quarta-feira, 2 de novembro de 2022

PRESENTES DE AMOR E O MITO DA MULHER APANHADA EM ADULTÉRIO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

No início dos anos 90, resolvi reler todos os diálogos de Platão que eu conhecera nos tempos de faculdade. Naquela ocasião, decidi ler, pela primeira vez, os diálogos considerados menores e de au
toria duvidosa: Hiparco, Os Rivais, Teágenes, Clitofonte, Minos e O Segundo Alcibíades. Este último tornou-se o meu favorito. Seu tema, a prece, contém, em muitas passagens, o espírito do platonismo e do estoicismo que pessoas anônimas usaram para escrever parte dos evangelhos cristãos. É muito bonito, por exemplo, a prece do poeta desconhecido que Sócrates aprova: Dá-nos, Zeus, os bens que pedimos e os que silenciamos, e afasta de nós os males, mesmo se o pedirmos por não sabermos que são males. No entanto, este diálogo não é de Platão. É de um admirador anônimo, escrito entre o século 3 e 4 antes da era comum.

Quem conhece os diálogos de Platão, logo percebe que O Segundo Alcibíades contém falhas nas associações e força argumentativas e ausência do habitual senso de humor com o qual o grande filósofo atenuava a investida dos questionamentos de seu mestre. O autor demonstra que conhece, profundamente, o estilo de Platão, no entanto, em várias passagens, a linguagem usada não é Platônica. O texto contém muitos erros de  estrutura e dicção. Em 151B, a frase grega é literalmente traduzida Eu ficaria feliz em ver-me aceitando, o que não é nada Platônico. Uma das provas de que o diálogo foi escrito muito tempo depois de Platão está na palavra grega usada para respondido em 149Bapokrithenai, enquanto Platão teria usado apokrinasthai. Outros exemplos: Em 148C, as palavras chronou oudenon parecem significar tempo passado em Grego e, certamente, não é Platônico (No livro de Aristóteles, Física, na passagem IV. 13.5 as palavras o parekon chronos significam tempo presente). Em 145D as palavras ana logon são usadas no genitivo na passagem 29C do livro Timeu de Platão, enquanto a frase Platônica normal para esta passagem é osautos.

Platão teve muitos imitadores e admiradores anônimos, mas este que escreveu o Segundo Alcibíades, é mais que isso. Como devemos entender uma pessoa que escreve uma obra magnífica, imitando seu ídolo, e prefere permanecer no anonimato ao invés de desfrutar da glória de um filósofo, mesmo que de um plagiador? Como devemos entender uma pessoa que encerra o diálogo com esta nobre máxima: Amão diz que prefere o culto discreto dos lacedemônios aos sacrifícios de todos os helenos reunidosem resposta às queixas dos Atenienses de sempre levarem a pior nas batalhas contra os Espartanos? Isto não é um plágio oportunista ou uma imitação barata. Isto é um presente de amor para a  posteridade.

Os maiores imitadores de Platão, no entanto, não foram meros e frustrados pretendentes a filósofos, mas, sobretudo, os cristãos. Boa parte das histórias e grandes máximas que aparecem nos evangelhos canônicos, conhecidos como Marcos, Mateus, Lucas e João, foram baseados nos diálogos de Platão e na cultura grega. Todas as pessoas que inventaram as histórias contidas nos evangelhos eram anônimas e inspiraram-se em várias fontes, principalmente a Grega, mormente a Platônica (muitos acadêmicos costumam dizer que o cristianismo é um neoplatonismo). Todos os evangelistas eram cultos, falavam Hebraico, Aramaico, Latim e Grego, e liam livros acessíveis somente à nobreza, como os diálogos de Platão. Eles fizeram uso da obra de Platão e de outros pensadores gregos para inventar o que hoje chamam de moral cristã. A igreja deu nomes aos autores destes evangelhos, mas quando aqui faço menção a qualquer um deles, não refiro-me a uma pessoa que existiu e cujo nome conhecemos. Quando digo João, refiro-me ao autor anônimo que escreveu o evangelho conhecido pela igreja Católica como sendo de São João.

Os autores anônimos dos evangelhos canônicos não tinham admiradores ou imitadores, mas concorrentes, anônimos também, e que escreviam seus próprios evangelhos, como várias pessoas de diferentes regiões fizeram ao longo de mais de um século. Como o conteúdo destes evangelhos concorrentes não atendiam aos interesses imediatos da igreja católica dominante, foram chamados de apócrifos e banidos, mas redescobertos nos tempos modernos. Para cada um dos quatro evangelhos canônicos existe, pelo menos, cinco apócrifos. O que os evangelhos canônicos mais tinham eram adulteradores,  dentro da própria igreja cristã que, por séculos, modificou as histórias dos evangelhos para atender aos seus proselitismos e manter seus fiéis sob rédeas  curtas. A maioria das adulterações é bem visível e até grotesca. No entanto, os autores originais e anônimos dos evangelhos eram bem criativos e inventavam histórias mirabolantes, intrigantes e, às vezes, até assustadoras e surpreendentes, comprometendo a imagem de seu ídolo mitológico que se tornou a figura central da maior religião da humanidade.

