sábado, 15 de julho de 2023

O MANDANTE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Conheci um sujeito muito interessante. Super culto. Erudito, com, pelo menos, umas doze graduações, outras dez e tantas pós-graduações e mestrados e uns cinco títulos de doutorado. Um poliglota. Ou melhor, um panglota, porque ele fala, literalmente, todas as línguas oficiais do planeta, e também as não oficiais, inclusive as mortas como o Latim, o Sírio Aramaico, o Aramaico Samaritano e por aí vai. Ele faz palestras pelo Brasil e mundo afora. Ele diz que foi Paulo de Tarso na sua última encarnação e que voltou para preparar o mundo para a segunda vinda do Cristo.

 Eu queria conversar com um sujeito desses. Mas era mais fácil passar um fim de semana com o papa ou pôr o Maluf na cadeia do que conversar um minuto com ele. Mas eu consegui. Fiz uma tremenda safadeza. Fui a uma de suas raras palestras em São Paulo. Devia ter umas 50 mil pessoas. Havia mais seguranças do que no dia em que George Bush veio a São Paulo participar de um festival de piadas promovido pelo Lula. Ao final da palestra, eram muitas as pessoas que queriam pedir autógrafos a ele nos bastidores, mas, como reza o evangelho, muitas compareceram, mas poucas tiveram o privilégio. Eu levei um caco de vidro comigo e tentei furar o bloqueio na marra. Quando um segurança me deteve eu fiz um corte na minha testa e o sangue começou a jorrar. O segurança ficou assustado e eu gritei.

- Um emissário de Cristo me agrediu e tirou sangue da minha cabeça! Socorro!

Um jornalista que estava por perto viu e confirmou.

- O cara está sangrando! Foi o segurança que cortou a testa dele!

 Isso atraiu a atenção de muitos fiéis que ficaram horrorizados. E a coisa foi passando de boca em boca até chegar aos ouvidos do porta-voz do Cristo que ficou preocupado e deu ordens.

 - Tragam logo esse homem aqui, por favor!

 Quando eu cheguei ao salão onde ele encontrava-se esparramado num sofá, várias pessoas vestidas de branco vieram a mim. Deviam ser médicos ou enfermeiros ou ambos. O fato é que me trataram com rapidez, delicadeza e eficiência. A grande celebridade veio a mim, ajoelhou-se diante de mim, beijou minha testa com cinco pontos e fiquei quase cego de tantos flashes nos meus olhos. Parecia aquela cena quando o Michael Jackson veio fazer um show em São Paulo e o carro de um de seus seguranças atropelou um menino. Como vocês sabem, o preto vira-casaca teve que ir ao hospital e ao lado do menino de perna quebrada tirou um montão de fotos fazendo o ‘v’ da vitória com os dedos .

O tal de Paulo de Tarso, pois esse foi o nome que ele adotou também na nova encarnação, falou suavemente e com modéstia.

- Meu irmão, o que lhe fizeram é tão hediondo quanto o que fizeram com Nosso Senhor, por isso peço-lhe que me perdoe pois meus assessores não sabiam o que faziam.

 - Nossa, quem sou eu para te perdoar? Eu que lhe peço desculpas, pois a admiração que eu tenho pelo Senhor fugiu do meu controle. Não fique bravo com seus seguranças. Eu mesmo me cortei. Fiz esta bobagem só para te conhecer. Acho que muita gente faria pior só para tocar a túnica do nosso Mestre.

Paulo de Tarso, muito tranquilo, não se surpreendeu e continuou falando dócil.

 - É verdade! Qual é seu nome?

 - Alceu.

Paulo fez uma cara simpática do tipo ‘eu sabia!’, e chamou a atenção de todos que estavam no recinto amplo, e mais da metade dos que ali se encontravam era da imprensa.

- Meus irmãos, vejam que coisa maravilhosa aconteceu aqui hoje. Estou diante de mais um gentio convertido como eu. Um gentio que demonstrou mais força do que eu, pois ‘força’ é o que significa ‘Alceu’ em grego. É preciso ter muita força e coragem para seguir o Cristo. O nosso querido Alceu se mutilou apenas para estar próximo de um humilde e pobre apóstolo do Cristo. E o que ele não faria para estar com o próprio Cristo? É deste tipo de homem que o Cristo precisa no Reino dos Céus que está para ser inaugurado. Homens de força, vontade e coragem como o Alceu. Homens que são capazes de arrancar um olho que o escandaliza para não contaminar aquele que é digno diante de Deus, Nosso Pai.

E todos aplaudiram. E mais fotos foram tiradas do Alceu ao lado de Paulo de Tarso.

- Esta cicatriz que você acaba de ganhar na sua testa será como um ingresso para sua entrada no Reino de Deus. Quando as portas do Reino se abrirem e você dela se aproximar, os anjos guardiões verão a marca da sua conversão e logo reconhecerão: ‘Este foi chamado e é um dos escolhidos’.

E eu, só querendo fazer média, para não ficar o tempo todo só sorrindo como um bobo alegre, emendei:

- E o Senhor já nem precisa mais da sua, pois o Senhor foi o primeiro a ser escolhido.

