sexta-feira, 28 de julho de 2023

À ESPERA DE GODUFO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Matilda era impulsiva, volúvel e da cor amarela indomável que rechaça todo tipo de atenuação e transborda da tela onde o pintor tenta enclausurá-la com outras nuanças. Ia de um extremo a outro, de borboleteira a beatlemaniaca. Com a mesma inflexibilidade da cor da gema que substituiu os besouros bretões pelas borboletas tropicais, Matilda abandonou estas últimas bisonhamente emolduradas nas paredes de sua casa e passou a perseguir óvnis, estes objetos não identificados chamados discos voadores. A escolha dessa nova presa deveu muito ao livro de Eric Von Daniken, Eram Os Deuses Astronautas, que abriu novos horizontes perdidos para Matilda, e do segundo livro desse autor, As Provas De Daniken, para o primeiro sobre os misteriosos óvnis, A Verdade Sobre Os Discos Voadores, de Donald E. Keyhoe, foi um salto rápido e previsível no abismo. Em menos de dois anos, Matilda já era bem versada sobre o assunto e ainda teve um contato imediato do terceiro grau com o Dr. Allan Hynek, um astrônomo considerado a autoridade mais respeitada da época nos meios da mais nova pseudociência e que trabalhou quase duas décadas num projeto secreto da força aérea da terra dos libertos chamado livro azul que tinha por objetivo investigar se alguém ou alguma coisa estava invadindo o espaço aéreo americano. O encontro com o criador das primeiras categorizações ufológicas e que foi convidado por Steven Spielberg como consultor no seu filme ET, ocorreu em São Paulo, e no terceiro e último dia das palestras deste renomado ufólogo, Matilda conseguiu abordá-lo nos bastidores para lhe pedir um autógrafo e não perdeu a oportunidade para fazer a clássica pergunta de quem deseja acreditar em algo, mas que precisa de um ser superior para sancionar sua nova crença: Sim, eles existem, mas eu estaria mentindo se eu lhe dissesse de onde vêm, pois ninguém sabe nem mesmo o que eles são, respondeu o Dr. Hynek. A resposta não contribuiu muito para as expectativas messiânicas de Matilda, mas não impediu os seus esforços jesuíticos de catequização tal qual a primitiva igreja cristã que prometeu aos seus fiéis que a sua geração testemunharia o retorno de Jesus, mas como ele não apareceu, tratou de preparar suas comunidades para uma segunda vinda do cristo num tempo a perder de vista e a recomendar prudência e vigilância porque ninguém mais sabia o dia e a hora do temido dia da volta do filho do deus terráqueo. Ainda que esse deus assim como os alienígenas permanecessem em seus altivos pedestais e fora do alcance dos olhos de Matilda, esses óvnis pareciam estar dando sinais de aproximação a várias pessoas em todo o mundo e o que causava fascínio em Matilda era o fato de ainda não se saber, oficialmente, o que eles eram e isso a impelia a fazer prosélitos pelo simples prazer de impressionar as pessoas e não necessariamente para suprimir suas próprias incertezas mediante a propagação de suas ideias. Matilda sempre era movida por desafios e novidades e os óvnis eram um modismo que a fez se sentir tão próxima de deus como nunca estivera antes. Ela passou a nutrir sentimentos de grandiosidade, desejosa de ser uma pessoa diferenciada e privilegiada, detentora de uma revelação a ser dividida com poucos e pregava como um João Batista preparando o caminho dos seres cinzas e endireitando suas veredas para o encontro final. Para manter o astral elevado, Matilda vivia cantando a música Calling Occupants Of Interplanatery Craft, dos Carpenters, reconhecida pelos novos cultistas como o hino oficial do dia mundial do primeiro contato entre os símios do planeta terra que andam sobre duas patas e os ultra-emissários interplanetários. Mas Matilda não se contentava em confinar seu ímpeto precursor numa área tão distante e isolada como a ribeira do Jordão e ampliou suas audiências perigosa e pateticamente para todas as esferas sociais. No primeiro dia de seu novo emprego, ela ocupou os noventa minutos do horário do almoço