quinta-feira, 31 de outubro de 2024

QUEM MANDA, MATA, MENOS A SAUDADE E A VONTADE DE AMAR

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

No meio de meus sonhos mais doces, Te vejo sempre ocupada com seus afazeres, Sempre feliz, Te chamo, Oi Marielle!, Mas você não me ouve e nem me vê, Devo estar sonhando que estou sonhando, Oi Marielle, Aqui está meu número, Ligue para mim, Eu adoraria ouvir sua voz, No meio de meu banho de alto mar, Rodeado de verde exuberante, Onde encontro paz de espírito, Volto-me para o sétimo céu de brigadeiro, E lá em cima uma nuvenzinha translúcida e solitária toma a forma de seu rosto sorridente, Te chamo, Oi Marielle! Mas você não responde, Uma névoa de saudade reluz em seu olhar, Que logo se desfaz pelo sol dos semideuses, Amigo das heroínas, Oi Marielle! Aqui está meu endereço, Venha me visitar numa noite dessas, Quando o mundo está em sono profundo, Eu adoraria te ver de perto, Tal qual estrela que brilha na escuridão, Oi Marielle! Já faz muitos anos que venho te procurando, Quando chegar minha hora você vem me buscar e me levar para o lugar onde te enviei todas minhas preces? 

ABAIXO DO DÉCIMO NÍVEL


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Tem pessoas, Tem mentes, Abaixo do nível, Tem um pouco de tudo, Onde tudo é possível, Fragmentos de pensamentos, Inteirezas de vidas, Vivências de naturezas, Antes dos tempos, Antes das mortes, Muitas chuvas e sóis, Muitas realezas, Tem sonos pesados, Sonhos resplandecentes, Tem flutuações, Elevações, Projeções à frente, Tem sonos leves, Voos descendentes, Tem saltos profundos, Sentem e não sentem, Tem voos planados, Começos de vertentes, Tem corpos, Plenitudes, Fluências de gentes, Espíritos espiritualizando, Dimensões viventes, Abaixo do décimo nível, Aprofundam os inconscientes, Tem aterragens, Solidezes, Andanças constantes, Entes sem pressa, Mentes conscientes, Tem seres vígeis, Seres oníricos, Noites, Dias, Os todos empíricos, Tem flores dos desconhecidos, Abaixo do nível, Comoções nas revelações, Onde tudo é possível, Tem femininos, Masculinos, Machas, Machos, Tem voos pairando, Pensamentos pensando, Sem cachas, Sem cachos, Tem cognições, Absolutismos substituindo, Ovos cósmicos, Rebentos expandindo, Tem mártires, Primórdios, Começos de caos, Explosões de  estrelas, Supernovas de naus, Visitantes involuntárias, Tem ideias mudadas, Onde tudo funciona, Onde são amadas, Amadas, Tem decisões, Conexões, Fêmeas, Fêmeos, Tem muito de tudo, Ovos cósmicos gêmeos, Décimo nível abaixo abrindo os portais, Onde superfícies e profundidades não são iguais, Tem Evas, Pessoas, Adãos, Dionísios, Maçãs nas bocas, Tem expulsões dos Elísios, Décimo nível abaixo abrindo os portais, Onde superfícies e profundidades não são iguais, Pessoas, Mentes, Abaixo do nível, Um pouco de tudo, Onde tudo é possível, Tem decisões, Conexões, Fêmeas, Fêmeos, Horizontes de eventos, Buracos negros trigêmeos, Décimo nível abaixo abrindo os portais, Onde superfícies e profundidades não são iguais, Pessoas, Mentes, Abaixo, Níveis, Poucos, Tudo, Possíveis, Fragmentos, Pensamentos, Vidas, Naturezas, Tempos, Mortes, Chuvas, Sóis, Realezas, Décimo nível abaixo abrindo os portais, Onde superfícies e profundidades não são iguais.

ONDE AS ESTRELAS DORMEM

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



A felicidade amordaçada e raptada, Nos encoraja a sair pelo mundo e encontrá-la, Somos tardios nestes tempos modernos, Expiamos nos cárceres, E saudamos do exílio, Estivemos lá em cima na colina, Onde as árvores noiteiras, Tão altivas, Frondosas e majestosas, Farfalhavam ao vento que se detinha e fazia uma curva para se fazer ouvido como mulheres rugindo as longas caudas de seus vestidos e saias num grande salão, E os notívagos permaneciam em silêncio enquanto as copas e as folhas vergavam com a ventania, Agitavam-se como borboletas multicoloridas pousadas, Revoluteavam em sussurro, Agarrando-se frementes, Contorciam-se em voltas sobremaneira extensas, Sacudiam de nossos olhos a quietude do universo, Assoviando acima de nossas cabeças, Até às estrelas cochilando de pé, Tínhamos que ter a determinação para deixar a terra do amor fraternal, Rumar incansáveis quatorze horas, Para a madrugada de lugares quase perdidos, Onde as ruas não têm nomes, Onde gente parece desafiar nossa fé, Porém, nossas firmíssimas esperanças alentam e fortalecem nosso ânimo, Nossa alma percorre outros caminhos para não chegar à descrença total, Sob um céu de sol igual para todos, Sempre viajamos em todas as nossas recordações, Sempre relembramos bocados de jornadas fracassadas e outras bem-aventuradas, Em terras estrangeiras, Pois cá tens mais um, Mulher, Um crianço, Que tirei de seu ventre, Para ver as estrelas em sono profundo, Cá tens mais um, Mulher, Um sonhador, Que dorme pensando onde fica o cativeiro de nossa sequestrada.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

TEM ALGUÉM NOS ESPERANDO NO AEROPORTO?

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Depois da apresentação no Ed Sullivan e de um concerto em Washington, os Beatles rumaram para a Flórida. Carol Gallagher era uma aeromoça americana e ficou sabendo, no último instante, que os Beatles estariam no seu voo de duas horas de Nova Iorque para Miami. Ela já era fã de suas músicas pelo rádio e agora teria o privilégio de vê-los cara a cara e ainda servi-los. Carol levou semanas para refazer-se da emoção de tê-los conhecido justamente em sua primeira visita ao seu país em 1964. John, ao lado de sua esposa Cynthia, permaneceu quieto o tempo todo, sentado na última fileira. Os outros não paravam de distribuir autógrafos. Eles primavam pela alegria, simpatia e um senso de humor que Carol nunca vira antes. Eles davam a nítida impressão de que não estavam levando a sério esta ideia de conquistar o maior mercado de consumo do mundo. Na verdade, eles não levavam os Beatles a sério. Para eles, tudo não passava de uma grande aventura. Eles deviam estar pensando: Já que estão nos pagando, por que não aproveitar e divertir-se? Ringo era o mais hilário. Ele insistiu em colocar um colete salva-vidas antes de aterrissar e queria, a todo custo, ver da janela do avião algum tubarão no mar. Paul era a prova cabal de que os Beatles não esperavam tornar-se famosos nos EUA. Ele perguntou à Carol:Será que vai ter alguém nos esperando no aeroporto? Ao descer do avião, milhares de pessoas enlouquecidas os aguardavam do lado de fora. Elas, na maioria mulheres, pularam a grade e invadiram a pista. Os 4 membros dos Beatles foram logo colocados em limousines e partiram, seguidos a pé por uma multidão ensandecida. O público queria dar a eles as honras de heróis, como se fossem astronautas voltando da primeira viagem tripulada à Lua. Algumas das celebridades americanas, com uma pontinha de inveja, diziam que eles entregaram a América de bandeja para os Beatles. É verdade que eles não precisaram conquistar nada; o mundo todo prostrou-se aos seus pés como súditos reconhecendo a majestade de seus reis.