 - Não preciso mais do quê, Alceu?

 - Da sua cicatriz, Senhor Paulo!

 - Que cicatriz, Alceu?

 - A cicatriz que levou o Senhor a se converter.

 - Não, Alceu, a luz que me cegou a caminho de Damasco não deixou nenhuma cicatriz!

 - Não sabia disso. E mesmo que houvesse uma não apareceria pois agora o Senhor veste outro corpo. Talvez o Senhor tenha ficado com uma cicatriz moral ao ter que trocar de nome.

- Como assim?

 - O Senhor chamava-se Saulo e, quando se converteu ao Cristianismo, mudou seu nome para Paulo!

 - Ah sim, todos sabem disso, mas o que isso tem a ver com a cicatriz?

 - Assim como o Senhor mudou de nome, poderia também ter mudado de cicatriz.

 Ainda muito sereno e falando com segurança, Paulo sorriu meigamente para mim.

 - Não, Alceu, eu nunca tive qualquer cicatriz.

Paulo colocou sua mão sobre o meu ombro com carinho e seu sorriso simpático dispensava prolixidade sobre o assunto. Afinal, ele já tinha consagrado-me ao revelar-me, diante de muitos, um homem de força e um dos escolhidos. Em consonância com o que acabo de dizer, ele, instintivamente, ergueu levemente o traseiro do assento, fazendo aquele gesto típico e involuntário de quem está querendo dar a conversa por encerrada. Naquele instante, eu estava constrangido. Sabia que eu teria que ter a educação de pedir licença para ir embora, mas frustrado, porque eu queria tanto conhecer aquele homem e lhe fazer tantas perguntas para matar a minha curiosidade. Lá estava eu diante dele e o momento não se ofereceu para os meus verdadeiros propósitos. E eu estava muito envergonhado também, porque tenho a soberba de pretender escrever um livro sobre o cristianismo e estava ao lado da maior sumidade no assunto e para a qual nem perguntas pertinentes eu era capaz de formular. E ainda, com aquela minha mania de dar palpite em tudo e achar que eu sei falar sobre tudo, passei vergonha com aquela conversa sobre a cicatriz que nem eu mesmo sei como é que fui tão longe com ela sem qualquer proveito. Eu sou aquele leigo que se mete em tudo, que se acha autodidata. Um palpiteiro que lê uma coisa aqui outra ali e já pensa que pode escrever um tratado, um livro, que pensa que pode responder a qualquer pergunta sobre qualquer assunto como se fosse uma biblioteca ambulante. Eu estendi minha mão ao Paulo e o agradeci efusivamente por ter me recebido e não consegui sair de lá de outra forma senão como aquele chato de galocha que arranca casquinha de ferida cicatrizada e não percebe que alongar-se sobre um pedido de desculpas já acolhido não irá tornar-me mais escusado.

- E me desculpe mais uma vez por aquela história da cicatriz. É que esse tipo de assunto sempre me intriga e me faz ficar pensando, como aquele homem que teve a orelha decepada pela espada de Pedro e depois Jesus a recolou de volta com terra e cuspe, e eu fico sempre pensando que tipo de cicatriz aquele homem carregou. Eu fico cismado com estas coisas de cicatrizes, troca de nomes, nomes que tem significados como o meu e o seu, espero que o Senhor me entenda.

E o Paulo não só me entendeu como também acho que se compadeceu. Deve ter ficado com dó de mim, pois, lentamente, voltou a se sentar e a me dar ouvidos, como um Cristo resignado que não oferece qualquer resistência ao seu flagelo. Só poderia ser piedade, foi o que pensei na hora. De repente, sem eu perceber, todos tinham se retirado e uns poucos seguranças permaneceram, e eu me vi quase a sós com aquele deus naquele enorme recinto. Talvez ele quisesse deixar eu falar o quanto quisesse e não permitir que os outros rissem de mim. Isto, sim, era um gesto nobre, singela compaixão. Só quando ele teve certeza que os distantes guarda-costas não podiam nos ouvir, ele delicadamente me falou:

- Sente-se, Alceu! Fique à vontade! Eu sei que você tem mais coisas para perguntar. Pode perguntar-me o que você quiser!

Ele me falou com tanta naturalidade, com tanta paciência, que eu me senti à vontade de verdade, esquecendo que eu estava diante de um monstro sagrado da história do ocidente. Paulo fez me sentir como se eu estivesse batendo um papo com um amigo de escola na hora do recreio. Eu fiquei aliviado, deixei de lado os rodeios, os melindres, e consegui, finalmente, ir direto ao que me interessava, sem constrangimentos.

- Senhor Paulo, por que o Senhor trocou de nome?

- Alceu, nomes não são importantes. O que vale são os atos. Minha troca de nome foi um ato simbólico de batismo, de conversão de um arrependido perseguidor de Cristãos para um humilde servidor do Mestre.

- Sabe, Senhor Paulo, eu sempre achei muito intrigante o que se esconde por trás dos nomes assim como as cicatrizes que carregamos de uma vida para outra. Perdoa-me perguntar mais uma vez. Então, o Senhor nunca teve mesmo uma cicatriz?

