Texto de autoria de Alceu Natali com
direito autoral protegido pela Lei 9610/98
O que é que o senhor está dizendo, moço? Onde já se viu um seguidor e mártir do Nosso Senhor ser chamado de bicha! O senhor está ofendendo a mim e a Deus, sabia? Onde é que o senhor está com a cabeça?
Nada surpreendia Onedin, mas esta inesperada observação da Sra. Mystique exigiu dele alguns segundos extras de reflexão. Os olhos múlti direcionais de Onedin percorreram rapidamente a sala à procura de algum livro sobre a Grécia clássica, mas nada encontraram. Onedin pensa: Esta mulher não pode ser uma espírita enrustida senão ela era teria dito que Platão foi um precursor e não um seguidor ou um mártir do Mestre. Será que ela é uma daquelas católicas pseudólogas inconscientes a ponto de confundir Santo Antão com Platão? Seria bem mais simples e até útil se Onedin usasse um pouco de sua memória críptica e explicasse à Sra. Mystique que talvez ela estivesse se referindo àquele santo que iniciou o movimento dos anacoretas e que séculos depois foi fonte de inspiração para os mosteiros Beneditinos. Mas, ao invés disso, Onedin preferiu justificar uma implausível homossexualidade de Platão dentro do contexto desavisado da Sra. Mystique. Onedin não se importava se alguém confundisse as pessoas. O que ele não admitia era alguém duvidar e ainda se ofender com suas afirmações.
Perdão, minha senhora, jamais passou pela minha cabeça a ideia de denegrir a imagem do nosso venerável São Platão, o candidato a apóstolo. Eu explico para a senhora. O Mestre tinha um grupo de amigos mais íntimos chamados os 12 apóstolos, e tinha também um grupo de seguidores menos chegados, mas fieis, chamados os 12 suplentes e...
...Espera um pouco. Eu nunca ouvi falar nestes 12 suplentes! E o que eles têm a ver com o fato de Platão ser bicha?
Tem tudo a ver. Eu te explico. Os 12 suplentes eram seguidores devotos que aspiravam entrar no grupo dos 12 Apóstolos para poder desfrutar da divina companhia do Mestre e de suas parábolas do arco da velha, mas eles não ganhavam o suficiente para chegar a tal posto. Eles não ganhavam como os suplentes da nossa câmara que para substituir os titulares em férias faturam em apenas um mês uma grana que a senhora levaria uns vinte anos para juntar. Para entrar no círculo de amizades do Mestre era preciso ter cacife, mas, com exceção de São Platão que abriu mão de seus escravos e de sua vida aristocrática em Atenas para ser apenas um carregador de tirso em meio às poucas bacantes na Galileia, esses suplentes eram todos uns pés rapados!
Ah essa não! Isso já é demais! Desde quando o Nosso Senhor cobrava pela sua amizade? O senhor já está passando dos limites!
De forma nenhuma! Isso era coisa do Judas. Ou a senhora já se esqueceu que ele era o tesoureiro do grupo e um grande trambiqueiro?
Mas o Nosso Senhor jamais teria permitido que Judas ludibriasse seus companheiros!
Claro que não! Mas ele não tinha conhecimento das falcatruas de Judas, tanto é que até ele foi vítima daquele salafrário e acabou sendo traído por ele e foi vendido aos Romanos por trinta paus, lembra-se?
É mesmo!
A bem da lógica, era a Sra. Mystique quem precisava de um tempo extra para refletir sobre todas essas asneiras de Onedin. Uma pessoa normal esperava que a Sra. Mystique encerrasse a conversa e colocasse Onedin para fora de sua casa. Mas aquilo que os humanos chamam de normal é muito mais relativo do que o tempo.
Mas, me diga uma coisa. Como o senhor sabe que o Platão era veado?
Bem, como eu lhe disse, Platão era um dos 12 suplementes e, juntamente com os 12 apóstolos, um dos 24 seguidores do Mestre. Como ele era o último da fila na ordem de preferência do Mestre, era chamado de 24.
Ah, não! Isso já é demais! 24, o veado no jogo do bicho? Moço, o Senhor já está querendo me fazer rir com coisa séria. Como é que poderia existir jogo do bicho naquela época?
Oras bolas, a senhora não sabe?
Não sei o quê?
