MONSTRUOSIDADES
TEXTO ESCRITO EM JULHO DE 2019
TEXTO ESCRITO EM JULHO DE 2019
Minha oncologista é comedida e não oscila entre extremos, não obstante sua propensão leibniziana de maximizar o bem e minimizar o mal – Nietzsche transcendeu a razão dos dois. Tão competente profissional como ela é, tachá-la de contemporizadora e otimista é leiguice. Ela não merece minha desconfiança de que ainda estou em guerra com meu câncer. Diga-se, a propósito, que ela rejeita as palavras 'meu câncer', e aceita melhor um carcinoma que passou pela minha vida, precisamente como asseverou uma leitora de tarô na Maifest no Brooklin em Maio. Já ouvi alguém me dizer que a única guerra é da vida contra a morte e aqui a ponderação e a precaução não são mutuamente excludentes. No último sábado, fiz mais uma tomografia que deve computadorizar a estratégia do nódulo no meu pulmão, se é que ele tem alguma. Torço para que ele seja apenas um velho e aposentado carrapato, acomodado e enjoado de sangue. O VAR medicinal, não hesitante e meio cego como o do futebol, me pediu 20 dias para checar se é penalidade máxima ou simulação de meu adversário. Espera pungente! É isso que sempre sinto com lancinante estertor na obra de tão curto tempo sem-fim. 'Valar morghulis', sentencia Melisandre, uma de minhas convidadas para esta preguiçosa prosa lafarguiana avessa aos costumes hodiernos. Isso todos nós já sabemos, feiticeira! Estaria, então, a senhora escatologiando a chegada de minha hora? 'Valar dohaeris', retruca o Verme Cinzento, acompanhante de Melisandre. Ele deve ter pressentido desrespeito na minha arguição. Todo homem deve servir e morrer! Kuriac, que tem me acompanhado na sua prisão domiciliar com a chave da tornozeleira, sente cheiro de hostilidade neste aranzel de lugares-incomuns, e para ele certos inimigos não devem apenas serem vencidos e conhecerem o rigor da mandaçaia: 'devem ser abatidos, exterminados!' Numa guerra como essa que travo, Kuriac não faz prisioneiros: 'a clemência e a magnanimidade são admissão de impotência'. Melisandre, fazendo ouvidos moucos a estes cogitos que contrariam a emergência de antigas civilizações escravagistas como Grécia e Roma, mostra-se mais aliada do que apocalíptica, e ora por todos nós ao seu Senhor da Luz nestes dias sombrios: 'Āeksios Ōño, aōhos ōñoso īlōn jehikās! Āeksios Ōño, īlōn mīsās! Kesrio syt bantis zōbrie issa se ossȳngnoti lēdys!' Será que Kuriac leu o livro Escravidão Antiga E Ideologia Moderna de Moses I. Finley? Provavelmente não. Kuriac planeja empreender uma odisseia nas redes de poder que abrange desde a base de operações de Portugal em Macau até a grande recessão de 2008/9. As resenhas que li do livro The Square and The Tower, de Niall Fergunson, no New York Times e no The Wall Street Journal sancionam minha admiração por Kuriac, pelo seu bom gosto e sua glutonaria intelectual. Uma viagem pela antiguidade até nossos dias através da leitura é não apenas prazerosa, mas obrigatória também. Quem não conhece a história da humanidade não conhece o mundo onde vive. Adotei este provérbio depois de ler Mankind And Mother Earth, de Arnold Toynbee, e que agora terá a companhia desta ótima recomendação de Kuriac, disponível em português com a tradução correta: A Praça E A Torre. Enquanto aguarda esta obra que, entre outros temas, versa até sobre os misteriosos Iluminatti, creio que Kuriac está fazendo a digestão de um livro de Max Stirner, um filósofo alemão anarquista, individualista, contemporâneo e amigo de Engels e, no momento que escrevo, recebo de Kuriac uma citação do desordeiro: 'A escrita só será livre quando for a minha escrita, uma escrita que não seja ditada por nenhum poder ou autoridade, por nenhuma crença ou temor.' Somos dois, Ergo! Alias, três! E sobre o amigo de Stirner, Kuriac me