fazendo uma síntese do fenômeno ufológico e deixou suas novas colegas indagando como ela teria conseguido passar no exame psicotécnico. No velório de sua avó ela conseguiu roubar a atenção de uma rodinha de contadores de piadas por quase duas horas. Com o passar dos anos e com os óvnis cada vez mais mostrando indícios de que eles não eram projeções das mentes humanas, mas, ao contrário, os humanos eram as projeções deles, o interesse de Matilda pelos extraterrestres passou para um segundo plano, diminui, esmaeceu, descorou aos poucos, assim como o amarelo que segue sua tendência natural ao claro e guarda uma afinidade intensa e física com o branco, como bem observou o artista e teórico abstrato Wassily Zandansky. A volatilidade de Matilda a levava a migrar para qualquer tom, sem baldeações e sem gradações, com a mesma disposição que ela tinha para sair de um estado de profunda melancolia para outro de puro êxtase. Sua inclinação à alvura, em particular, era ambivalente, como o positivo do retrato de sua alma, mas negativamente carregada de todas as misérias humanas resgatadas de volta a uma caixa de Pandora, e recomposta de todas as cores do espectro devolvidas à sua fonte original através do mesmo prisma que as separaram, transformando-o na cor que não representa apenas a ausência de cores ou a soma de todas elas, mas também uma contraposição ao nada que é gelado, escuro e assustadora e desproporcionalmente maior do que o insignificante todo para o homem, essas pedrinhas luminosas e solitárias que salpicam o breu sem-fim. Matilda se desviava para o branco não porque ela fosse pura, pois nem mesmo seus terapeutas tinham acesso ao seu lado sombrio, e nem porque fosse uma pacifista por convicção, mas por conveniência, pois sua apologia a não violência era apenas um simulacro para camuflar sua paura, daí o fato de sua face parecer estar invariavelmente pálida de sobressaltos. Ao sabor das monções e em atrito com infortúnios, Matilda empreendia odisseias como um Ulisses retirante, instigada a sair em busca de aventuras, como se o destino não permitisse que sua vida tivesse interstícios ou sofresse solução de continuidade, sempre lhe aflorando uma nova veneta logo que uma velha começasse a minguar. Por onde andava Matilda ainda carregava consigo seu acervo de relatos sobre visitantes de outros cantos do universo e quando a ocasião se oferecia, por estar na entressafra e por falta do que falar, ela entortava novos incautos com as mesmas histórias, agora não mais com o mesmo entusiasmo amarelo e contagiante, mas apenas com uma centelha esbranquiçada e nada interessante. Um desses novos imprudentes não se empolgou nem um pouco com suas fábulas, mas se apaixonou por ela e logo se tornou seu novo cristo, mais tarde apelidado por Matilda de Mensageiro da Enganação, um nome inspirado no título de um livro do ufólogo Jacques Vallee. Como acontece com todos os filhos do homem, Matilda passou por várias fases na vida, cada uma delas de duração variável e marcada por uma profusão de opiniões, interesses, vícios e credos que são despudoradamente jogados na privada de tempos em tempos deixando menos vergonha do que fedor. Mas Matilda sempre precisou de um eixo em torno do qual suas manias efêmeras e cíclicas pudessem orbitar elipticamente como um asteroide que não se importa quão longe ele possa às vezes estar de sua estrela mãe contanto que ela permaneça sempre lá, no mesmo lugar, sempre lançando luz sobre sua trajetória e mantendo sua cauda alinhadamente para trás tal qual seus cabelos acariciados pela brisa do mar. Este centro gravitacional era um ponto de referência, um alguém que estivesse à sua altura em termos relativos, e abaixo dela e de deus em termos absolutos. Um tipo de guru não charlatão que desse mais do que validez às suas opiniões e ainda se prostrasse aos seus pés como uma divindade submissa. Não um líder que escolhesse sua meta e a conduzisse até ela, non ducor, duco, ou um conselheiro que sugerisse mudanças nos seus planos, ou um guia ou um orientador que