Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)
Volta e meia a morte é
confundida com uma pessoa que na verdade a odeia e se Tilly soubesse desses odds
and sods, esses baratos afins da morte, naquele dia lúgubre ele permaneceria
parado e calmo e depois prosseguiria tranquilamente, como fez aquele franzino
cabra bom, cabras às direitas, e que, ao atravessar a caatinga, inadvertidamente
cruzou o caminho de Lampião e foi tomado por um jagunço, um cangaceiro manso, e
se viu cercado pelo bando maldito. Mas o sujeito era mesmo cabra do colhão roxo
e não se intimidou com as ameaças de Virgulino. Não o desafiou e nem o
desrespeitou, mas também não fez concessões à sua neutralidade e desengajamento
por isso foi logo condenado a morrer antes da hora.
Sai correndo, seu cabra da
peste, e não olha pra trás. Vamos ver até onde você consegue chegar,
exclamou Lampião.
Os cangaceiros começaram a
armar os gatilhos e o sujeito miúdo se pôs a caminhar lentamente, a passos
curtos e pernas atracadas, sem hesitar e sem esboçar qualquer gesto com a cabeça
ou com os braços. Andava como se já estivesse morto apreciando a paisagem
desolada do jardim do éden do sertão nordestino e como se algumas balas varando
seu corpo não fizessem qualquer diferença. Ainda com o condenado bem ao alcance
das espingardas, Lampião, meio escabreado, levantou a mão e gritou para
todos:
Deixa-o ir embora! Este é
cabra-macho e vai ser cria nossa!
É difícil precisar se Tilly era
cria ou refém do medo. Ele tinha saído mais cedo do trabalho para sacar um
benefício em dinheiro. Deu partida no carro, subiu a rampa da garagem, alcançou
a rua, virou a direita e logo chegou na avenida principal que se encontrava com
o trânsito completamente parado devido à enorme quantidade de veículos. Tilly
foi se espremendo e se enfiando até entrar pela faixa reservada para ônibus e
logo deu o sinal de seta para a esquerda esperando que alguém lhe desse passagem
para a pista do meio. Tilly estava comprimido entre ônibus e o de trás começou a
buzinar incessantemente.
Esse trânsito maluco deixa
todo mundo cada vez mais nervoso. Esse cara pensa que buzinando vai fazer os
carros andarem, resmungou Tilly.
O trafego permanecia
preguiçosamente estático como a vegetação arbustiva do semiárido, mas barulhento
como maritacas fazendo coro, e quando andava era insuficiente para abrir uma
brecha por onde Tilly pudesse deixar o território dos coletivos, brutamontes
impacientes. E para piorar, aquele que fungava no seu cangote resolveu cravar o
dedo na buzina e espalhar por toda redondeza a presença insignificante de Tilly
com um ruído espalhafatoso, feito um cancão do asfalto, a voz da mata sem cor.
Tilly olhou no espelho retrovisor e percebeu que não só o motorista, mas várias
pessoas com as cabeças para fora das janelas esbravejavam alucinadamente contra
ele.
Esses caras são gozados.
Acham que tudo está parado por minha causa e que eu tenho que sair da frente
deles decolando como um helicóptero, desdenhou Tilly.
De repente, várias pessoas
desceram do ônibus ao mesmo tempo, lançaram-se em direção de Tilly, envolveram
seu carro, arrancaram-no para fora, vociferaram contra ele e o ameaçaram em
uníssono. Tilly, quase sujando as calças, não entendeu bulhufas e tratou de se
desvencilhar dos agarrões, cutucões e empurrões e saiu numa desabalada carreira
avenida abaixo, largando tudo para trás, como um doido varrido agonizando em
meio a um ataque de pânico, exigindo o máximo de suas pernas ligeiras e mantendo
os braços ocupados como duas asas recolhidas e alternando cotoveladas e socos no
ar para manter o corpo em equilíbrio, o que não lhe permitia tapar os ouvidos
para silenciar os disparos ardidos que esperava queimar seu corpo e para
emudecer o angustiante barulho tal qual o grito infinito da natureza de Munch e
que ainda estremecia a atmosfera desde o buzinaço ensurdecedor daquele condutor
apressado. E não podia também tapar os olhos para esconder o vexame, mas
tampouco necessitava fazê-lo para ganhar o dom de mântis de Tirésias, pois,
embora não pudesse prever se sairia desta vivo, sabia onde queria chegar e como.
Ele não corria numa mata branca onde um projétil espoletado viaja livre e impune
nas extensas planícies interplanálticas e trespassa com facilidade as
cadavéricas e deprimentes árvores de troncos tortuosos e folhas perdidas. Tilly
corria pela mata descorada feita de altos maciços de pedra e dispostos na forma
de intrincados labirintos saturados de transeuntes em constante movimento de
vaivém o que dificultava uma perseguição corpo a corpo e um tiro a queima-roupa.
Bastava Tilly fazer o quadrilátero perfeito para voltar ao seu local de trabalho
e lá chegar quase desfalecido, desabar num sofá e ser logo acudido pelos seus
companheiros preocupados e ansiosos para saber o que aconteceu.
Um bando de assassinos
levou meu carro lá na avenida e tentou me linchar, balbuciou Tilly antes de
desmaiar.
Tilly foi levado a um hospital
onde foi apenas sedado e, no mesmo dia, recebeu alta. Seus colegas foram até o
local do incidente e para surpresa deles, o carro de Tilly continuava no meio da
via pública, com o motor ligado e portas abertas, sem estorvar ninguém, pois
naquela hora o engarrafamento encontrara vazão e o transito fluía normalmente.
Um comerciante local ainda permanecia na calçada observando o veículo desde a
hora do incidente e foi ele quem explicou para os companheiros de Tilly o que se
passara.
Não foi nada não. Foi um
pessoal que fretou alguns ônibus para ir ao enterro de um amigo que foi
assassinado e eles estavam meio de cabeça quente e descontaram no rapaz só
porque ele entrou com seu carro no meio do cortejo fúnebre.
Talvez fosse melhor para Tilly
se a dona morte se descuidasse e o levasse, mesmo que fosse de susto, assim ele
não teria que continuar levando essa vida ordinária, popularmente chamada de
cheia de altos e baixos, com bons e maus momentos se revezando.
Mas, afinal de contas,
todos vocês não vivem de outra forma senão com esses intermitentes ups and
downs, esses sobe-e-desce, como autênticos camaleões surfando numa montanha
russa e quando seus anjos da guarda já não dão mais conta vocês jogam a culpa na
minha prima fatalidade, retrucou a morte.
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