terça-feira, 29 de outubro de 2024

ANJO DO HARLEM

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

PASSEI UMA SEMANA NOS CHAMADOS BAIRROS SÓ DE NEGROS NOS EUA, EM NEW YORK E EM CHICAGO, ONDE EU ERA O ÚNICO BRANCO, E FUI TRATADO COMO QUALQUER SER HUMANO. COMO JÁ ERA DE SE ESPERAR, O QUE DEVE SER REVOLTANTE PARA OS RACISTAS, PORQUE NÃO EXISTE BAIRRO DE BRANCOS OU DE NEGROS. SÓ EXISTEM BAIRROS DE HOMO SAPIENS, FEITOS DA MESMA MATÉRIA, OS PRIMEIROS MOLDADOS PELA IGNORÂNCIA E PRÁTICAS ANIMALESCAS, OS SEGUNDOS AINDA CARREGANDO AS MARCAS  DA ESCRAVIDÃO


Quando o coração da Big Apple pede para que eu me hospede, Os olhos de Manhattan cintilam, A negritude do céu noturno desaparece, São as ebúrneas pompas que brilham, Quando te translado para o Harlem de Tobago, O calipso dança a noite e dorme com seu afago, A luz de seu sorriso acende na escuridão, É sua via ébano riscando o universo de sua feição, Quando você me leva para o Harlem de Chicago, Sinto-me uma ilha solteira, Como queira, Banhada por escuras águas de um lago, Sua reverência não distingue minha cor, Quando durmo e acordo sou cumprimentado como senhor, De cidadania, Chega de Vossa Senhoria, E quem diria, Com tantos bons pretendentes afro-americanos, Você ainda me escolheria, Quando te trago de volta ao Harlem de New York te alojo na Birdland da 53, O jazz abre a noite e permanece desperta até o último freguês, Soul food regado a blues, Nossa companhia mais intimista são as good news, Minha Angel Lady tem olhos de ebâneo diamante, Se depender daquela que deu nome ao seu lar, A antiga Haarlem holandesa, Posso até arriscar, E te chamar de minha moderna princesa, Como é bom sonhar acordado só por um instante!