lhe mostrasse o caminho, mas apenas uma diva que tivesse pelo menos algo em comum com ela, que tivesse um conhecimento geral aparentemente parco e que a motivasse a superá-lo, deixando-a ser o centro de suas atenções, ouvindo-a, admirando-a e engrandecendo-a e, ainda que pudesse ser autônoma para arrebanhar seus próprios admiradores, deveria se resignar com o papel de figurante para que Matilda se sobressaísse como a atriz principal. Tal potestade podia ser filho de homem nascido de mulher, mas de natureza glamorosa, como a Miranda Priestly da moda cuja opinião é a única que importa, e deveria se apequenar sob a sombra de Matilda e ser pega para seu cristo particular, como o Personal Jesus do Depeche Mode. Matilda tinha ciúmes desmesurados dessas divindades e se melindrava a ponto de mandar tomar banho até mesmo seus familiares se estes lhe furtassem seu tempo com elas ou desviassem suas atenções para outras pessoas. Se suas deidades morressem, morreriam também todas suas motivações correspondentes ao período que atravessava e com elas Matilda podia se afogar como um salva-vidas despreparado que é levado para o fundo da água pelos braços fortes de um desesperado. Matilda tinha dificuldades crônicas para se livrar da dependência destas divindades, como um viciado inveterado que só consegue deixar as drogas com ajuda médica e ao custo de muito sofrimento. Só mesmo o tempo, o remédio que não faz mais efeito e a visão de uma nova imagem primitiva permitia que uma déia dessas fosse milagrosamente largada no esquecimento, num ostracismo involuntário. Na infância e na adolescência Matilda teve um cristo chamado Joe Citadino que nunca entendeu a indiferença e o desprezo de Matilda por conta do seu total desconhecimento das sequelas deixadas pelo abalo emocional e incurável que ela sofreu na juventude e que dividiu sua vida em duas: antes e depois do colapso. E assim como Estragon e Vladimir de Samuel Beckett esperaram pelo amigo Godot que não apareceu e concordaram em ir embora mas não esboçaram nenhum movimento, Matilda morreu sem ver seu disco voador e suas duas vidas nunca saíram do lugar.


AS ÚLTIMAS HORAS DE VIRGINIA WOOLF


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

As horas, Por que elas se demoram, E quando chegam vão embora? Por isso esta minha mensagem solitária e breve, Para ser hora esquecida, E não esperar por mais instante, Para tirar um peso oneroso das suas costas, E por para dormir sonhos de que desde sempre me levanto, Pois minha luta está pela hora da morte, Que não tarda, Não se atrasa, E nesta hora de cancão pegar menino, Mantenho acesa a lâmpada da imaginação quando tudo está em silêncio, No fundo do mar, No ventre materno, Sem tempo para ver de que lado sopra o vento, Sem sono, De olhos arregalados, Sem cochilos e despertares, Porque já estou em cima da hora, Já não tenho mais tempo para juramentos, Se não me apressar agora, Nunca vou te ler, Nem te escrever, Não posso mais ter horas para a liberdade de sua criação, Para o prazer da sua leitura, E da sua audição, Oras, O que são essas horas? Por que esperar para produzir em boa hora? Por que achar que as más escolhas são sempre feitas na última hora, Em má hora? Para que fazer hora? Por que esperançar que a inspiração venha fora de hora, A desoras? O medo que me retrocede, Da soleira da porta banhada pelo sol contente, Até as horas mortas sob o luar doente, Vem da minha frívola insegurança, De meu arrependimento da hora que nasci, Da hora que morri, Então, Meu benquerer, Saio à boca da noite, Faço horas pelos jardins, Até encontrar-me com as águas de olhos fundos, Irmãs na dor, Chorando comigo minhas mágoas, Dou-lhes meu beijo de boa noite, Deixo-lhe saudades, Meu amor pela sua bondade, Por ter sido feliz ao seu lado, Para te deixar criar, Para levar minha maldição embora, E não te ver mais aflito, Te deixar livre de minha eterna aparência triste, Minha insistência doentia, Que cria coragem com a prece saída de seus pensamentos, Tudo nas melhores horas e nos melhores momentos.