quinta-feira, 24 de outubro de 2024

QUESTÃO DE DINÂMICA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

O alemão Wilhelm Von Scholz (1874-1969) foi um famoso poeta, dramaturgo, autor, ator, editor, narrador, tradutor e contador de histórias. Ele disse que uma mulher tirou uma foto de sua filha de quatro anos na Floresta Negra (Alemanha). Ela mandou revelar o filme na cidade de Estrasburgo. Como a guerra mundial havia eclodido (1914), ela não pôde mais reaver o filme, e o considerou perdido. Dois anos mais tarde ela comprou um filme em Frankfurt para tirar uma foto de sua filha que nascera nesse meio tempo. Quando o filme foi revelado, verificou-se que ele havia sido usado duas vezes: a segunda imagem era a fotografia do filho, que ela tirara dois anos atrás! O antigo filme não fora revelado, e não se sabe como fora posto de novo à venda entre filmes novos. É muito estranha a maneira como um objeto perdido como este filme voltou ao seu dono. Esta história é verdadeira, mas o mesmo não se pode dizer da história da Dra. Erin Bruner. No filme, O Exorcismo de Emily Rose, baseado num fato real, ela é advogada de defesa do Padre Richard Moore, acusado de ter levado à morte Emily Rose, que sofria de surtos de esquizofrenia, psicose e epilepsia. O Padre Moore alegou que o caso dela era de possessão demoníaca, pediu-lhe para abandonar todos os medicamentos e passou a trata-la com exorcismo. O caso era muito difícil para a Dra. Erin, que o considerava praticamente perdido. A Dra. Erin andava irrequieta, noites sem dormir direito. Padre Moore disse-lhe que ela também estava sendo atacada por forças satânicas durante o julgamento. Numa tarde anterior à próxima audiência, a Dra. Erin saiu debaixo de um frio intenso para espairecer e refletir. Caminhando sobre grossa camada de neve, ela encontrou um medalhão que tinha as três letras iniciais do nome de seu dono. As iniciais eram as mesmas do nome da Dra. Erin. De tanta gente que passou por lá, tinha que ser ela, a Dra. Erin, quem deveria encontrar o medalhão, e de tantas combinações possíveis de três letras, a inscrição no medalhão tinha que ser igual às iniciais do nome da Dra. Erin. Na vida real, a história não se passou nos EUA, mas na Alemanha, e o nome da moça que morreu era Anneliese Michel. O réu não foi apenas um padre, mas dois padres, Arnold Renz e Ernst Alt, e os próprios pais de Anneliese, Anna e Josef Michel. Os quatros foram considerados culpados. A defesa judicial não foi feita por uma advogada, mas por advogados contratados pela Igreja. Nunca se ouviu falar desta historia do medalhão e as três letras, mas uma verdadeira sequencia de três números cruzou o caminho do famoso psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung. Certo dia, ao sair do metrô, ele comprou uma entrada para uma peça teatral e notou que o número da entrada era idêntico ao numero do bilhete do metrô. Naquela noite, já em casa, recebeu um telefonema e a pessoa que ligou para ele pediu-lhe para anotar o número de seu telefone que era idêntico ao numero do bilhete do metrô e da entrada para o teatro. Outra sequencia de três, não de números, mas de palavras, parece ter sido forçada no episódio da morte do inglês Edmund Berry Godfrey em 1678, fato mencionado no excelente filme de ficção chamado Magnólia. Godfrey foi um juiz de paz assassinado em circunstâncias misteriosas. Foi encontrado morto numa vala em Primrose Hill, Londres, supostamente estrangulado antes de ser empalado em sua própria espada. Houve muitas acusações entre católicos e não-católicos sobre os autores do crime até que, finalmente, culparam três pessoas comuns de terem cometido latrocínio: Robert Green, Henry Berry e Lawrence Hill. Os três foram enforcados no mesmo lugar onde Edmund foi encontrado, em Primrose Hill. Mais tarde ficou provado que os três eram inocentes e os verdadeiros assassinos nunca foram encontrados. Falou-se até mesmo que Godfrey teria cometido suicídio. O curioso, no entanto, é que o bairro de Primrose Hill passou a ser chamado por algum tempo de Greenberry Hill, para lembrar os sobrenomes dos três inocentes condenados à morte. Outros, porém, alegam que, coincidentemente, o bairro já tinha o nome de Greenberry Hill por ocasião da injusta prisão e execução daqueles três homens. Não vejo aqui nada parecido com paramnésia, uma perturbação da memória dos que foram testemunhas desses fatos. Uma verdadeira paramnésia foi vivida por Carl Jung em 1918, quando ele se ocupava do estudo do Orfismo, e em particular com o fragmento Órfico de Malalas, no qual a luz primordial é designada trinitariamente como Metis, Phanes e Ericepaeus. Jung lia sempre HERICAPAIOS ao invés do correto HERIQUEPAIOS, como está no texto. Este lapso de leitura fixou-se em Jung como paramnésia, e mais tarde ele só se lembrava deste nome como HERICAPAIOS. Trinta anos depois, Jung descobriu que o texto de Malalas traz HERIQUEPAIOS. Justamente por esta época, uma de suas pacientes, que ele não via havia quatro semanas, e que não sabia de seus estudos, teve um sonho no qual um desconhecido entregou-lhe um folha de papel no qual estava escrito um hino latino dirigido