Eu já nasci assustado,
recapitulando fragmentos de sonhos bizarros, com estigmas congênitos, sem a
mínima noção de que um dia iria acabar dando errado. Não pretendia ser o que
Deus não queria que eu não fosse, nem atinava para o que o simples fluir da vida
escancara. E disse George que ela segue fluindo dentro de mim e sem
mim. E disse Lilian que, ao passar por mim, ela fecundou-me com medo. Um
elemento que quintessenciou meu espírito inseguro. Eu tenho medo da água agitada
do mar, da terra alheia com frutos para roubar, do fogo da vela se apagar e do
terror noturno que sufoca o ar. Por que abandonaram-me por um velório à noite e
sem nenhuma luz para guiar-me na escuridão habitada por ventos uivantes? Num
raro momento em que o temor descuidou-se de mim, eu ceifei a visão que não
pertencia-me e carreguei uma culpa que só dissipou-se com outra. Por que no
calor de uma festa de carnaval escolheram-me para ser assombrado com uma máscara
tão horrenda? O salto que todos nós estamos condenados a dar da luz para o
umbral, misteriosamente, levou embora de minhas lembranças uma parte de minha
maternidade. Um enigmático portal entre este e o outro mundo levou-a daqui para
sempre. Não espanta-me mais aquele prato de comida espatifado contra o chão da
cozinha, mas intriga-me, ainda, aquele coelho branco enforcado na maçaneta da
porta que frequentou minhas fantasias tantas vezes. Eu corro atrás da vida.
Corro para salvar uma vida em minha vida. Mas é ela que leva-me e agarro-me ao
primeiro tronco que flutua neste rio que eu sei que vai desembocar no mar. Saio
pelos afluentes, dou cabeçadas nas suas margens e volto à correnteza mais forte
sempre um pouco mais fraco. Olho-me no espelho e vejo a morte pela primeira vez.
Ela é companheira do meu pavor e rouba-me tudo o que Deus desejava que eu fosse.
O demônio oferece-me ajuda e os anjos que sempre pressenti observam à distância.
Vou morrer sossegado, mergulhado na profusão de meus sonhos preciosos, mas com a
marca do arrependimento, com a nítida impressão de que tudo o que fiz de errado
não pode mais ser consertado. Pretendo ser tudo aquilo que satanás disse-me não
ser proibido, dando mais atenção à imobilidade das trevas. E disse John que
minha vida foi tudo aquilo que passou enquanto eu fazia planos para ela. E disse
Lilian que, ao passar por ela, deixei de cultivar os campos. Um de Vênus e outro
de Marte, sem deixar que florasse o que Deus plantou. Perdi o medo da natureza
animada e inerte, dos homens a sete palmos e de dedos engatilhados, de morrer e
de matar. Por que confundiram-me com uma convenção do cotidiano à revelia
esperando que eu soubesse quais portas abrem-se para o equilíbrio dos normais?
Na minha ingênua irresponsabilidade eu desperdicei todas as oportunidades que
foram-me oferecidas e sobrecarreguei incautos com uma perda atrás da outra. Por
que no embalo de minha ambição ofusquei a visão da simplicidade da vida com
tantas máscaras perecíveis? Um tenebroso abismo separa-me das melhores
lembranças abandonadas pela minha paternidade. Um inexorável ímpeto prende-me
entre dois mundos. Mais vale para mim uma mentira deslavada que sai de minha
boca desprevenida, mas não entendo porque esta vontade de viver perigosamente
continua perseguindo-me por tanto tempo. A morte corre atrás de mim. Corre para
arrebatar a última centelha de vida dentro de mim. É a morte que agora
impulsiona-me e sou arrastado a cada lembrança de fracassos que frequentam meu
sono nestas águas turbulentas que não sei onde vão dar. Afluem agonias para
minha mente onírica, meu ser vígil sufoca-se com as sequelas de seus sofrimentos
e sou empurrado cada vez mais para o fundo, cada vez mais distante da
superfície. Olho através de meus olhos e vejo minha alma pela primeira vez. Ela
ainda caminha ao lado do meu corpo, mas já desarmonizam-se os dois, contrariando
os planos divinos. O demônio oferece-me um preço por ambos e os anjos acercam-se
para fazerem seus lances.