começou a falhar até parar.
- Está bem, motoqueiro de meia-tigela. Entre pela porta da garagem do outro lado da oficina
- É por lá que entram os óvnis?
- Está querendo tirar sarro com minha cara?
- Não, de jeito nenhum. Desculpe-me mais uma vez. 
- Os discos entram por cima.
- Por cima? Como?
- Você está mesmo querendo tirar uma com minha cara? Por onde entraria?
- Meu Deus, desculpe-me de novo, perguntei só para ter certeza, e não para ofender. É claro, os discos voadores voam, já diz o nome. Eles entram pelo telhado?
- Temos uma abertura no teto da oficina só para eles.
- E o piloto alienígena, como ele é? Se parece com nós?
- Não tem ninguém dirigindo o disco voador.
- Ninguém? Como?
- Cara, você é maluco? Tem algum problema? Não lê jornal, não vê TV, não navega na internet? Nunca viu um disco voador?
- Não, não tive este privilégio. Dizem que a gente vê disco voador uma vez na vida e outra na morte
- Cara, você parece ser de outro planeta. Os discos voadores estão em toda parte. Você já ouviu falar num troço chamado controle remoto?
- Claro!
- Você nunca viu um drone, voando por aí, sem piloto, tirando fotos, jogando bombas e o escambau?
- Claro que já vi.
- Então, como você imagina que uma civilização muito mais avançada que a nossa manobra suas naves? Você acha que eles empinam os discos com linha como se fossem pipas?
- Claro que não. Diga-me uma coisa: você já viu um alienígena?
- Nunca! Ver para quê?
- Quando os discos chegam aqui como você sabe onde está o defeito?
- Quando o disco chega e aterrissa, uma luz fluorescente se acende na parte com defeito e pisca palavras tais como: Acionamento de Invisibilidade Instável.
- Em português?
- É lógico, seu idiota. Se eles estão no Brasil precisam saber português!
- Como você aprendeu a consertar discos voadores? Como você os atraiu? E, principalmente, como eles te pagam?
- Espera aí, cara. Você está fazendo perguntas demais. Tá querendo roubar meu negócio? Vamos dar uma olhada nesta sua geringonça. E preste atenção: vou fazer algo que não costumo fazer para ninguém. Vou deixar você e está palhaça entrar lá dentro e...
- Epa, manera aí, pintor de rodapé. Palhaça é tua mãe...
- Seu anão, não a leve a mal. A Sally está embriagada e não pensa muito para falar.
- Eu bem que percebi que vocês são completamente matusquelas e chapados. Leva logo esta porcaria lá atrás, e entrem logo pela porta da garagem, antes que eu mude de ideia. E você, quenga, cuidado com sua língua.
- Quenga é sua mãe, seu nanico filho da puta. Vái se ferrar!
- Qual é seu nome, cara?
- Ernie.
- Ernie, esta lacraia não entra. Só você, entendeu?
A Sally já ia soltar outro palavrão. Corri e tapei a boca dela.
- Deixe-a entrar comigo, por favor. Prometo que eu a controlo. Se ela falar mais um palavrão, você pode nos expulsar.
- Está bem. Vamos acabar com isso logo que você já tomou muito do meu tempo.
Sussurrei no ouvido da Sally:
- Sally, não fale mais nada, tá? Fique na sua. Essa gozação sobre conserto de disco voador logo perde a graça. Deixa o anão falar a bobagem que quiser. Se ele consertar nossa lambreta, está bom demais. É disso que precisamos. Agora, por favor, diga sim com a cabeça e eu tiro a mão de sua boca.
Sally meneou a cabeça para frente. Fomos até a parte de trás da oficina. A garagem estava aberta, com o anão na porta nos esperando. Entramos e ficamos petrificados, como a mulher de Ló, transformada em estátua de sal. Minha extrovertida e atirada Sally, dado a trautear, de conversar com estranhos pelos cafés, e passear à noite por ruas desertas, pendurou-se em meu braço, arregalou os olhos, congelou e emudeceu. Diante do que meus olhos esbugalhados testemunhavam, aquele sinistro celular que ligava do mundo dos mortos imediatamente desabou do alto do pedestal dos mistérios entre o céu e a terra e foi parar onde deve estar até hoje: a sete palmos. Aquele biango mixuruca por fora, menor que um barracão de canteiro de obras, tinha, por dentro, outra dimensão. Maior que dez hangares de Boeing. Completamente aturdido, vi, deitados no chão, cinco discos voadores, de formatos e diâmetros variados, entre quatro a dez metros cada um. Dois deles eram exatamente como aparecem no folclore ufológico: duas bacias emborcadas e prateadas. Um era ovalado, preto perolado. Outros dois tinham formas e cores esdrúxulas: cilíndrico e fosforescente, e triangular, de coloração indefinida, aquela que chamamos de burro quando foge. Espalhados por todos os cantos do gigantesco galpão trabalhavam ativamente, pelo menos uns vinte anões. O anão chefe pegou minha lambreta e gritou:
- Yelchin!
- Sim, chefe!
- Dê uma olhada neste trambolho e vê o que dá para fazer.