oferece um embolote literário: 'Veja o que é jogar de volante no meio campo da filosofia política, antes de Mao.' Ele está se referindo ao livro Joseph Goebbels - Uma Biografia, de Peter Longerich, logo após ter lido Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang, autora de Os Cisnes Selvagens, e pouco depois ele arremata: 'acabei de ler Stálin – Nova Biografia De Um Ditador, de Oleg V. Khlevniuk.' Caramba, enquanto Kuriac lê livros de grosso calibre, que alguns de nossos críticos e jornalistas obsoletos e ufanistas poderiam chamar de monstruosidades, desde minha segunda cirurgia em Setembro, continuo lendo amenidades. Além das peças já citadas no texto O RISCO DA FÊNIX, reli clássicos do romanceiro universitário: as peças Our Town, The Skin Of Our Teeth e The Matchmaker, de Throrton Wilder, e alguns romances, The Go-Between, de L. P. Hartley, Women in Love, de D. H. Lawrence, To Kill A Mocking Bird, de Harper Lee, e outros. Parafraseando meu xará, Alceu Amoroso Lima, minhas uótizapações com Kuriac sobe a centenas de palavras por semana, e já conheço menos minhas limitações do calor de imaginação que me anima como aprendiz de escritor que Kuriac a profusão de seus conhecimentos políticos, filosóficos e históricos. Por isso, creio, Kuriac jamais leria algumas de minhas ficções. Mas, certamente, leu os curriculares do tipo A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água na juventude. E depois de 50 anos? Estava José Saramago correto ao escrever: 'as graves leituras da adultidade, chegando a uma certa altura da vida já todos (nós), mais ou menos, lemos as mesmas coisas.' Acho que não. Anyway, convenho, Kuriac é modesto, não se considera inteligente, mas é, e se define como um leitor voraz, um grande metido, a jurista, a filósofo e a corredor de esteiras. Tenho certeza que se, por razões quiméricas, caísse-lhe às mãos e ele volvesse as primeiras folhas de qualquer escrito de Virgínia Woolf ele seria bem mais condescendente do que o Ted do filme Lembranças De Um Verão, e que diz a uma criança que ganhou um cartão de biblioteca da mãe: 'Dê ao autor uma hora para fisgá-lo, se não o fizer, procure outro.' Contrariando o personagem paranormal, Kuriac diz: 'não tenho qualquer restrição a leitura, entretanto isso não implica em que aceite tudo que leio, assim como não desisto de qualquer obra por qualquer motivo, dou ao autor o direito de lê-lo até o final, mesmo que não concorde com nada, como aconteceu, por exemplo, com Reflexões sobre a revolução francesa do filósofo Edmund Burkle! O conteúdo não conjuminava com meus entendimentos, mas a forma, a escrita era maravilhosa! O principal é respeitar o autor, o que não explica o assentimento do conteúdo. O fato de eu ser ateu me afasta de um filósofo como Immanuel Kant devido à sua religiosidade, e ao seu imperativo categórico, que no meu entender obsta a perquirição tão fundamental à evolução da mente humana.' Melisandre, de olhos flamejantes, rumoreja algo ao pé do ouvido do Verme Cinzento. Ela é uma carocha premonitória e já fez coisas ruins, mas, ultimamente, prometendo se aposentar da vida em breve, ela se presta a ajudar qualquer abominável, até aquele que quer apressar sua morte. Mal bem falei de Kuriac, e ele entorna o caldo, citando mais uma de Max Stirner: 'Para mim, ninguém é pessoa a respeitar, nem mesmo o meu semelhante, é apenas, como outros seres, um objeto pelo qual tenho, ou não, simpatia, um objeto mais ou menos interessante, um sujeito mais ou menos utilizável.' No entanto, Melisandre faz ouvidos de mercador à ojeriza e à execração do homem como objeto a ser explorado. Ela enxerga em Kuriac uma alma revolta, precisando de prece e silêncio para ser conduzida longe da escuridão. E roga ao seu Mestre para iluminá-lo: 'Zyhys oñoso jehikagon Aeksiot epi, se gis hen syndrorro jemagon.' Kuriac entendeu o que Melisandre disse em sua língua. Ele parece ter percepção extra-sensorial. 