VERSÃO PARA BRANCOS

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

BANHO DE CIVILIZAÇÃO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Muita gente desinformTexto de autoria de Austmathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98ada diz que Londres é uma cidade chata e arrogante. Esta não parecia ser a opinião do ex-presidente Jânio Quadros, tão inteligente quanto matusquela. O homem público ciclotímico que condecorou Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, renunciou à presidência com pouco menos de sete meses de governo, teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar em 1964, e curtiu um ostracismo grego de 10 anos. Regressou em 1978 e elegeu-se prefeito de São Paulo em 1985. O homem dos factoides mediáticos, pendurou, literalmente, as chuteiras na porta do gabinete da prefeitura em 1986 e faleceu em 1992. Jânio tinha fama de cachaceiro – bebia pinga pura durante seus comícios em suas campanhas a cargos públicos -, adquiriu o hábito de Winston Churchill de se comunicar com seus ministros através de bilhetinhos, e, entre muitas de suas memoráveis frases, algumas eram sarcásticas e hilárias - bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia. Este culto biriteiro era conhecido também por fazer constantes viagens ao exterior e, curiosamente, sempre fazia uma parada em Londres antes do seu retorno. Certa vez um jornalista perguntou-lhe por que ele sempre visitava a capital inglesa por último. A resposta foi contundente e enfática: Porque preciso tomar um banho de civilização antes de voltar ao Brasil. Na escola aprendemos que a Mesopotâmia é o berço da civilização do mundo, e que a herança cultural e moral do ocidente deve-se à Grécia. E onde Londres entra nas sentenças  dos oráculos? Eu iria descobrir nos anos 90, quando precisei fazer inúmeras viagens a países europeus, exceto à Inglaterra. Adotei os costumes do homem da vassourinha. Ao final de cada longa jornada de trabalho, arrancava terno e gravata, vestia jeans, camiseta e tênis, e ficava até três dias vadiando pelas ruas e metrôs da Londinium fundada pelos romanos na década de 60 de dois mil anos atrás. Não demorei mais que um dia para descobrir que em todo canto da cidade se respirava cultura, civilidade, educação e disciplina. Esqueçam os pontos turísticos como o Big Ben, o Palácio de Buckingham, o Museu de Cera de Madame Tussauds, a Torre que decepava cabeças de inimigos do rei e outros que só servem aos colecionadores de fotos para serem exibidas aos amigos. Você só não deve deixar de visitar o Museu Britânico, onde se encontra o Livro dos Mortos dos Egípcios, escrito em 1300 a.e.c., e a Carta Magna de 1215, andar pela faixa de pedestres na Abbey Road, em frente aos estúdios da Apple, onde os Beatles tiraram aquela clássica e lendária foto, e visitar a Carnaby Street, ponto de encontro dos gênios psicodélicos que transformaram Londres no centro da efervescência cultural e artística do mundo e a cidade mais Avant-Garde do planeta. A Inglaterra não era assim. Conservadora e puritana, até os anos 50 o homossexualismo masculino era punido com castração química. Tudo mudou com os Beatles no início dos anos 60. Aliás, os Beatles e seus pares britânicos da música mudaram o mundo. Na minha busca por acomodações, descobri que os preços de estadia não eram muito civilizados. Mas quem tem boca vai a Roma e entra no banheiro do papa no Vaticano. Papeando com gente de vários estabelecimentos comerciais e hotéis, acabei recebendo a indicação de uma pensão familiar, na Earl´s Court Garden, que ficava a algumas quadras da avenida e da estação de metrô homônimas. Para lá me encaminhei por volta das 21:00 horas. As ruas estavam completamente desertas. Enquanto as áreas mais centrais da cidade fervilhavam com shows de rock em várias casas noturnas, o pessoal da periferia se recolhia bem cedo. Estava com dificuldades para encontrar a pensão. Então, algo impensável no Brasil aconteceu. Interpelei uma jovem que vinha pela calçada em minha direção. Ela, educadamente, levou-me de volta à esquina de onde viera, e mostrou que a pensão ficava do lado direito da segunda quadra mais adiante. Lá chegando, fui acolhido com extrema hospitalidade. E aqui faço uma homenagem poética a este momento prazeroso que não repete aos 67 anos o doce começo da vida à aventura aos 40: A estação me recebe como as andaluzas em flor, Do outro lado da avenida, As ruas estão desertas, A noite caída tarde ainda em baixas e boas horas, Ao longo de uma aleia de buxos aparada e de cheirosos canteiros de alfazema, Lá adiante, a lividez do luar ilumina vagamente tudo à volta e meu passo até uma alemoa que, Gentilmente, Mostra-me uma alameda  de casas simétricas, Feita milharal, Levando-me ao casarão plantado numa das duas estreitas vias transversais, Separadas pelo elegante jardim quadrilátero, Centralizado e cercado de grades. A pensão me recebe como em meu lar, Minha casa, Meus amores, Minhas flores dos trópicos, Cá nesta terra fria e acolhedora, Como a cama aconchegante, O sorriso aberto e familiar do café da manhã tão rico e caseiro, Os primeiros raios de sol iluminam esta parte da superfície terrestre sob sombraO Earl´s Court Garden é um daqueles típicos quadriláteros de sobrados simétricos, com um jardim central, ao qual só os moradores locais têm acesso, exatamente como se vê no filme UM LUGAR CHAMADO NOTTING HILL. A recepção fechava às 22:00 horas, e só abria às 07:00 horas. Neste intervalo, só adentrava quem lá estivesse hospedado e tivesse a chave da porta de entrada. Certa vez, lá cheguei cedo demais, por volta da 06:00 horas. Eu carregava duas malas pesadas, uma contendo material de trabalho, outra com artigos pessoais. Larguei as duas na calçada, na frente da porta, e fui fazer hora num barzinho na Earl´s Court Avenue. Ao retornar às 07:00 horas, você não precisa me perguntar se as malas permaneciam no mesmo lugar. Talvez, nos dias atuais, elas fossem tomadas como suspeitas bombas terroristas e recolhidas. Londres é famosa pelas chuvas que caem quase todos os dias. Por isso, o inglês é muito precavido. Sempre sai de casa com um guarda-chuva. Eu não me preocupava com isso. Naquela época eu já não usava relógio nem cueca. A chuva podia se demorar por apenas meia hora, mas sempre vinha, de surpresa, a qualquer hora. Logicamente, Jânio não se referia às águas que desabavam das nuvens quando falava sobre o banho de civilização londrina. Eu preferia pensar nas palavras de John Lennon em sua música pelos Beatles chamada I´M THE WALRUS: sentado num jardim inglês, esperando pelo sol, e se o sol não vem, você pega um bronzeado de pé na chuva inglesa. Eu preferia esperar a chuva passar, sentado na calçada de um boteco da Oxford, saboreando um sanduíche, regado à Coca-Cola, e olhando o espetacular mulheril desfilando de sombrinhas. Houve uma ocasião em que a chuva parou de repente, paguei a conta e não esperei pelo troco. Atravessei a avenida e entrei numa loja de CDs do outro lado. O garçom veio atrás de mim e me devolveu o troco em moedas. Quando se fala em arte e cultura em Londres, as primeiras palavras que vêm à mente são música e literatura. É covardia falar sobre a música popular britânica, a melhor de todos os tempos. Consternado fiquei de jamais poder ver nenhuma das muitas e melhores bandas do mundo ao vivo porque elas só tocavam em grandes estádios e os ingressos sempre eram, e continuam sendo, esgotados com 4 a 6 meses de antecedência - só pude assistir a algumas delas passando dos 70 aqui no nosso inferno. Restava-me, então, me extasiar com as bandas amadoras que tocavam ao vivo todas as noites em dezenas de casas de show, esperançosas de serem descobertas por um Brian Epstein que as levassem a uma gravadora para lançar o primeiro disco e ter exposição no rádio. E cá entre nós, estes principiantes eram bem melhores do que muitos dos chamados músicos profissionais. Como diziam Keith e Jagger na música STREET FIGHTING MAN: o que pode fazer um garoto pobre, a não ser tocar numa banda de rock. Eu era pobre - e ainda sou - e não tinha talento para tocar numa banda. Então me lambuzava nas mega lojas de CDs. Só a fileira de prateleiras contendo artistas com a letra ´A´ na HMV era maior do que a maior loja brasileira de CDs. Nas minhas dezenas de passagens por Londres, minha obsessão sempre foi a busca por cultura. Na livraria Foyles da Oxford, eu perambulava pelo departamento de história. Encontrei um interessante livro de mitologia e folclore nórdicos. Folhei o livro e logo reparei que ao lado dele havia outros sobre o mesmo tema. Olhei o preço e não acreditei: 1,99 libras(R$ 10 na cotação de hoje) por um livro com cerca de 500 páginas. Perguntei à vendedora se o preço estava correto. Sim, estava. O baixo preço não era uma promoção, mas uma simples liquidação, porque a editora estava prestes a lançar uma nova coleção revisada da coletânea. Não tive dúvidas: comprei e enciclopédia de 16 livros contendo a mitologia, folclore, religião e costumes de todas as civilizações da humanidade. Um verdadeiro tesouro por apenas R$ 160,00. Nesta época de muitas idas a Londres eu estava finalizando meus estudos sobre mitologia cristã, e costumava comprar muitos livros acadêmicos sobre o assunto. Na estação de metrô Marylebone há uma igreja cristã com sua livraria chamada SPCK.  Nos fundos vendem-se livros usados e raros. Eu tive um enorme prazer ao procurar e lá encontrar a primeira edição, traduzida para o inglês em 1904, do livro UMA INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO, escrito em 1894, por Adolf Julicher, um alemão catedrático e teólogo, um acadêmico especializado em estudos científicos da mitologia cristã, fazendo uso da Crítica Literária e da Forma. Na parte da frente vendem-se livros novos, predominantemente religiosos, muitos dos quais desafiavam a própria crença cristã. O polêmico pau d'água que proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, proibiu as rinhas de galo, o lança-perfume em bailes de carnaval, e fechou os oito cinemas que iriam exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, em 1989, por considerá-lo desrespeitoso à fé cristã, ficaria escandalizado com sua Londres libertina se lesse um livro que comprei na SPCK, chamado JESUS E A POLÍTICA DOS SEUS DIAS, uma antologia de ensaios diversos, um dos quais descreve Jesus como um agente político, infiltrado na Palestina, a serviço dos romanos. Logicamente, o autor desse ensaio é tão porra loca quanto Jânio foi. Nas minhas andanças por Londres, eu aproveitava para comprar roupas masculinas e femininas dos anos 60 em butiques e lojinhas de esquina descoladas. Em Londres, você pagava – e deve ainda pagar – apenas 7% de imposto sobre tudo que você compra. Você pode ter o imposto estornado se o produto sair da Inglaterra. O logista preenche um formulário, descrevendo os produtos e os preços. Basta apresentar este formulário e os produtos que você comprou na alfândega no aeroporto e você recebe, na hora, a devolução dos impostos em dinheiro. Uma loja onde comprei muitas roupas não tinha o formulário. O logista me pediu para voltar na manhã seguinte. Não era possível, pois eu estava embarcando para o Brasil naquela noite. Então ele me pediu meu endereço no Brasil para estornar o imposto. Não acreditei nesta história. Dei meu endereço só por educação. Duas semanas após ter voltado ao Brasil, recebi pelo correio, da Inglaterra, um envelope contendo o formulário e os impostos em dinheiro, em notas de libras esterlinas. Estive em Londres tantas vezes e lá tomei tantos banhos de civilização que, às vezes, acabava esquecendo que sou brasileiro, vivo no paraíso dos ladrões e tomo banho de corrupção todos os dias. Meu asseio físico e moral continua quase imaculado. 