- É pra já, chefe.
Embasbacado e gaguejando fui até o anão chefe.
- Você não me disse seu nome ainda.
- Você não perguntou, imbecil. É Tuffy. O que houve com sua colombina desvairada? Ela está pálida e estática que nem uma múmia?
- É pura emoção, Tuffy. Ela é muito sensível e se comove com extrema facilidade. Por acaso você tem algo para destravá-la? 
- Tenho. Dunga!
- Sim, chefe.
- Traga um pouco daquele cacaréu que encontramos dentro do disco pretinho.
- É pra já, chefe.  
O Dunga trouxe algo parecido com uma pílula, meio esverdeada. Entregou-a ao Tuffy,  e ele me pediu para enfiá-la na goela da Sally.
- Tuffy, isto aqui não é perigoso? Você já tomou?
- Perigoso é o fumo que sua quenga puxa. Não tem erro. Já tomei. É tiro e queda.
Custei para fazer a Sally tomar aquele estranho comprimido. Assim que ela o engoliu, teve um sobressalto, como um drogado que leva uma injeção de adrenalina direto no coração para não morrer de overdose. Ela parecia não se lembrar de que esteve vários minutos paralisada. Já estava irradiante e falante novamente:
- Nossa Senhora de Marijuana! Que negócio é este?
- Estamos na oficina, Sally.
- Putzgrila! Não pode ser! Essa oficina está viajando no LSD!
- Tuffy, como você explica o tamanho aqui dentro comparado ao de fora?
- Não tenho explicação. Quando os discos começaram a chegar, o espaço aqui foi aumentando gradativamente. Isso é coisa deles.
- Chefe! Estamos prontos para testar o pratinha.
- Mande todos se prepararem, Nosey. Ernie, você e sua espantalha devem tiram os sapatos e...
- Putaquipariu, este anão continua me xingando de graça. Vai tomar na peida, seu filho da p......
- Dona boqueira, ou você se retrata, ou te dou um pé na bunda pra fora daqui. 
- Se acalme Sally, eles já estão consertando nossa lambreta. Vamos fazer o que o Tuffy nos pede, está bem?
- Se este anão me xingar mais uma vez eu que vou dar uma porrada na fuça dele.
- Tuffy, deixa pra lá, por favor. Você nos pediu para tirar os sapatos. Para quê?
- O Nosey consertou o pequeno disco prata que estava com problema no dispositivo antigravidade e agora precisa testar para ver se está funcionando. Você e sua chincheira devem calçar estes sapados magnetizados e se posicionarem em cima destas chapas de metal no chão.
A Sally já estava soltando outro palavrão. Tapei a boca dela rapidamente. O Tuffy me entregou uma corda e um cabresto e me pediu para imobilizar a Sally. Na hora, achei um exagero e até me indispus com o ele. Só depois do teste entendi que ele não estava retaliando, mas, ao contrário, livrando nossa barra. Ela esperneou e jurou com os olhos que iria esganar o anão. Ele nos ajudou a calçar os sapatos e nos colocou sobre a chapa de metal. Ficamos literalmente grudados. Não podíamos dar nenhum passo. Em seguida, o Tuffy  deu sinal ao Nosey para iniciar o teste. De repente, o disco prata começou a flutuar. O ambiente todo entrou em gravidade zero. Os outros discos, alguns carros, motos e bicicletas, assim como bancadas e móveis estavam todos ancorados ao chão com correntes. Somente algumas ferramentas estavam soltas e flutuando. Eu e a Sally estávamos atônitos ao ver tudo aquilo acontecendo diante de nossos olhos. O que havia de mais inimaginável ainda estava por acontecer. O Tuffy, calçando um sapato de metal super pesado o suficiente para mantê-lo preso ao chão, veio até nós, desamarrou a Sally, tirou nossos calçados, nos deu um empurrão pelas costas e gritou:
- Saiam voando, seus paus-d'allambas! 
Tuffy resolveu se divertir comigo e a Sally. Flutuamos pelo recinto, e experimentamos a incrível sensação que os astronautas têm no espaço sem gravidade. Voávamos para lá e para cá como pássaros. A Sally parecia uma criança. Dava cambalhotas, piruetas, ria sem parar, de tanta alegria. Ficamos à deriva uns cinco minutos. O disco de prata começou a girar em tono de si, sem um barulhinho sequer. Aliás, o silêncio no galpão era absoluto, só rompido pelas gargalhadas da Sally. Acho que é isso que dizem que os discos provocam quando estão perto de nós: o som de silêncio. O Tuffy nos pediu para descermos e ficarmos sentados no chão porque a gravidade estava prestes a voltar. O enorme teto solar se abriu e o disco saiu como um rojão, numa velocidade alucinante. As ferramentas que estavam suspensas caíram imediatamente. O Tuffy falou com um de seus funcionários:
- Brainy, recolha tudo que está espalhado pelo piso e coloque no lugar.
- É pra já, chefe!
Em seguida, Tuffy falou com o anão que consertava nossa lambreta.
- Yelchin, está porra não está pronta ainda?
