quinta-feira, 14 de novembro de 2024

UM DIA SEREMOS ENCONTRADOS





Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Mulher, Não posso aceitar a irrogação de pecha de sandeiro, Sim, Concordo, Sandeiro é um neologismo pra lá de mixe, Pior que sandejeiro, Mas não pense que vou baixar meu fogo, Quer você queira me ver como um indivíduo de difícil convívio, Ou um gênio complicado, Um gênio tal qual luz que de tão forte fascina e ofusca sua carência e sua dependência de minha atenção, Conforme-se, Mulher, O mundo verga os joelhos, Ansioso, Suplica à terra e ao céu, Para que tudo que é dito e escrito tenha pé e cabeça, Para que tudo faça sentido, Mas eu cuido apenas dizer-lhe o amor que me tortura, O amor que a exalta e a pede, A chama e a implora, Então, Minha querida, Deixa de ser o bom senso que me puxa as orelhas, Que se irrita, Como se eu fosse um cheiro amoniacal, Acre e forte, Dentro de suas narinas, Que estrago suas noites, Enquanto você boceja sobre os poucos in-fólios que dou-me ao trabalho de te ler para que percebas quantas lágrimas de tristeza estanco nos recônditos de minha solidão, E ainda assim, Você quer me impor dois castigos, Ajoelhar no milho por duas horas, Seu preferido, Dói no joelho, Mas cura a dor da alma, E revela minha unicidade, Que você acha que não reconheço, E não valorizo, E de onde você tirou a ideia que tento comprar a amizade de meus filhos com bens materiais? Nenhum de meus sacrifícios conta? Ego autem in innocentia mea ingressus sum: redime me, et miserere mei, Ah, Agora você me lembra que o que me disse no inicio de nossa conversa foi sendeiro, Sendeiro? Você quer dizer que sou um sujeito desprezível por meu servilismo? Você não estaria referindo-se às dimensões extensas dos muitos universos para os quais você não atina? Ah, Sim, Você atina para alguma coisa, Para sua nora nissei que se preocupa com os japoneses que estão muito silenciosos, Comendo pelas beiradas, E que nunca esquecerão o que os americanos fizeram com Hiroshima e Nagasaki, Mas, Perdão, Sua nora ainda não percebeu que calados são os chineses, Que nunca esquecerão o que os japoneses fizeram com eles na segunda guerra mundial, Pode apostar em qualquer casa de Londres, Eles tomarão toda a Ásia de roldão, E em um século mais, O resto do planeta, Alienação não lhe trará alívio, E fora da caridade sempre há salvação, Mas você se vitima, Diz que abriu mão do carro que tinha simplesmente porque dirigir é algo que não condiz com seu modo de ser, E se desloca horas madrugada adentro só para falar comigo, Para me dizer que deseja ser freira fora do convento, Para me dizer que se entristece quando desce de um avião, Que quer viver no ar, Então vá voar nos barrancos das nuvens e flori-los com requinte excessivo de um hábito preto sempre na moda, Quem sabe você esquece que nossos corpos não são emprestados? Que nascemos e morremos uma única vez? Mas você insiste em se lamentar, Deve haver algo mais, Não podemos estar simplesmente largados aqui à nossa própria sorte, E o pior é que estamos, Não só neste universo, Porque eles são incontáveis, Os teus só de dimensões paralelas que viajam na maionese, Os meus guiados pela lógica, Pela razão, Desprovidos da mistificação do significado da vida, E então, Agora vai me dizer qual é o segundo castigo? Eu não gosto de água, Mas te levo de barco em alto mar, Invoco uns amiguinhos que só eu conheço, Você se atira na água, Junto a eles, Tubarões, Nada até a praia na companhia deles, Morrendo de medo, E quando você pisa em terra firme, Você descobre quem realmente é, Duvido que algum dia saberei quem realmente sou, Mas concordo com você: Deve haver algo mais, E não seremos nós que descobriremos, Um dia seremos encontrados.


NO CRÂNIO DA AMÉRICA E DO MUNDO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  

Allen Ginsberg, poeta americano da contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60, ainda se lembra muito bem daquela noite, do momento exato, quando foi a um lugar em Nova Iorque chamado THE DOM, e os Beatles lá cantaram I WANT TO HOLD YOUR HAND, com aquele som contralto intenso, OOOH, que entrou direto no seu crânio e, num instante, percebeu que aquele som iria entrar direto no crânio da civilização ocidental. Allen começou a dançar em público pela primeira vez na sua vida. Ele sentiu um prazer e um relaxamento impetuoso, mandando às favas toda timidez e todas as preocupações da vida. Os Beatles tinham um ritmo alegre. Suas vozes eram generosas, francas, joviais e solidárias. Eles não eram apenas quatro caras formando uma banda. Eles se amavam, tinham muita consideração uns pelos outros. Allen lembra-se que naquela noite no THE DOM se deu conta que a dança dos negros havia sido devolvida aos brancos ocidentais, que as pessoas iriam retornar aos seus corpos, e que os americanos iriam rebolar. Os Beatles mudaram a consciência dos americanos. Inventaram uma música repleta de masculinidade aliada a ternura e vulnerabilidade cabais. E quando foi aceita na América, esta música, mais do que qualquer outra coisa e qualquer outra pessoa nos EUA, ensinou os americanos a terem uns com os outros um certo tipo de relação mais afetiva, mais sincera e de mente mais aberta. Os Beatles fizeram isso com a América e com o mundo inteiro. Na mesma época, eu tinha apenas 15 anos e já havia sentido I WANT TO HOLD YOUR HAND não apenas penetrar em meu crânio, mas também cortar meu coração, quando eu, inocentemente, brincava com o jogo de botão e pela primeira vez em minha vida senti minha alma extasiar-se, arrebatar-se e comover-se com uma música saindo do rádio ao meu lado. Eu era tímido e bipolar, mas já conseguia dançar em público nos bailinhos nas casas dos amigos nos fins de semana. A partir daquele momento, aprendi também a tocar guitarra e a cantar, cantar em inglês todas as músicas dos Beatles. Meus amigos também se apaixonaram pela música dos Beatles, mas não entendiam o que eles diziam naquela língua estrangeira. Mas entender para quê? Música é melodia e não letra. Quem gosta de palavras lê poesia. Quem gosta de música não se importa se ela é cantada em língua viva ou morta. O que importa é a melodia, o arranjo, a progressão e originalidade melódicas, a voz humana, solo ou em coro, fazendo apenas o papel de mais um instrumento no conjunto. São estes ingredientes, e não as palavras, que alimentam a alma. E almas de todo o mundo conheceram um novo alimento que não se provava desde os tempos de Beethoven, Mozart, Bach e outros gênios da música clássica, que era, predominantemente, instrumental, sem palavras. Meu pai, só com curso primário, adorava os fab four, especialmente a música Please Please Me. Quando ele ouvia o refrão Come On, Come On, ele me perguntava por que eles sempre repetiam as palavras Qua Mão, Qua Mão. Alguém reclama da falta de letra ao ouvir a belíssima Bolero de Ravel de um único movimento?