Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)
Certos acontecimentos e até mesmo certas pessoas são
inexplicáveis. Pacífico oscilava entre os opostos da fama de malandro, se visto
apenas de fora, e da ternura de um conciliador, se fosse possível penetrar no
seu íntimo. Ele argumentou com os milicos de maneira bem convincente e livrou a
barra de todos. Ele era da turma da rua de baixo, rival da turma da rua de cima
de Tilly, mas ele costumava fazer diplomáticas incursões pelos territórios
inimigos e acabava conquistando a simpatia de todos. Durante um curto período de
tempo e sem nenhum motivo aparente, ele passou a frequentar a rua de Tilly com
quem teve uma enorme empatia. Ele não jogava bola, mas por causa de Tilly
promoveu um torneio entre várias turmas, muito mais pelo desejo de uma
confraternização entre vizinhanças rivais, especialmente entre a sua, a do
Córrego do Macaco, e a de Tilly, a do Messias Trombeteiro. Pacífico morreu de
forma estúpida, de complicações pulmonares depois de ter levado dois tiros no
peito só porque, de brincadeira, ele chamou de cheirosinho um sujeito conhecido
por continuar fedendo como carniça mesmo depois de tomar
banho. Pacífico era pobre de espírito e universal e, ao saber de sua morte,
Tilly se arrependeu pela segunda vez e profundamente, por não ter lhe retribuído
em vida tanta consideração com atitudes mais solidárias. Mas, mesmo certas
atitudes são incompreensíveis, como a de Tilly ao escolher o pacato e limitado
Bombeiro, o filho do desejo, como seu confidente e conselheiro para seu primeiro
ato sexual com preservativo. Bombeiro também morreu de forma brutal, com um tiro
na nuca disparado pelo passageiro no banco de trás de seu táxi.
A morte foi muito
precipitada com Pacífico e Bombeiro e nem sempre ela é assim. Nem sempre ela vem
para ceifar vidas. Muitas vezes ela aparece apenas para fazer uma visita, tomar
um café, bater um papo, agradecer a hospitalidade, esperar por um ‘volte sempre’
e se despedir com um ‘qualquer coisa, é só avisar’. Se Tilly soubesse disso ele
não teria saído correndo naquele dia fatídico e permaneceria calmo e parado como
ele fez na primeira hora de uma noite quando ele se encontrava abraçado com a
namorada no ponto de ônibus e viu, à distância, se aproximando pela calçada, uma
horda de desordeiros, chutando latas de lixos, escarrando, urinando nos postes,
uivando como coiotes de porre e vomitando toda sorte de palavrões para os que
iam e vinham a pé ou motorizados. Não demorou muito para aqueles vândalos do
anus da periferia chegarem até Tilly e sua namorada e prensá-los contra a parede
prenunciando um duplo estupro, mas com preliminares com requintes
cáusticos:
E aí, meu, não vai apresentar a
noivinha pra gente?
Tilly, solenemente, apresentou sua namorada ao chefe
daqueles fariseus que, jocosamente, se inclinou, beijou a mão da moça, voltou-se
para Tilly e lhe disse:
Mina joia, meu.
Tilly agradeceu e apressou-se em apresentar a si mesmo e
acrescentou que estudava no Ginásio do Prolongo e de lá viera a pé até a avenida
para pegar o ônibus de volta para casa.
Espera aí! Te conheço! Você é amigo da
turma do sei lá de quem do Prolongo! Ei, patota, esse cara é dos nossos!
Caralho, cadê a educação? Cumprimentem a noiva
dele!
Aqueles fuleiros limparam o ranho e a baba com o dorso
das mãos ensebadas, e um a um contaminaram a delicada e suave pele da eleita de
Tilly, meneando as cabeças para frente, leve e seguidamente enquanto andavam de
fasto, como se fossem súditos sem permissão para dar as costas a uma princesa
antes de deixar o palácio. E assim, despediu-se o Átila do Bairro da
Marrequinha:
Valeu, meu! Joia te encontrar e
conhecer sua noivinha! Fica frio. Aqui, lá no Prolongo e nesse pedaço todo você
está em casa! É só dar um toque. E não se esqueça da gente quando sair o
casório!
Quando a morte se depara com a pessoa errada, ela se
toca, por assim dizer, se constrange com a mancada que deu e, ao querer se
desculpar com agrados, acaba se complicando mais ainda e comete gafes como
prometer que lhe avisará com antecedência quando sua hora estiver chegando. A
pessoa errada neste caso pode ter sido a namorada de Tilly protegida pelo seu
daimon. Só isso poderia explicar o engano esdrúxulo de ser reconhecido por
alguém que Tilly nunca viu mais gordo e ainda ser associado à turma de um
sujeito cujo apelido era tão difícil de entender e de guardar quanto o de um
colega seu do mesmo Ginásio do Prolongo que disse ter sido transferido de uma
escola com um nome tão cumprido e complicado cuja única parte inteligível era
ligabuia. Volta e meia a morte é confundida com uma pessoa que na verdade a
odeia e se Tilly soubesse desses odds and sods, esses baratos afins da morte,
naquele dia lúgubre ele permaneceria parado e calmo e depois prosseguiria
tranquilamente, como fez aquele franzino cabra bom, cabras às direitas, e que,
ao atravessar a caatinga, inadvertidamente cruzou o caminho de Lampião e foi
tomado por um jagunço, um cangaceiro manso, e se viu cercado pelo bando maldito.