Que os contraventores do jogo do bicho se inspiraram no sistema hierárquico dos 12 apóstolos e dos 12 suplentes baseado em números e nomes de animais!
Não diga!
Digo sim! Eu conheço tudo sobre o significado de toda essa bicharada.
Agora, o senhor me deixou curiosa. Fala-me aí, quem era quem nesta hierarquia.
Eu bem que gostaria Sra. Mystique, mas tenho outro compromisso. Teremos que deixar isso para outro dia.
Agora, Onedin queria se livrar da pessoa quem ele pensou ser sua melhor pista para desvendar o misterioso crime passional, mas mal sabia ele que ela seria a peça chave do quebra-cabeça legado por Tilly. Se ele se libertasse dela e voltasse a encontrá-la, e ele voltaria a se encontrar com ela mais vezes até dar uma explicação sobre todos os animais de sua perigosa improvisação, ele não teria dificuldades para aceitar a irrogação da pecha de embusteiro com esta história do jogo do bicho em tempos longínquos com a mesma cordialidade que Murphy aceitou a de pessimista, pois seu otimismo congênito destituiu-o da noção de defeito e lisonjeio, mas ele estaria preparado para dar uma explicação convincente e mais absurda do que esta história, pois cedo ou tarde, rezam os ditames do juízo humano, a senhora Mystique cairia em si ou alguém faria isso por ela, e sua razão seria naturalmente restituída à normalidade. Porém, a Sra. Mystique não era daquelas pessoas que gostam de mágicas, aquelas que sabem que tudo não passa de um truque, mas que sentem um enorme prazer em serem enganadas. A senhora Mystique não nasceu e nem se tornou doida. Como a maioria das pessoas, ela precisava ser alienada, pois só assim é possível continuar vivendo. Onedin não precisou se esmerar para esquivar-se dela, afinal ela não era tão matreira como o coisa à toa, e seu hálito enxofrado se amalgamava com o cheiro de mofo do ambiente e formava uma rara atmosfera catinguenta, mas exorcizante.
Ah, vamos lá, moço, o senhor é um verdadeiro artista de cidade grande. Me dá uma canja, vai. Fale-me só alguns nomezinhos.
Está bem, mas só alguns nomes porque já estou atrasado. O número 1 era Pedro, o avestruz, aquela rocha sobre a qual o Mestre disse que iria edificar sua igreja.
Mas por quê avestruz?
Porque ele era covarde. Ele negou o Mestre três vezes. Agiu como uma avestruz que enterra a cabeça na areia para não enfrentar o perigo e a adversidade. A senhora lembra daquela letra do Paul que diz: 'Me used to be angry young man, Me hiding me head in the sand'? É a mesma coisa.
Nossa que interessante! Não entendo inglês, mas acho que agora estou começando a ligar as coisas. Posso dar um palpite?
Claro!
Eu já sei quem é o número 2, a águia. É João!
A senhora sabe que eu também sempre pensei que João fosse a águia até o dia que eu estudei este código secreto do entourage do Mestre e descobri que, na verdade, João é o 7, o carneiro.
Essa eu não entendi. E aquilo que a gente aprendeu no catecismo sobre os quatro evangelistas serem representados por animais, Marcos, o leão, Mateus, a fera com rosto de homem, Lucas, o touro e João, a águia?
São apenas interpretações artísticas da igreja tardia. Não tem nada a ver com o código secreto dos apóstolos.
Mas, então, fizeram estas representações com base em quê?
Foi com base nos próprios evangelhos. Dizem o seguinte: João é a águia porque sua narrativa começa no céu, com o verbo eterno que desce à terra e se faz carne. Marcos começa falando de João Batista, uma voz que clama no deserto como um leão que urra. Lucas é um boi porque este é um animal de sacrifício no templo e a narrativa sobre a pregação de Jesus de Lucas começa no templo. Mateus é, na verdade, apenas um ser humano e sua narrativa começa com a genealogia humana de Jesus.
Puxa vida, o senhor sabe tanta coisa! Também não é para menos. Um jornalista do Legislado Baixo! Aqui no Vale e ainda na minha casa, me entrevistando! Sinto-me lisonjeada com sua presença e deslumbrada com tanto conhecimento que estou adquirindo com o senhor.
Imagina. Eu que não estou acostumado com tanto elogio assim.
Muito obrigada, moço. O senhor pode me dizer por quê João era o carneiro?