domingo, 27 de outubro de 2024

TURNING POINT OF AN IDLE CHAT


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Ele está de malinha pronta
Ele sempre viaja
Sozinho assim?
Ele nunca apronta
O que houver que haja
Não pula a cerca até o fim?
Você é mesmo marota
Será que ele brigou com ela?
Ele não briga com ninguém
Nunca deixaria uma linda garota
E você me acha bela?
Igual a você não tem
Então por que não me leva embora?
Com pouca roupa ele não vai longe
Nem a Paris, nem a Veneza
Talvez para terra de Pandora
Ou para o Tibete e ser um monge
Fazer voto de pureza?
Pode ser um momento de indecisão
Veja o brilho em seu olhar
Então deve ser a terra de Vitória
E se forem olhos de desilusão?
Veja seu modo de andar
Não parece uma postura que sugere glória
Será que vai tomar um banho de civilização?
Pode muito bem estar feliz neste inferno
Alugar isso aqui e vender Londres?
Veja o traje dele de descontração
Faz tempo que ele abandonou o terno
Até o linho da terra de Flandres
Ele é jovem por fora e sentimental por dentro
Corpo de homem e alma feminina
Jeans, camiseta preta, flores amarelas
Nem da esquerda, nem da direita, nem do centro
Conhece alguém assim com tanta adrenalina?
Você é uma delas
Isso me dá uma vontade!
Ele tinha jeito de me vou ou perco a cabeça de vez
Alguma coisa o fez mudar de ideia
Trocando conformismo por licenciosidade
Ou idealismo por falta de honradez
Ou a França pela terra de Medeia
Não é viagem a trabalho nem a passeio
Então vai pegar aquele trem só de ida?
Deve ter sido chamado para uma emergência
Ser um substituto por falta de outro meio
Ou ajudar alguém a cicatrizar uma ferida
Mas ele parece não ter urgência
E aquela história dele escrever um script para o cinema?
Mania passageira
E aquela dele dar curso sobre o Jesus histórico?
Pregação no deserto de dar pena
É aquela dele montar uma escola para ensinar língua estrangeira?
Ressuscitação de um passado fantasmagórico
Quem ele poderá substituir?
Talvez uma tragédia recente para excomungar uma antiga
É Antígona dando continuidade ao drama do irmão?
Ou Shakespeare copiando-a para Romeu e Julieta fazer essa história se repetir
Acha que para evitar o pior devemos fazer figa?
Pressinto que desta vez não
Veja sua expressão descontraída
Bonita como a minha?
Você não toma jeito
Você já viajou nesse trem só de ida?
Estamos nele, mas não chegamos ao fim da linha
Gosto muito deste carro leito
Por que não paramos na próxima estação para ver gente?
Já falta pouco para o nosso quando e o nosso onde
Será que ele embarca e segue viagem conosco?
Acho que ele vai voar até o sol poente
Ver o onde o sol se esconde?
Ver pela última vez o último raio fosco
Tem certeza que ele nunca pulou a cerca?
Isso não é jeito de falar
Que tal um modo de te seduzir?
Está querendo que eu me perca?
E se eu me comportar?
Talvez eu possa te incluir
Olha só, o trem parou e ele embarcou ao som do sino!
Vamos sentar ao lado dele e perguntar
Desculpe-me de ser tão enxerida
Nós queríamos saber qual é seu destino
Se não quiser, não precisa falar
Vou enfiar minha cabeça na privada deste trem
Puxar a descarga 
Esvaziar minha mente
E chegar em Vênus
Onde ninguém vai ligar para minhas flatulências
Desculpe minha intromissão
Só se Vênus tivesse uma temperatura entre 100 a 150 graus
Então existiria água na superfície do planeta
Por causa de sua pressão extremamente alta
No entanto a temperatura de Vênus chega a quase 500 graus
E uma vez que o ser humano é composto predominantemente de água
Você não vai conseguir soltar gases lá
Ao contrário
Lá você se tornará um verdadeiro flato
Ajudei?
Muito
Minha mãe sempre me disse que a vida é só um gás
Peguei o trem certo
Obrigado
Nossa, ele vai se perder ainda mais na vida
Perder os amigos e a família que nunca teve
Jogar fora seu nome
Recomeçar de um novo ponto de partida
Passar mais dez anos por onde já esteve
Beirar a privação até a fome
Perdoar-se em primeiro lugar
Renascer das cinzas e do seu amor próprio
Viver à margem de todas as convenções
Jamais orar como um hipócrita vulgar
Ser feliz no seu mundo alienatório
Passar o resto de sua vida sem nossas bendições


A PSICOGRAFIA DE CHICO XAVIER

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Há trinta anos, eu dei uma palestra sobre Sócrates numa casa espírita. O texto que preparei estava muito longe de ser espiritual, mas tive que fazer algumas pequenas concessões para que meu discurso pudesse receber a atenção do público heterogêneo daquela sociedade quase filantrópica. Uma das maiores preocupações dos dirigentes espíritas é evitar que uma personalidade histórica, como Sócrates, seja colocada lado a lado, em termos morais, com uma figura mitológica, como Jesus. Por ocasião da preparação de minha palestra, um desses dirigentes, bem-intencionado, entregou-me um livro psicografado por Chico Xavier, chamado Crônicas do Além-túmulo, e que contém uma entrevista que o suposto espírito de Humberto de Campos, escritor brasileiro morto em 1934, apelidado de Irmão X, fez com Sócrates no plano espiritual. Aquele curto texto de nada me serviu, mas seu conteúdo estarreceu-me com tanta falta de conhecimento e excesso de preconceitos. Encontro, agora, ensejo para escrever sobre a psicografia de Chico Xavier, uma vez que o espiritismo está na moda com os filmes CHICO XAVIER, AS MÃES DE CHICO, NOSSO LAR e O LIVRO DOS ESPÍRITOS, todos, aliás, muito fracos e piegas. O mais agravante é o fato de que os produtores desses filmes querem passar ao público a ideia de que não se trata de ficção (de baixa categoria), mas de realidade. Não há dúvidas que estes filmes levam ao delírio o único público que os assistem: os fanáticos espíritas. Para mim, Chico Xavier foi um criptomaníaco. Este neologismo não tem nada de pejorativo. Eu o inventei a partir de uma palavra verdadeira: criptomnésia. Portanto, quando digo que Chico Xavier foi um criptomaníaco, quero apenas dizer que ele foi uma pessoa afetada por criptomnésia. Enquanto os espiritualistas acreditam que tudo o que Chico escreveu foram mensagens psicografadas por espíritos de gente morta, uma análise científica dos seus textos prova que seus escritos são apenas resultados da criptomnésia, que é uma condição na qual uma pessoa tem lembranças ou habilidades que ela pode acessar, mas que foram adquiridas subconscientemente ou através de meios subliminares. Em geral, a pessoa não tem nenhum conhecimento de como ou quando tais memórias e habilidades foram adquiridas. Elas podem ficar armazenadas por um longo período de tempo até emergirem através de transe hipnótico, meditação e auto-hipnose. Há vários tipos de criptomnésia. Uma delas é a xenoglossia, a habilidade de falar idiomas que nunca se estudou e com os quais jamais se teve qualquer contato. Outra é a escrita automática, que os espíritas chamam de psicografia, que revela a capacidade que uma pessoa tem de escrever uma grande quantidade de informações a ela desconhecidas, sem nenhum desejo consciente de fazê-lo, decorrendo daí o fato de os espíritas acharem que tais escritas automáticas são iniciativas espontâneas de espíritos de pessoas que já faleceram e que resolvem escrever histórias, contos, crônicas e depoimentos através de pessoas dotadas de percepções extrassensoriais, ou médiuns, como o Chico. Eu não conheci o Chico Xavier, aliás, conheci-o somente por 60 segundos, insuficientes para fazer uma ideia de seu caráter. No entanto, conheci vários amigos íntimos de Chico que o descreveram como uma pessoa extraordinária, fora do comum. Logicamente, esses amigos do Chico são muito suspeitos para falar sobre ele porque são espíritas Kardecistas e, como todos sabem, os espíritas costumam viajar muito na maionese. De forma geral, muitas celebridades, artistas e até políticos que conheceram o Chico, reconheceram nele uma pessoa diferente e excepcional. Não duvido disso. Chico deve ter sido uma pessoa muito especial mesmo. Mas ele é mais conhecido pelo vasto acervo de livros que escreveu. Li vários destes livros e digo que a maioria deles é extremamente pobre de ideias. Muitos dos longos romances de Chico são exageradamente sentimentais, contaminados de moralismo puritano e religiosidade, como se a vida após a morte não fosse um fenômeno natural deste planeta e do universo, mas uma criação da fé cristã (para os espiritualistas, não há vida após a morte sem o cristianismo com todas as suas fantasias). Os livros do Chico são facilmente previsíveis, como os de Paulo Coelho. Depois da quinta página, já se sabe como a história vai terminar. São também excessivamente repetitivos, sempre com a mesma história e o mesmo enredo, mudando somente o cenário e os nomes dos personagens. Os textos mais curtos do Chico são igualmente enfadonhos, e alguns chegam a subestimar a inteligência e a cultura. Outros até que têm boas frases moralizantes e edificantes, mas, ainda assim, muito carolas. Enquanto ele escrevia histórias fictícias, mesmo bregas e melodramáticas, ele conseguia arrebanhar um público apaixonado e pouco culto, o mesmo que colocou os livros da Zibia Gasparetto entre os mais vendidos do país. Mas quando o Chico se punha a escrever sobre histórias reais que pudessem ser confrontadas por livros acadêmicos, Chico se saia muito mal. Como exemplo, analiso aqui um de seus textos curtos, justamente aquele que me foi dado para ler, sobre Sócrates. O texto original é separado em parágrafos numerados em itálico e negrito para facilitar a identificação de meus comentários marcados por letras azuis.