Mas o sujeito era mesmo cabra do colhão roxo e não se intimidou com as ameaças
de Virgulino. Não o desafiou e nem o desrespeitou, mas também não fez concessões
à sua neutralidade e desengajamento por isso foi logo condenado a morrer antes
da hora. Lampião exclamou:
Sai correndo, seu cabra da peste, e não
olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue
chegar!
Os
cangaceiros começaram a armar os gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar
lentamente, a passos curtos e pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar
qualquer gesto com a cabeça ou com os braços. Andava como se já estivesse morto
apreciando a paisagem desolada do jardim do éden do sertão nordestino e como se
algumas balas varando seu corpo não fizessem qualquer diferença. Ainda com o
condenado bem ao alcance das espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a
mão e gritou para todos:
Deixa-o ir embora! Este é cabra-macho e
vai ser cria nossa!
É
difícil precisar se Tilly era cria ou refém do medo. Ele tinha saído mais cedo
do trabalho para sacar um benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a
rampa da garagem, alcançou a rua, virou a direita e logo chegou na avenida
principal que se encontrava com o trânsito completamente parado devido à enorme
quantidade de veículos. Tilly foi se espremendo e se enfiando até entrar pela
faixa reservada para ônibus e logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando
que alguém lhe desse passagem para a pista do meio. Tilly estava comprimido
entre ônibus e o de trás começou a buzinar incessantemente. Tilly
resmungou:
Esse trânsito maluco deixa todo mundo
cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os carros
andarem.
O
trafego permanecia preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do
semiárido, mas barulhento como maritacas fazendo coro, e quando andava era
insuficiente para abrir uma brecha por onde Tilly pudesse deixar o território
dos coletivos, brutamontes impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu
cangote resolveu cravar o dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a
presença insignificante de Tilly com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do
asfalto, a voz da mata sem cor. Tilly olhou no espelho retrovisor e percebeu que
não só o motorista, mas várias pessoas com as cabeças para fora das janelas
esbravejavam alucinadamente contra ele. Tilly
desdenhou:
Esses caras são gozados. Acham que tudo
está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente deles decolando
como um helicóptero.
De
repente, várias pessoas desceram do ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em
direção de Tilly, envolveram seu carro, arrancaram-no para fora, vociferaram
contra ele e o ameaçaram em uníssono. Tilly, quase sujando as calças, não
entendeu bulhufas e tratou de se desvencilhar das agarrações, cutucões e
empurrões e saiu numa desabalada carreira avenida abaixo, largando tudo para
trás, como um doido varrido agonizando em meio a um ataque de pânico, exigindo o
máximo de suas pernas ligeiras e mantendo os braços ocupados como duas asas
recolhidas e alternando cotoveladas e socos no ar para manter o corpo em
equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos para silenciar os disparos
ardidos que esperava queimar seu corpo e para emudecer o angustiante barulho tal
qual o grito infinito da natureza de Munch e que ainda estremecia a atmosfera
desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor apressado. E não podia também
tapar os olhos para esconder o vexame, mas tampouco necessitava fazê-lo para
ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois, embora não pudesse prever se sairia
desta vivo, sabia onde queria chegar e como. Ele não corria numa mata branca
onde um projétil espoletado viaja livre e impune nas extensas planícies
interplanálticas e trespassa com facilidade as cadavéricas e deprimentes árvores
de troncos tortuosos e folhas perdidas. Tilly corria pela mata descorada feita
de altos maciços de pedra e dispostos na forma de intrincados labirintos
saturados de transeuntes em constante movimento de vaivém o que dificultava uma
perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa. Bastava Tilly fazer o
quadrilátero perfeito para voltar ao seu local de trabalho e lá chegar quase
desfalecido, desabar num sofá e ser logo acudido pelos seus companheiros
preocupados e ansiosos para saber o que aconteceu.Tilly balbuciou antes de
desmaiar:
Um bando de assassinos levou meu carro
lá na avenida e tentou me linchar.
Tilly foi levado a um hospital onde foi apenas sedado e,
no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o local do incidente e para
surpresa deles, o carro de Tilly continuava no meio da via pública, com o motor
ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois naquela hora o
engarrafamento encontrara vazão e o trânsito fluía normalmente. Um comerciante
local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a hora do incidente
e foi ele quem explicou para os companheiros de Tilly o que se
passara.
Não foi nada não. Foi um pessoal que fretou alguns
ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi assassinado e eles estavam meio de
cabeça quente e descontaram no rapaz só porque ele entrou com seu carro no meio
do cortejo fúnebre.
Talvez fosse melhor para Tilly se a dona morte se
descuidasse e o levasse, mesmo que fosse de susto, assim ele não teria que
continuar levando essa vida ordinária, popularmente chamada de cheia de altos e
baixos, com bons e maus momentos se revezando. E a morte
retrucou:
Mas, afinal de contas, todos vocês não
vivem de outra forma senão com esses intermitentes ups and downs, esses sobe e
desce, como autênticos camaleões surfando numa montanha russa e quando seus
anjos da guarda já não dão mais conta vocês jogam a culpa na minha prima
fatalidade!
Nenhum comentário:
Postar um comentário