O evangelho diz que João era o apóstolo favorito do Mestre. Ele o amava. João foi o único apóstolo que esteve presente na crucificação, sempre junto à mãe do Mestre. E do alto da cruz o Mestre disse para sua mãe: 'Mulher, eis o teu filho!' E disse para João: 'Eis a tua mãe!' O Mestre era conhecido como o cordeiro de Deus, por isso, seu apóstolo favorito teve a honra de substituir o Mestre e passar a ser chamado por um nome correspondente: o carneiro!”
Se, por acaso, a senhora Mystique perguntasse que bicho João foi antes da crucificação, Onedin já estava com a resposta na ponta da língua.
Meu Deus, que coisa linda! Olha só, fiquei toda arrepiada.
Bem, agora preciso ir mesmo.
Por favor, só mais um nome. Eu prometo que será o último hoje, tá bom?
Está bem, só mais um.
Quem era o número três, o burro?
Eu acho que a senhora vai ficar tão surpresa quanto eu quando fiquei sabendo. Era o Pedro.
O Pedro de novo? Não entendi.
Era outro apelido que ele recebeu do Mestre, porque, além de covarde, ele era meio burro, meio porra louca, se a senhora me permite. Fazia as coisas sem pensar. Há várias passagens no evangelho que atestam sua impulsividade. Naquele episódio do Mestre andando sobre as águas, Pedro pediu para ir ao encontro dele e o Mestre pediu para que ele viesse. O burro desceu do barco, achando que iria andar sobre as águas e afundou. O Mestre, sempre paciente, lhe perguntou educadamente: 'Onde está sua fé?' Mas eu acho que ele devia estar se perguntado: 'Meu pai, terias tu colocado o cérebro deste burro no lugar por onde saem as fezes'? Tem também a noite em que o Mestre foi preso. Quando o soldado se aproximou para levá-lo, Pedro se precipitou e cortou a orelha dele com uma espada, arrumou a maior confusão e o Monte das Oliveiras quase virou um banho de sangue e teve nego que precisou sair correndo pelado.
Nossa! Olha que eu já li os evangelhos várias vezes e nunca tinha prestado atenção nestes detalhes.
Até mesmo depois da ressurreição, eu acho que o Mestre tirou uma com a cara dele.
Ah, não acredito.
Bem, se a senhora leu os evangelhos tantas vezes como disse, veja o Capítulo 21 de João. Lá diz que na terceira aparição que o Mestre fez aos apóstolos após a ressurreição, eles haviam acabado de comer e o Mestre fez a Pedro a mesma pergunta três vezes: 'Você me ama mais do que os outros'? E Pedro deu ao Mestre a mesma resposta três vezes: 'Sim, Mestre. O Senhor sabe que eu te amo'. Mas, nas três vezes, o Mestre deu a mesma réplica: 'Vá dar comida aos carneiros'. Na terceira vez, Pedro ficou até meio aborrecido e disse: 'Mestre, você conhece todas as coisas. Você sabe que eu te amo'.
Virgem Maria, esta eu preciso conferir. Não é que eu duvido do senhor, por favor não se ofenda, mas preciso ler isso de novo e descobrir como eu não percebi esse tipo de gozação antes. Mas, pensando bem, será que o Nosso Senhor não estaria testando Pedro por causa daquelas três vezes que ele o negou?
Faz sentido. Talvez o Mestre quisesse apenas constatar que Pedro era covarde e burro, mas não mentiroso.
Moço, agora estou me dando conta de uma coisa. Se Pedro ocupa 2 dos 24 números do jogo, alguém vai ficar sem número. Como o senhor explica isso?
Onedin tinha explicação para tudo. Ele não só provaria que nenhum dos 24 integrantes ficaria sem número, como também elevaria a quantidade deles acima dos 24 sem aumentar a quantidade de animais.
A senhora me dá licença, mas eu tenho que ir mesmo, mas eu retorno. Eu preciso ir porque não acho justo deixar meus amigos e convivas se iludindo com a opulência da cidade grande depois de eu ter conhecido esta pequena e simplória cidade do interior que recebe estranhos em seus lares de braços abertos e ainda retribuem suas súbitas aparições com largos sorrisos em seus rostos. A senhora não perde por esperar! Este seu humilde entrevistador há de aqui regressar em breve como o melhor aprendiz da homossexualidade que esta amoreira cheia de amores mil jamais viu...
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