- Não, Alceu, nunca tive. Continue perguntando e pode chamar-me de ‘você’.

- Sabe aquilo que lhe falei sobre o homem que teve a orelha cortada pela espada de Pedro?

 - Sei, Alceu. Pode falar.

 - Há algo muito curioso naquela passagem sobre a prisão de Jesus e que é narrada apenas no evangelho de João.

 - Muito bem. Quero ouvir.

 - O evangelista João diz que o sujeito que se adiantou para prender Jesus era um escravo do Sumo-sacerdote e acrescentou, ainda, que o nome deste escravo era Malco.

 - Ótimo, Alceu. Estou gostando muito. Continue.

 - E foi esse escravo chamado Malco que teve a orelha cortada pela espada de Pedro e que Jesus imediatamente colocou de volta. Eu pergunto-me, havia ali tanta gente importante, como o próprio Sumo-sacerdote, sua tropa e sua entourage. Por que João fez questão de revelar o nome de apenas um simples escravo a serviço dos Fariseus?

 - Ah, Alceu, isto foi uma mera preciosidade do nosso querido João. Na verdade, ele teve pena do podre coitado que lá estava a mando do Sumo-sacerdócio e João quis realçar que, até mesmo num momento de agonia, Jesus foi capaz de compadecer-se de um de seus algozes e realizar mais um de seus milagres.

- Já que o Senhor falou em preciosidade, ocorre-me agora que todos os evangelhos estão repletos delas. Muitos nomes para pessoas irrelevantes e ausência de nomes para pessoas importantes.

- Mas, Alceu, é justamente essa a tônica dos evangelhos, exaltar os mais humildes. ‘Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros’, lembra-se?

 - Sim, Senhor, lembro-me, mas, perdoe-me, não resisto à tentação de fazer-lhe uma pergunta mais contundente e que incomoda-me há muito tempo.

- Pois pergunte-me, então, Alceu!

- Por que existe esta teoria nos dias de hoje de que os evangelhos foram criados após a sua morte para exaltar a figura do Mestre e diminuir seu poder.

- Meu Deus, Alceu, de onde você tirou esta ideia? Os evangelhos são os livros mais divinais já escritos na história da humanidade. Minha missão era apenas divulgar as boas novas do Mestre entre os gentios através da ressurreição dos mortos, um milagre que o Mestre operou e trouxe esperanças a todos os que tem fé e acreditam sem terem visto. Os evangelhos são livros magníficos que discorrem sobre todo o ministério de Jesus Cristo na terra e transmitem seus ensinamentos a todos os seguidores.

- Senhor Paulo, volto a questão dos nomes. O Senhor tinha um nome de rei, Saul, o primeiro rei dos hebreus, se não estou enganado, e o trocou por um nome grego, Paulo, que significa ‘baixo’ ou de baixa estatura. Isto não teria sido uma maneira de diminuir seu poder? Uma pessoa com o poder de um rei que passa a ter o nome de uma pessoa de importância menor!

- Não, Alceu, é exatamente o contrário. Trata-se desse homem diante de você, um arrependido perseguidor dos cristãos que se apequenou para não mais perseguir, mas servir com humildade.

- Bem, Senhor Paulo, quando o Senhor perseguia os cristãos o Senhor mandou matar um de seus mais fortes oponentes, Estevão. Isso não era uma luta pelo poder?

- Não, Alceu, esse foi um dos atos dos quais mais me arrependo em toda minha vida. Não se tratava de luta pelo poder. Era apenas meu ódio pelos cristãos e meu desejo de destruir um de seus maiores líderes e todos seus seguidores, e eu teria continuado a matá-los todos não fosse a intervenção do Mestre que salvou minha vida, convertendo meu ódio em amor à humanidade e à sua causa.

- Senhor Paulo, eu volto a questão dos nomes porque eles são muito significativos. O Senhor tinha um nome de rei e Estevão em grego significa ‘coroa’, coroa de rei. Ao mandar matá-lo o senhor não estaria tentando tomar seu lugar?

- Não, Alceu, eu não estava tentando tomar o lugar de um cristão. Na verdade, eu estava querendo destruir todos eles.

- Senhor Paulo, quero fazer-lhe uma última pergunta: Tem certeza que o Senhor não conheceu o Mestre em vida?

- Eu não o conheci como os apóstolos o conheceram, mas posso dizer que, praticamente, eu o conheci em vida porque, embora ele tenha sido assassinado, ele ressuscitou dos mortos e, mesmo depois de sua ascensão aos céus, ao lado de Nosso Pai, ele veio a mim para converter-me e tornar-me o principal mensageiro de suas boas novas. Mas, Alceu, por que você insiste tanto em me incriminar de  maneira tão implacável e inexplicável?

- Senhor Paulo, o Senhor não foi digno de ter seu nome mencionado em nenhum dos evangelhos, e acho que João foi o único que decidiu, com sutileza, dizer a todos nós quem o Senhor foi, na verdade. Eu acho que o Senhor era aquele serviçal chamado Malco a mando dos Fariseus porque este nome, Malco, em hebraico significa ‘rei’.