Há uma história famosa e interessante no evangelho de João, conhecida como A Mulher Apanhada Em Adultério, que requer atenção especial. Em qualquer bíblia de livrarias ou de hotéis e igrejas, está história aparece nos capítulos 7.53 a 8.11, mas o mundo acadêmico nem sequer a cita em seus estudos científicos da literatura cristã primitiva. Por quê? Porque, embora ela não seja diferente de outras histórias sobre Jesus encontradas nos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e  Lucas), ela não foi escrita pelo autor original do evangelho de João. Ela tem muitos problemas como o Segundo Alcibíades que foi, erroneamente, atribuído a Platão.

Esta história não aparece em nenhum dos manuscritos unciais Gregos, a não ser num único conjunto deles, sendo os principais três manuscritos datados do século 4 da era comum, o Sinaiticus, Vaticanus e Freerianus, e um do século 9, o Koridethian. Um manuscrito uncial do século 8 e outro de século 9 omite esta história, deixando um espaço vazio onde ela outrora fora inserida, o que denota que já naquela época era considerada não autêntica. Além disso, vários manuscritos cursivos omitem a história, enquanto os manuscritos cursivos de Ferrar colocam esta história no evangelho de Lucas, entre o discurso apocalíptico do capítulo 21 e a abertura da história da paixão no capítulo 22. Outros a colocam no final do evangelho de João e outros depois do capítulo 7. O  mais interessante é que durante os primeiros mil anos da era cristã nenhum comentarista Grego fez qualquer menção a esta história. Na verdade, evidências desta história só aparecem nos manuscritos latinos e ocidentais, sendo o mais antigo deles o Códex Bezae do século 5.

Fora estas anomalias nos manuscritos unciais e cursivos da igreja, o que torna esta história uma invenção bem tardia é o fato de que seu autor comete os mesmos erros cometidos pelo autor do Segundo Alcibíades. A partícula grega de aparece 10 vezes nesta curta história e não é uma palavra característica de João. Ela aparece 202 vezes no evangelho inteiro, ao passo que João usa com a mesma frequência (195 vezes) a partícula grega oun. Para a palavra multidão, João usa o grego ochlos, mas nesta história, o inventor anônimo usa o grego laos. Em todo o evangelho, João chama os opositores de Jesus simplesmente de Os Judeus, mas nesta história eles são chamados de Escribas. Para a palavra cedo, João usa o grego proi (ver capítulos  18, 20 e 21 de João), mas nesta história a palavra grega usada é orthrou.

Se esta história não faz parte do evangelho, então de onde ela veio, com qual propósito foi criada e por que ela foi inserida justamente ali, entre os capítulos 7.52 e 8.11? Uma história parecida com esta foi mencionada pela primeira vez nas Constituições Apostólicas  dos séculos 3 e 4 da era comum, sem ser, no entanto, atribuída a nenhum evangelho. O Bispo cristão, Eusébio de Cesárea, que viveu do ano 260 a 339 da era comum, menciona em seu livro, A História da Igreja, que um tal de Papias relata uma outra história de uma mulher acusada de pecados perante Jesus e que estaria contida no Evangelho dos Hebreus. Eis as palavras de Eusébio no capítulo III, versículo 39: Papias também faz uso de evidências tiradas de 1 João e 1 Pedro, e relata a história de uma mulher falsamente acusada de muitos pecados perante Jesus. Esta história é encontrada no Evangelho dos Hebreus. Eusébio não associa ou compara esta 'outra história' de Papias à história contida em João 7.53 e 8.11, simplesmente porque no tempo de Eusébio, século 4 da era comum, a história da Mulher Apanhada Em Adultério não existia.



A exemplo do que fez o autor do Segundo Alcibíades, o autor da Mulher Apanhada Em Adultério nos legou outro presente de amor com a grande máxima: Que atire a primeira pedra quem não tiver nenhum pecado. Deixo para o leitor o desafio de dar respostas às três perguntas feitas no parágrafo anterior. Ofereço este texto como meu presente de amor para os carregadores de tirso que passaram a vida andando em círculos e aos bacantes que sempre caminharam em linha reta até a apoteose ou, conforme a versão cristã desta máxima de Platão, para os chamados que me fazem companhia no anonimato e para os escolhidos que se fazem acompanhar somente pelo estrelato