a um deus chamado ERICIPAEUS. A sonhadora foi capaz de reproduzir este hino por escrito logo que despertou. A linguagem era uma estranha mistura de latim, francês e italiano. A senhora em questão tinha conhecimentos elementares de latim, conhecia um pouco mais o italiano e falava fluentemente o francês. Ela desconhecia por completo o nome ERICIPAEUS, o que não surpreendia Jung, uma vez que ela não tinha nenhum conhecimento dos clássicos. As residências de Jung e da sonhadora distavam cerca de 90 quilômetros uma da outra, e não havia comunicação entre eles havia um mês. Estranho é que a variação do nome, isto é, o lapso de leitura, se dera justamente na vogal que Jung lera também errado, trocando o A pelo E. A única diferença é que seu inconsciente errou em outra direção, lendo I em lugar de E. É, portanto, de se supor que ela leu inconscientemente, não o erro de Jung, mas o texto no qual ocorre a transliteração latina ERICEPAEUS, e parece que só foi perturbado pelo erro de leitura de Jung. Eu costumo cometer lapsos de leitura em sonhos, não por meio de transliteração de palavras, mas por acréscimos de sílabas nas mesmas, mudando-lhes o significado original. Já sonhei com uma cidade verdadeira, cujo nome tem duas sílabas, mas no sonho eu a pronunciava com três sílabas, alterando seu sentido. Já sonhei com uma mulher cuja profissão tem um nome de duas sílabas, mas no sonho eu a chamei, por engano, por um nome de quatro sílabas, mudando a profissão da mulher. Neste caso, minha paramnésia ocorreu, simultaneamente, em duas línguas, português e inglês. Certa vez, fui alvo destes acontecimentos marcados por uma sequencia de três e, ao mesmo tempo, por paramnésia de outra pessoa. Era uma sexta-feira e eu ia para o trabalho de metrô, lendo o livro SINCRONICIDADE de Carl Jung, que eu terminei na hora do almoço. Na volta do trabalho eu estava na estação da Sé na hora do rush, esperando por um trem menos apinhado. De um deles saltaram três jovens muito bonitos, uma moça branca e dois rapazes negros. Eles se beijaram e tomaram rumos diferentes. Entrei num vagão lotado e viajei de pé. Bem na minha frente havia um lindo casal de jovens, uma moça branca e um rapaz negro. Quatro estações depois, o casal levantou-se e saiu. Eu não sentei, e dei lugar a outras pessoas que embarcaram. No mesmo banco à minha frente sentou-se outro casal de jovens bem bonitos, outra moça branca e outro rapaz negro. Cheguei em casa depois das 18 horas. Tinha que ir a uma festa naquela noite. Minha esposa disse-me que sua irmã queria falar comigo. Liguei para ela e ela contou-me que a mãe de uma amiga sua chamada Neusa lhe pedira um favor. A Neusa estava sofrendo, porque logo na meia idade seu marido resolveu troca-la por uma mulher 25 anos mais jovem, uma mulher que era amiga de sua filha e frequentava sua casa. Neusa disse que na noite de quinta para aquela sexta-feira, ela sonhou que se encontrou com Chico Xavier e perguntou a ele porque seu marido havia feito aquilo com ela. No sonho, Chico respondeu: Não há de ser nada, não, seu marido está com a espada de Dêmocles sobre sua cabeça. Ela não entendeu a mensagem e achou que eu poderia explica-la. Eu conhecia um pouco de mitologia grega e me lembrava desta frase só de nome. Não me lembrava da história e precisava pesquisar. Quando voltei da festa, levei para cama um almanaque da cultura grega, do tipo QUEM É QUEM NA GRÉCIA ANTIGA, em ordem alfabética. Fui à letra D e não encontrei DÊMOCLES. Repassei todos os nomes com a letra D e continuei não encontrando DÊMOCLES. Achei que uma delas, a Neusa ou minha cunhada, havia me passado o nome errado. Deixei para ligar no sábado para conferir o nome grego. No dia seguinte, logo cedo, tomei o café da manhã e, como de costume, abri o jornal no caderno de economia, e lá estava estampada na página principal a manchete em letras garrafais: MINISTRO DIZ QUE A ECONOMIA BRASILEIRA ESTÁ SOB A ESPADA DE DÂMOCLES. Pronto! Como não pensei nisso antes! É DÂMOCLES e não DÊMOCLES! Por que não procurei direito no livro? Conferi com a Neusa e ela realmente havia cometido um lapso de entendimento da palavra proferida no sonho, e eu fui perturbado pela sua paramnésia. Especulei: será que o sonho da Neusa ocorreu quando o jornal já estava impresso? Será que ocorreu antes ou depois do jornalista ter escrito a matéria no caderno de economia? Será que fenômenos como esses repousam na simultaneidade de dois estados psíquicos diferentes, um normal e o outro não derivado causalmente do primeiro? Será que estas sequencias acidentais de dois ou mais fatos têm uma tendência a formar grupos aperiódicos, o que, segundo Jung, sucede necessariamente porque, de outro modo, só haveria uma ordenação periódica e regular de acontecimentos que, por definição, exclui a causalidade? Será que tudo é uma mera questão de dinâmica no tempo e espaço? Uma dinâmica que liga tempo e espaço por um elemento psicóide da natureza? Talvez a dinâmica não seja o que se move através do espaço, mas o que muda ao longo do tempo. Talvez o tempo seja a única medida. Embora o tempo não exista.


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