'Concordo com você “verbo ad verbum” tenho uma extrassensorialidade desenvolvida, não no sentido de transcendência, mas no sentido de junção dos sentidos num acontecimento futuro breve, esse é o meu grande diferencial,' e, em seguida, ele desafia Melisandre: 'Não me limito a um sentimento para com os humanos, contudo dou livre curso a todos aqueles que sou capaz, dentre eles o amor, tanto quanto ao ódio em igualdade de intensidade necessária.' Melisandre lamenta que o amor equiparado ao ódio resulte em ódio. É matemático: dois positivos são iguais a um positivo, porque eles se unem; dois negativos são iguais a um positivo porque os dois se anulam, mas um positivo e um negativo são sempre iguais a um negativo porque o mal predomina e o bem é apenas a ausência temporária do mal. Essa equiparação equivale a dizer que uma única luz foi extinta no umbral. Melisandre vai, mais uma vez, recorrer ao seu mestre, implorar a ele para que libere sua chama e acenda uma vela que foi apagada: 'Zyhys perzys stepagon Aeksio Oño jorepi, se morghultas lys qelitsos sikagon.' Kuriac, com sua mediunidade, termo com o qual ele não concorda, deve ter sacado o idioma valariano e pensado na paradoxalidade e hilaridade de uma bruxa devota, como uma cristã. Melisandre tem lá suas crendices, como todos seres humanos, bruxos ou não, mas ela não é cristã. Mas para Kuriac tudo não passa de crenças no sobrenatural por meio de doutrinas e rituais que envolvem preceitos dogmáticos e levam à fé e à beatitude cegas. Ele desce a lenha sobre todo tipo de religião: 'Ela é um veneno. A maior maldição da humanidade, criada por homens poderosos para doutrinar e escravizar os fracos e humildes, transformando-os num bando de muares cabisbaixos, espírito cativos e doentios, manipuláveis em sua essência ignara, com ameaças perenes da expiação tormentosa, para aplacar a cólera do onipotente fictício.' Concordo com Kuriac em gênero, número e caso, mais particularmente em relação ao cristianismo, a religião dominante que causou um atraso de mais de mil anos no avanço da produção do conhecimento e da tecnologia da humanidade, além das atrocidades e monstruosidades - as torturas e as fogueiras da Santa Inquisição. O que estaremos fazendo daqui a mil anos? No mínimo já teremos colonizado a lua, Marte, Titan, Europa, Encélados e, muito provavelmente, descoberto a viagem no tempo e começando a empreender odisseias interestelares. Tudo isso poderia já estar acontecendo em nossos dias não fosse o aprisionamento do saber imposto pelo cristianismo. Eu e Kuriac somos agnósticos de carteirinha remida, fazemos parte de uma seleta minoria privilegiada que sabe que a Bíblia é pura mitologia, que Deus não existe, Jesus Cristo, Paulo de Tarso e o escambau não existiram e que a famigerada moral cristã é nada mais que neoplatonismo. No meu texto PRESENTES DE AMOR E O MITO DA MULHER APANHADA EM ADULTÉRIO: trecho de palestra sobre mitologia cristã ministrada em São Paulo, procurei dar pistas sobre como os cristãos fizeram uso descarado da genialidade de Platão para inventar todas as mentiras que abundam nos 4 evangelhos canônicos aprovados (sic) no Concílio de Niceia. No quesito moralidade, parafraseio Ramalho Ortigão, atestando que não há nenhum acadêmico no mundo que possa abordar a imagem de Platão na história sem se aconselhar com Werner Jaeger e receber seu beneplácito. Eis as palavras de Jaeger em seu livro PAIDEIA – A FORMAÇÃO DO HOMEM GREGO: 'Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão ocupava o centro espiritual da Grécia e em que todos os olhares convergiam para sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo. Todos os séculos