- Sim, chefe, quando o pratinha começou a girar a lambreta deu partida sozinha.
- Dê uma volta lá fora e acelere ao máximo.
- É pra já, chefe.
Yelchin saiu pilotando nossa lambreta e voltou cinco minutos depois.
- Chefe, está 100%.
- Que velocidade atingiu? 
- Chegou a 200, chefe.
O Tuffy veio até nós.
- Agora vocês podem pegar esta coivara e se mandar daqui.
- Quanto foi o conserto, Tuffy.
- Nada!
- Sério?
- Sim.
- E aquela pílula alienígena?
- É de graça! Querem mais? Tem um monte aqui. Temos também uma outra amarelada que sua maluquinha vai gostar.
Desta vez, a Sally não se ofendeu. Estava comportadinha e até falou mansinha com o Tuffy.
- Que efeito provoca?
- Tome apenas uma e você se sentirá mais poderosa do que a mulher maravilha tendo um orgasmo.
- Como você sabe disso?
- Eu já experimentei uma.
- Toma sempre?
- Não. Evito isso.
- Por quê?
- A gente sai fora da realidade e entra no mundo deles. 
- Como você sabe disso se nunca viu um deles? São estas pílulas que dão poderes a eles?
- Não. Eles não precisam destas pílulas. Acho que eles as usam para testar em nós.
Entrei na conversa.
- Tuffy, como já disse, não quero roubar seu negócio. Só quero que você me responda uma coisa: se eles são assim tão adiantados, por que eles não são capazes de consertar seus discos sozinhos?
- Eles não precisam de nós. Acho que o que eles fazem com nossa oficina deve ser parte da agenda deles aqui na terra. Uma experiência. Eu nunca vi um deles, mas sinto que eles estão sempre por perto, observando nossas reações.
Depois dessa revelação, chamei a Sally para ir embora. A Sally pediu as pílulas amarelas ao Tuffy. Ele nos deu uma caixa com mais de 500 e nos advertiu para não abusarmos delas.
- Tuffy, você sabe onde fica o vilarejo onde há um festival de filmes de Humphrey Bogart?
- Está a uns 100 km daqui.
Tratei de ir embora. Disse a Sally que deveríamos nos apressar para chegar antes do anoitecer. Agradeci o Tuffy pela sua gentileza. A Sally fez o mesmo, desta vez bem boazinha e educadinha. O Tuffy parou de provocar a Sally e pediu a ela para ter cuidado. Pegamos a Rota 66 em direção ao vilarejo. A lambreta estava com um desempenho extraordinário. 200km por hora! Incrível! De repente, a Sally voltou a me chamar pelo meu nome.
- Bernardo, sabe de uma coisa, ao invés de ir ao vilarejo hoje, eu gostaria de voltar àquele motel e deixar para ver Casablanca amanhã. 
- Aconteceu alguma coisa, Célia?
- Não, Bernardo. Está tudo bem. É que tivemos um dia inusitado. Toda aquela loucura dentro da oficina me deixou muito mais agitada do que a maconha. Eu quero descansar um pouco, dar um tempo para digerir toda aquela estranheza e doideira que vivenciamos naquela oficina comandada por anões. E mais ainda, consertando discos voadores que sempre pensei que eram pura lorota de gente que não tem o que fazer.
- Está bem, Célia, vamos voltar. Aquele pulgueiro não está longe daqui e com nossa motoca agora viajando nesta velocidade espantosa, chegaremos logo.
Passamos pela oficina, chegamos ao motel. Tomamos um banho e fomos para a cama.
- Bernardo, liga a TV!
- Será que pega algum canal aqui, neste lugar tão desolado. E esta porcaria de TV de tubo, sem controle remoto. Será que funciona? Puta merda, foi só eu falar e ela ligou sozinha.
- Olha só, Bernardo, está passando Jeannie é um gênio. Eu gostava muito desta série.
- Eu prefiro mais filmes dos tempos atuais e futuristas.
- Vou experimentar uma daquelas pílulas amarelas.
- Cuidado, Célia.
- Cacete! Que sensação agradável. É impressionante. Mal bateu no meu estômago e parece que estou viajando. Me sinto uma deusa. Capaz de fazer o que eu quero. Estou, finalmente, realizada na vida com esta droga dos anões. Para completar, só falta ver aquele festival do Hamphrey.
Assim que a Sally proferiu estas palavras, a programação da TV foi interrompida e, em seguida, anunciou um festival de filmes de Hamphrey Bogart, começando por Casablanca. A Célia voltou a ser a Sally.
- Puta merda, Ernie. Foi só pensar no Hamphrey e olha só!
A Célia, ou melhor, a Sally acendeu um baseado e o dividiu comigo. Passamos dois dias deitados na cama, sem dormir, e assistimos a trinta e sete filmes do Bogart, um atrás do outro, até que a Sally, finalmente, caiu no sono. Quer saber de uma coisa, pensei, vou experimentar uma destas amarelinhas. Assim que ela bateu no meu quengo a TV anunciou um antigo filme de 2057, com atores que nunca vi na minha vida. O nome do filme era A OFICINA MÁGICA.