FRANCISCO CANDIDO XAVIER, CRÔNICAS DE ALÉM-TÚMULO, pelo Espírito Humberto de Campos, 25 - SÓCRATES, página 76, 7 de janeiro de 1937.

1. Foi no Instituto Celeste de Pitágoras (1) que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre filho de Sofronisco e Fenareta. A reunião, nesse castelo luminoso dos planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as melodias da Natureza. O palácio consagrado a Pitágoras tinha aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado.

a) Como o suposto autor espiritual deste texto foi um poeta e escritor, Chico se permite florear em demasia a descrição do local onde Sócrates é esperado, a ponto de fazer alusão a personagens da mitologia grega, como Orfeu e Pan. Se existe vida após a morte, imagino que o lado de lá não seja idêntico ao lado de cá. Mas esta não parecia ser a opinião do Chico. Não sabemos se os espíritos resolveram prestar uma homenagem à civilização mais inteligente que já houve na terra, ou se a réplica, no plano espiritual, das edificações da gloriosa Atenas é mero fruto de uma doentia saudade dos tempos de encarnados na terra. Logo saberemos.

2. Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo. Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucídides, Lísis, Esquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens.

b) Faltam, nesta lista do Chico, vários dos cidadãos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas: Galileu Galilei, Francis Bacon, Rene Descartes, Thomas Hobbes, John Locke, Isaac Newton, George Berkeley, David Hume, Immanuel Kant, George Wilhelm, Friedrich Hegel, Auguste Comte, Karl Marx, etc. Para Chico, os mais venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas são apenas os helenos da Grécia clássica! Poetas, escritores, músicos, filósofos, políticos, oradores e historiadores. Mas, mesmo nesta relação de Gregos clássicos, faltam exatamente as figuras mais respeitáveis na história da produção do conhecimento humano: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides, Heráclito, Demócrito, Zenão, Epícuro, Pirron, etc. Nem mesmo o grande Pitágoras, a quem Chico diz ter sido consagrado aquele Instituto Celeste, é mencionado!

3. Admirei-me, porém, de não encontrar ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento...

c) A preocupação com a ausência de Platão é injustificável, tendo em vista que a maioria dos gênios da humanidade não está presente. Também não se justifica esperar que os juízes que condenaram Sócrates, e que não deram nenhuma contribuição à ciência ou à filosofia, pudessem estar presentes num conclave dos vultos mais venerados pela filosofia e pela ciência de todos os tempos.

4. ...quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve moldavam-lhe o semblante jovial e tranquilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura.

d) O Chico era famoso por fazer uso demasiado de adjetivos (e eu sou também, mas não famoso). Aqui ele emprega vários em poucas frases. Soma-se à adjetivação o estilo excessivamente floreado.

5. As palavras de Sócrates contornaram as teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais, tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro espiritual. É verdade que não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a abordá-lo:

e) Segundo a história, o humilde Sócrates costumava falar aos jovens nas praças públicas com extrema clareza e simplicidade, mas agora ele fala nos palanques celestiais do plano espiritual com extrema complexidade e sofisticação. Ao deixar o mundo terreno e mudar-se para os planos divinos, o Sócrates do Chico deixa a humildade de lado e fala de forma tão complicada que se torna impossível transmitir ao mundo a expressão exata de seus ensinamentos. Nem mesmo Deus é capaz de entender sua avançada sabedoria espiritual. Quando NADA se sabe sobre alguém e, mesmo assim, tem-se a pretensão de conhecê-lo a fundo, é muito comum ouvir explicações como esta: ‘Não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual’. Oras, eu, também, não tendo condições de provar que estamos sendo visitados por alienígenas, posso dizer aos meus amigos que mantive contato imediato do quarto grau com os ocupantes dos discos voadores, mas não posso descrevê-los para eles e nem mesmo transmitir-lhes a expressão exata da sabedoria de suas comunicações telepáticas, estribados na mais elevada das perfeições morais, levando-se em conta a sofisticação de suas tecnologias, incompreensíveis para as ciências atuais de nosso planeta. Simples, não?

6. - Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias? - Seria inútil - respondeu-me bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando lhes os mais nobres sentimentos de humanidade.

f) O Sócrates da história teria ficado lisonjeado se fosse convidado a falar aos homens comuns, mas o Sócrates do Chico SE NEGA a falar a gente simples, pois agora ele faz parte do mundo das criaturas superiores, mas, mesmo assim, ele se esquece de quem foi (ou ainda é) e comete alguns deslizes humanos, como, por exemplo, repetir o chavão não reconhecem a si mesmos.

7. - Mas. . . - retorqui - lá no mundo há uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir! ...
- Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência. A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência individual, quase sempre difícil e dolorosa.

g) O Sócrates de Chico e dos raciocínios profundos e transcendentes continua se negando a falar aos homens comuns, porque ele está muito acima deles. Agora, ele é um Deus!

8. Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os Espíritos aí encarnados deixarem de serem cidadãos para serem homens conscientes de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas, enquanto existirem sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender essa fraternidade no campo sociológico. Impressionado com essas respostas, continuei a interrogá-lo:

h) O Sócrates de Chico diz que o homem precisa deixar de ser cidadão, porém o Sócrates histórico foi um ferrenho cidadão Ateniense, tendo, inclusive, servido o exército para defender sua Cidade-Estado. O Sócrates do Chico perdeu a oportunidade de ter nos ensinado quais invenções na terra NÃO SÃO puramente humanas. E mais uma vez, o Sócrates do Chico repete o chavão o homem não se descobriu a si mesmo.

9. - Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que cometeram, condenando-vos à morte?
- De modo algum. Miletos e outros acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o exemplo vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor e da morte.

i) Nos parágrafos 6 e 7, Sócrates diz ser inútil enviar suas mensagens benevolentes e sábias para o mundo e para uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de ouvi-lo, mas, para ele, é MUITO OPORTUNO criticar um insignificante personagem Grego como Mileto! Está claro que a criptomnésia não agraciou Chico com qualquer conhecimento sobre Sócrates, por isso a única coisa que Chico tem a dizer sobre Sócrates é aquele velho chavão que todos nós conhecemos e que ele repete, pela terceira vez, neste curto texto: enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma.

10 - Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos discípulos?
- Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre -, é de lamentar as observações mal avisadas de Xenofonte, lamentando eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e benfeitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época e nem se desviaria- para as afirmações dogmáticas no terreno metafísico...

j) Quando perguntado, três vezes, se ele gostaria de dizer algo ao mundo, o Sócrates de Chico disse, terminantemente, ser inútil! Mas, quando perguntado se ele gostaria de falar sobre seus discípulos, não hesitou em responder: perfeitamente! Este é o momento catártico do texto que tem como objetivo principal criticar os que foram aclamados como grandes homens pela história e que incomodam o Sócrates do Chico. As chamadas palavras desavisadas de Xenofonte as quais o Sócrates de Chico refere-se são aquelas que mostram o Sócrates humano, que não trabalha, que briga com a mulher, não se dá com o filho mais velho, não toma banho, anda descalço e fica uma semana inteira sem trocar de roupa. As palavras desavisadas são aquelas que mostram um Sócrates menos sábio do que moralista e menos moralista do que desmazelado. Mas o calcanhar de Aquiles do Sócrates de Chico não é Xenofonte; é Platão, o verdadeiro gênio, e quando ele se põe a falar de seu maior admirador, ele começa a dar sinais de ignorância. Eu, que sou leigo e um Zé-ninguém, sei que, quando escreveu o livro Apologia, Platão não reproduziu palavras de Sócrates, mas apenas escreveu o que ele, Platão, gostaria de ter dito, em defesa de Sócrates, aos juízes que o condenaram. Vejam só a maestria das ‘ladainhas laudatórias’ de Platão que tanto irritam a fonte inconsciente de Chico: ‘Não me insurjo contra os que votaram contra mim ou me acusaram. A verdade é que não me acusaram e me condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano; nisso merecem censura. Contudo, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos cresceram, castigai-os e atormentem-nos com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude. Se eles se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem, e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu terei recebido de vós justiça; eu e meus filhos também’. Até Deus aplaude estas frases que o Sócrates de Chico chama de ladainhas laudatórias.

11. ...Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias.

k) É sempre FÁCIL falar bem de pessoas das quais pouco se sabe, como Antístenes. Quanto menos se sabe de uma pessoa, mais ela é endeusada e mais dela se fala e este é o caso de Jesus. Mas aqui, ao falar pela segunda vez de seu desafeto, chamado Platão, o Sócrates de Chico assina o atestado de burrice com a frase Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio?’ No seu magnífico livro chamado Fedão, Platão narra a conversa que Sócrates teve com vários amigos no seu último dia na prisão quando, antes do por do sol, ele seria executado. Historicamente, Platão não esteve presente, mas soube de todos que lá estiveram e até mesmo o que conversaram. Platão não narra o que realmente foi falado naquele último dia de Sócrates. Ele apenas escreve, com sua genialidade, sobre o que ele, Platão, acha que seu mestre poderia ter conversado com seus amigos. Para alguém que está prestes a partir para o outro lado, nada melhor do que falar sobre a alma e o que nos espera após a morte (um dos assuntos prediletos de Platão - Leiam o tomo número 10 de A República). Se vocês lerem o Fedão de Platão, notarão que o tempo todo ele faz Sócrates descrever a morte como uma libertação final do espírito, afirmando que o corpo físico nada mais é que uma prisão para a alma e que, quando se morre, o espírito se vê livre desta doença chamada corpo. Como se sabe, Sócrates foi condenado à morte sob a acusação de desvirtuar os jovens com ideias nada convencionais e de denegrir a imagem da religião grega de muitos deuses. No momento derradeiro do livro, o carrasco faz Sócrates beber cicuta. Quando o veneno começa a fazer efeito, Sócrates desaba sobre a cama e permanece quase imóvel. Um de seus amigos o segura pela cabeça e pergunta se ele deseja dizer suas últimas palavras. Sócrates responde: Não se esqueça de que devemos pagar um galo ao deus Asclépio (Esculápio para os romanos). Frase magistral! Mata dois coelhos com uma cajadada só. Asclépio era o deus da medicina e da saúde ao qual as pessoas com enfermidades faziam promessas para se curarem e lhe ofereciam um animal para sacrifício, da mesma forma, como nos dias de hoje, muitas pessoas vão a Aparecida do Norte e fazem promessas para curarem-se de suas enfermidades e oferecem os mais diferentes objetos como pagamento pelo pedido atendido. Com essa lembrança do deus Asclépio, exatamente nos últimos instantes da vida de seu mestre, Platão quis mostrar que, na verdade, Sócrates nada tinha contra a religião de muitos deuses da Grécia, e, ao mesmo tempo, ao pedir para seu amigo pagar um galo a Asclépio, ele está sendo coerente com o tema que ele escolheu para discutir no seu último dia de vida e, assim, pagar uma promessa por uma graça alcançada: Ele está morrendo e seu espírito está sendo curado desta doença chamada corpo, graças a Asclépio, o deus da saúde. Simplesmente genial! E é dessa frase que o Sócrates de Chico tem ciúmes a ponto de achar que Platão teria insinuado que o Sócrates histórico falou isso de verdade. Quanta ingenuidade! Quanta falta de cultura! Quanta falta de inteligência!

12. - Mestre, e o mundo? - indaguei.
- O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon, os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!. . . A nossa única realidade é a vida do Espírito.

l) Todos os espiritualistas dizem que nossa única realidade é a vida espiritual e não a material. O problema é que não existe prova nenhuma de que existe vida após a morte ou vida espiritual e, enquanto não obtemos uma prova concreta, resta-nos deliciarmo-nos com A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que narra as lutas de Atenas e Esparta; encantarmo-nos com as glórias do Pártenon que ainda está de pé na Grécia atual e com os esplendores do século de Péricles registrados nesta grande invenção puramente humana chamada livro. Se o mundo espiritual realmente existe como acreditava Chico, então não devemos nos preocupar com tudo que ficou reduzido a cinzas na terra, pois tudo está sendo reconstituído nos planos divinos, se levarmos a sério o que está escrito no parágrafo 1.

13. - Não vos tentaria alguma missão de amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração humana?
- Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo.

m) Por três vezes, o Sócrates de Chico recusou-se a enviar uma mensagem de solidariedade aos simples mortais ainda encarnados. Agora, ele insinua ser inútil voltar à terra com uma missão de amor, porque o esforço que o homem faz na terra não passa de puro verbalismo. No entanto, tudo o que o Humberto e o Sócrates de Chico disseram neste texto não passa de puro verbalismo: muita eloquência, nenhuma substância e nenhuma lógica.

14. E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o, grande filósofo sentenciou:
- As criaturas humanas ainda não estão preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda, todos os discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!

n) E se todas as palavras proferidas pelos mais venerados sábios do plano espiritual forem semelhantes a estas, estaremos despreparados não somente para o amor e a para a liberdade, mas também para a sabedoria e a imparcialidade!