da Antiguidade que se seguiram a ele ostentam na sua fisionomia espiritual traços da filosofia platônica (por mais metamorfoseadas que estejam), até que por fim o mundo greco-romano se unifica sob a universal religião espiritual do neoplatonismo. A cultura antiga, que a religião cristã assimilou e a qual se uniu para entrar, fundida com ela, na Idade Média, era uma cultura inteiramente baseada no pensamento platônico.' Kuriac dispensa a opinião de um catedrático. Seu argumento é contundente. Ele leu e me recomendou o livro A Monstruosidade de Cristo, do filósofo esloveno Slavoj Zizek, que denomina Jesus como o sofista crucificado, e acrescenta: 'O evangelho cristão é escrita inventada e manipulada, submetida a tantas alegorias que vai para o valão comum da mitologia, da crendice popular. A religião é o maior golpe de estelionato da humanidade, no sentido de entorpecimento mental, e o ópio do povo em sentido lato.' Eu não posso deixar de retribuir o presente de Kuriac, Slavoj Zizek, recomendando-lhe a leitura de um livro que adquiri em Londres há 30 anos,intitulado Jesus and The Politics Of His Days, de Ernst Bammel e C.F.D. Moule, uma coletânea de ensaios escritos por diversos autores. Uma dissertação de E. Bammel, com o sugestivo título Jesus As A Political Agent In A Version Of The Josippon, retrata o Nazareno sofista como um agente secreto, infiltrado na Palestina, a serviço dos romanos. Uma monstruosidade sobre outra! Kuriac é de veneta. Costuma fazer constantes e bruscas mudanças de pato para ganso. De repente, ele me envia um cogito com o nome A Monstruosidade da Parrésia: A Putrefação Em Vida, assim descrita por ele: 'Tinha o semblante e a aura de um anjo, todavia comportava-se como uma vagabunda decaída, sem o menor amor próprio, despudorada, sem qualquer resquício de respeito por si, inescrupulosa por convicção, rasteira por luxuria, desclassificada por optação, de alma lúgrebe e doentia; a personificação da humilhação de caráter, ou plena ausência deste, a escória da chandala da fêmeas, navegante de um mar de chorume.' De quem você está falando Kuriac? De uma pobre criatura que vem tentando extorquir um jogador de futebol? Ele me diz que ela é uma puta, uma upgrade de outra que não teve a mesma sorte de chantagear um cara inocente e de boa índole, e virou ração de cachorro! Até a sinistra Melisandre se escadaliza. Quanta monstruosidade! 'Hen syndrorro, oños. Hen ñuqir, perzys. Hen morghot, glaeson.' Da escuridão, a luz. Das cinzas, o fogo. Da morte, a vida. E Kuriac completa: Da monstruosidade ao direito à preguiça, ao egoísmo e ao desprezo. Há monstruosidades no mundo, mas não concordo com tudo que Kuriac diz: não sou egoísta, nem preguiçoso, nem do tipo que despreza o ser humano. Aliás, na situação em que me encontro, minha humildade já assumiu, mesmo que tardiamente, o controle de tudo.
Reflexões de Vida, o autor trás um pouco desse envoltório da metafísica sem antes COLOCAR- se no meio da causa efeito onde a leitura é prazerosa mesmo rebatendo um Câncer. É texto informativo e ao MESMO TEMPO COMÉDIA ENTRE citações de colegas de filosofias de Vida semelhantes ENTRE pensadores atuais de genealógica perspicaz. ESTAMOS sem intelectuais nas MÍDIAS, há um.hiato que precisamos resgatar o escritor de jornais e REVISTAS, claro ALÉM de LIVROS. Ê uma leitura cativante gostoso vistoso de LER. LEGAL! VOCÊ SINHÔ Natali escreve MUITO bem!
ResponderExcluirCaro Ormontowne Road, você está a mais de um século à nossa frente. Tendo nos agraciado com esta obra espetacular, você não precisa escrever maia nada na vida. Morra em paz!
ResponderExcluirCaro genioso escritor, o que você faz aqui, sem cobrar nada, posso chamar de presente de amor! Um beijo de sua fã incondicional!
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