15. E enquanto o ilustre sábio ateniense se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e rara entrevista.

O que aprendemos com esta entrevista do Sócrates do Chico? Absolutamente nada! O Sócrates de Chico limita-se a repetir o que qualquer leigo já sabe: que devemos conhecer a nós mesmos. O resto é puro verbalismo de quem não sabe o que escrever sobre o Sócrates histórico. Se você, leitor, tiver um pouquinho da inteligência do Platão, descobrirá que este texto não é sobre Sócrates. Desde o terceiro parágrafo, o autor vem preparando o leitor para o que mais lhe interessa: criticar Platão. E por que criticá-lo? Talvez porque ele foi o verdadeiro filósofo de todos os séculos. Ou talvez porque o cristianismo é o piano da mitologia judaica carregado pelos ombros do neo-platonismo e do estoicismo e que receberam o rótulo de moral cristã (com uma oportuna contribuição do império romano), fanaticamente atribuída a um personagem chamado Jesus de Nazaré que não existiu. Mas o Chico não teve culpa disso. Como eu disse, ele era afetado pela criptomnésia, isto é, ele tinha acesso inconsciente a uma fonte de informação que ele desconhecia (se quiser, pode chamar isto de percepção do inconsciente coletivo no estado vígil). A única coisa que podemos asseverar, com toda a certeza, é que a fonte a qual ele teve acesso, pelo menos para escrever este texto, nos dá uma verdadeira aula sobre como fazer críticas levianas a gênios da humanidade, primando pela adoração das palavras e gosto da eloquência vazia de conteúdo e significado. Aos cristãos e, em especial, aos espíritas, isto que vou dizer parecerá um sacrilégio: boa parte da chamada moral cristã foi simplesmente chupada dos livros de Platão. Esta deve ser é uma das razões pela qual Platão foi tão invejado e criticado neste texto do Chico. Ah, que bom seria se todas as máximas da moral cristã fossem, realmente, de autoria do mito chamado Jesus Cristo!

Nem tudo o que Chico escreveu provém da criptomnésia. Vários de seus escritos e declarações advêm de seu inconsciente e consciente pessoal e coletivo, refletindo o ambiente em que foi criado, as influências sociais e religiosas que sofreu, seu nível cultural e intelectual e sua indiscutível percepção extrassensorial e sua cripto. No entanto, se este texto do Chico é uma prova de que existe vida após a morte, deduzo que 1) Sócrates não era tão sábio como conta a história, mas, ao contrário, muito burro ou 2) O espírito de  Humberto de Campos mentiu ao dizer que encontrou-se com o espírito de Sócrates e inventou uma suposta entrevista apenas para criticar Platão, seu desafeto e um filósofo de quem ele tem uma insuportável inveja ou 3) O inconsciente/consciente de Chico foi afetado pelo fanatismo espiritualista A propósito, naquele famoso e antigo programa chamado PINGA FOGO, por exemplo, Chico fez duas declarações mirabolantes e hilariantes que ele poderia ter evitado. Não tendo condições de explicar porque ele não psicografava ideias de Platão, Chico tentou diminuir a importância do grande filósofo ao insinuar que ele não era o verdadeiro autor das grandes lições morais e intelectuais que nos legou, mas apenas um médium que psicografava as ideias dos outros! Foi muito triste ouvir de nosso gentil Chico algo tão hilário assim. Mais triste ainda foi Chico dizer que o primeiro livro da história da humanidade foi ditado por espíritos e psicografado por Moisés numa pedra. Uma utopia sem precedentes (para os homens, isso é pior que câncer nos testículos). Talvez por falta de oportunidade e tempo para estudos científicos, Chico não sabia que Moisés não existiu e que os judeus plagiaram os dez mandamentos do Livro dos Mortos dos Egípcios e o  enxertaram com contradições (você não pode cometer adultério - mandamento 7, mas pode comer sua escrava - mandamento 10; você não pode matar - mandamento 6, mas pode instituir a pena de morte segundo a lei do olho por olho, dente por dente, Êxodo 21:24), preconceitos (deus aprova a escravidão, permite que você tenha escravos e permite que você cobice seus escravos que são comparados a animais e objetos, mas deus não gosta que você cobice os escravos dos outros - mandamento 10 - Qual é a mensagem de deus para as pessoas que são escravizadas?), soberba (nos quatro primeiros mandamentos deus só fala de si mesmo).

Em tempo: O público em geral, religiosos e ateus, não sabe que Sócrates jamais disse a frase 'Conhece-te a ti mesmo'. Estas palavras foram encontradas numa inscrição no Oráculo de Delfos, na Grécia. Antigamente, só os acadêmicos sabiam disso, mas em nossos dias até o Google sabe. E eu, um desprezível Zé Ninguém, já sabia disso com 15 anos de idade, lendo livros acadêmicos, é claro!

PÉSSIMO AGOURO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegid pela Lei 9610/98. 

COMENTÁRIOS SOBRE A CRÔNICA DELÍCIAS PELO BURACO DA FECHADURA, DE HUMBERTO WERNECK, PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO EM 24/12/2019 (Leia esta crônica na íntegra abaixo do vídeo).A ilustração é uma foto que o Humberto Werneck tirou da Nossa Pietà, numa esquina da Avenida Paulista, no dia 30 de Novembro de 2019, e que foi capa da edição de dezembro de 'O Trem Itabirano', ótimo jornal mensal, segundo Humberto, criado e editado por Marcos Caldeira Mendonça na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade.

Neste dia madraceirão, largado num sofá, coçando o saco, dando tratos à cabeça e catando alguns inesperados e folgados pediculus humanus, deleitei-me com sua crônica natalina, sempre repleta de bela eloquência, e que só perde para a elegante mensagem de natal na capa do jornal O TREM. Por sorte, nossa Pietá, magnificamente fotografada por você, estava devidamente coberta. Modéstia à parte, tenho o mesmo donaire deste Marcos Caldeira Mendonça. De volta ao tema principal, quando eu tinha seis anos ganhei um trenzinho do Papai Noel, mas meu primo Garfão fez o mesmo que um espírito de porco fez com você. Também não traumatizei com o apocalipse. E de roldão, aquele tridente do diabo roubou minha pureza. Comunicou-me que não vim ao mundo pelo bico da ave pernalta da família dos ciconiídeos. Você, disse ele, saiu da barriga de sua mãe via vaginal. En passant, digo de onde vem nosso espírito de porco. Daquele demônio que ocupava o corpo de um inocente com uma legião. Diante da ameaça de expulsão pelo mitológico Jesus, o tinhoso pediu ao filho do homem para baixar os seis mil legionários (número de soldados daquele destacamento militar romano) numa vara de porcos que circulava no local. Tendo seu pedido atendido, precipitou os suínos no mar da Galileia, que, na verdade, era um lago. A inventora desta fantasiosa história inspirou-se no ritual de purificação dos Mistérios de Elêusis no culto das deusas Deméter e Perséfone da antiga Grécia de Sócrates e Platão: porcos lançados ao mar para banho e sacrifício para afastar demônios. Sua saudosa e sublime crônica levou-me à quinta leitura de um velho livro que guardo desde os anos oitenta: The Mysteries Of Mithra, escrito em 1902 por Franz-Valéry-Marie Cumont, arqueologista e historiador belga. Uma nota na contra capa lembra-me todos os desvelos que sua mãe tinha para os adereços natalícios, especialmente as folhas de papel grosso, com uma demão de cola, polvilhadas com especularita, manipuladas com mãos de artista. A nota do livro diz: We have made every effort to make this the best book possible. Our paper is opaque, with minimal show-through; it will not discolor or become brittle with age. Pages are bound in signatures, in the method traditionally used for the best books, and will not drop out. Books open flat for easy reference. The binding will not crack or split. This is a permanent book. E, de fato, o danado nunca solta uma folha sequer. É um livro para toda vida, assim como são suas deliciosas lembranças dos tempos de criança, eternizadas nos seus textos jornalísticos. A releitura dos citados mistérios trouxe-me à memória as ferrenhas discussões nos concílios do século 4 da era comum (e.c.), para decidir quais dos mais de trinta evangelhos fariam parte do cânon cristão e qual seria a melhor data para o nascimento de cristo. Comunidades cristãs do século 3 e.c., principalmente no Egito, comemoravam o nascimento do nazareno no dia 6 de Janeiro, em adoração aos magos, o clero oficial dos persas, a partir do qual surgiu a lenda cristã dos três reis magos. O Concílio de Niceia de 325 e.c. condenou tal data como sendo uma heresia e propôs outra. Finalmente, em 354 e.c., decidiu-se que o dia do nascimento de Jesus seria 25 de Dezembro, porque era no solstício de inverno que celebrava-se o renascimento do deus invencível, o Natalis Invicti, Deus Sol Invicto dos romanos, uma ideia tirada de Mitra, o Deus Sol da mitologia persa, que morreu e ressuscitou. Caro Humberto, não sei se é sábio dizer 'no ano felizmente passado', porque acredito que o próximo promete ser pior que o atual. Talvez, melhor seria pedir ao tempo, este majestoso senhor da eternidade e do infinito, para nos retroagir aos nossos dias de inocência. Feliz 2020!




Humberto Werneck Delícias pelo buraco da fechadura
Humberto Werneck
Como naquele dito sobre a festa, melhor ainda que o presente, muitas vezes, era esperar por ele.
Aproximando-se o Natal, a nossa mãe – pronome possessivo que chegou a abarcar onze crias, número suficiente para formar um time feminino de basquete e um masculino de vôlei – se munia de lápis, papel e paciência para ouvir os mais delirantes, os mais inexequíveis desejos da meninada.
A dona Wanda e o dr. Hugo com certeza tinham sua estratégia para, de modo indolor, nos convencer de que nem todas as nossas fantasias, quando não a maioria delas, estariam atendidas sob a árvore de Natal na manhã de 25 de dezembro. Provavelmente sabiam que também o inesperado pode ter o seu encanto, e lançavam mão de surpresas gostosas para prevenir eventuais decepções da filharada. O fato é que o expediente funcionava. Pelo menos não me lembro de ter sentido falta de alguma coisa ao desembrulhar o que o Papai Noel deixara para mim.
A única exceção, já contada aqui, foi, bem menino ainda, um par de muletas, petrecho que, para mim, passava ao largo da ortopedia para se constituir num instrumento de prazer, tão fascinante quanto as pernas de pau sobre as quais eu via se equilibrarem uns malabaristas. Não me lembro do que terá vindo em lugar delas, de modo a compor um trio de regalos que incluía um par de óculos escuros e um anel de prata, com chapinha para gravação de iniciais, adornos em cujo uso & gozo fui flagrado numa foto aos 4 anos de idade.
Não me lembro, também, de ter pedido a Papai Noel o exemplar do Missal Cotidiano que, aos 10, encontrei aos pés da árvore, junto com o meu primeiro relógio, um Lanco dourado de 15 rubis, minúsculas gemas que, no interior da máquina, providenciavam o seu bom funcionamento, desde que o usuário não se esquecesse de dar corda uma vez ao dia. Meu Lanco parou irremediavelmente em algum ponto do caminho, mas o Missal Cotidiano (“editado e impresso nas oficinas tipográficas do Mosteiro de São Bento, Bahia”, em março de 1954) segue acompanhando o infiel que perdeu bem cedo a fé religiosa, mas que ainda assim o trata como relíquia, quando menos pela razão pagã de figurar, no topo da folha de rosto, o seu nome completo e a data do presente, “25-12-1955”, na bonita letra materna. Ao longo de décadas, mais de uma vez voltei a esse livrinho, e outras tantas voltarei, não para rezar, mas para, digamos, procurar nomes e datas na extensa lista de santos do dia.
Já não sei quando foi que algum espírito de porco me comunicou que “o Papai Noel é o pai da gente”. Da revelação não me ficou o menor trauma, diferentemente do que aconteceu quando alguém me fez saber que não passava de invencionice a cegonha que por onze vezes pousara no lar de Hugo e Wanda – assim como, aliás, em igual número de ocasiões, na casa ao lado, moradia do tio João Antônio e da tia Yedda. Mesmo nas Minas Gerais daquele tempo, católicas a mais não poder, e sem televisão para ocupar os casais, bem poucos telhados terão sido tão assiduamente frequentados quanto aqueles dois pela referida ave pernalta da família dos ciconiídeos.
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Mal entrava dezembro e a nossa mãe exumava dos armários uma árvore natalina artificial, cujos galhos, dobrados junto ao caule no restante do ano, me sugeriam um guarda-chuva verde fechado. Junto com ela e as respectivas bolas coloridas, voltavam à luz algumas folhas de papel grosso que, depois de receberem uma camada de cola, haviam sido polvilhadas com um minério de ferro que, por brilhar ao sol, se chamava especularita. (Não se impressione com a exibição de ciência: dono de uma ignorância especializada também em geologia, recorri aqui às luzes de meu irmão Rodrigo, engenheiro de minas e metalurgia).
As folhas de papel eram manipuladas com mãos de artista para que compusessem, sobre uma mesinha baixa, uma réplica doméstica da gruta onde nasceu Jesus. Espelhos com as margens recobertas de areia simulavam laguinhos. Aqui e ali, nosso presépio era adornado com tufos de musgos que, tanto quanto a especularita, íamos colher nos contrafortes da Serra do Curral, hoje em grande parte tomados por uma urbanização voraz.
A paisagem era habitada por figuras de louça colorida de Nossa Senhora e São José, além de considerável fauna à qual não podia faltar uma literal vaca de presépio. Vindos de longe, os três Reis Magos a cada dia avançavam alguns milímetros em direção à gruta, com suas oferendas de ouro, incenso e mirra, palavra esta que me fez correr ao dicionário. O berço de Jesus permanecia vazio até os primeiros minutos de 25 de dezembro; mas nós, a arraia miúda, não víamos o momento em que o recém-nascido era ali gloriosamente entronizado, com seus bracinhos abertos para nos abençoar. Sua chegada se dava altas horas da noite, quando papai & mamãe Noel, pé ante pé, vinham depositar sob a árvore os nossos presentes.
Quando acordávamos, bem mais cedo que o habitual, encontrávamos trancadas as portas da sala, e havia alguma disputa para ser o primeiro a colar o olho no buraco da fechadura, no mais inocente dos voyeurismos. Como não dava para saber quem ganhara o quê, a nossa impaciência ia acordar os pais, no quarto ao lado. Num daqueles Natais, houve a surpresa de verificar que as pilhas de presentes não estavam, como de hábito, no piso da sala, e sim no assento do vasto sofá ao fundo. Depois soubemos que uma chuvarada noturna tinha apanhado de jeito uma janela mal vedada e provocado uma inundação no soalho. Mas nenhum presente se molhou – motivo adicional para a nossa já enorme admiração pelo Papai Noel: cuidava de tudo, o danado!


O Estado de S. Paulo, 24/12/2019;