sábado, 28 de outubro de 2023

O ANO DO MACACO


Texto de autoria de AustMathr Viking Dublinense com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Cito aqui um parágrafo da crônica ‘O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas’, de Marcos Augusto Gonçalves, publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 26 de Outubro de 2023: '‘A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki’'. Neste conto, escrito por AustMathr há muito anos, ele ‘não acha que talvez’, mas afirma, categoricamente, que as duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki são, sem dúvida nenhuma, não apenas um crime de guerra, mas o maior genocídio já praticado na história da humanidade. E os americanos NUNCA foram levados a júri. O pior é o cinismo americano ao dizer que praticaram aquela atrocidade para encurtar a guerra e poupar vidas de seus heroicos soldados, e continuam, como diz Marcos Augusto Gonçalves, ‘'com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do "mundo livre". Somente em Hiroshima, das 150,000 pessoas que foram mortas, 95% eram mulheres e crianças! Os americanos queriam apenas testar os efeitos que uma arma nuclear causam ao ser humano. E conseguiram! Agora eles sabem quantas mulheres e crianças ele podem assassinar em massa! Há mais motivações desumanas e consequenciais horríveis dessa perversidade que os americanos varrem debaixo do tapete hipócrita da mentirosa e charlatã democracia que eles inventaram para os ingênuos. Muito bem, vou parar de dar spoilers sobre mais este espetacular e inigualável conto de AustMathr. Ainda não encontrei a palavra correta para definir esta experiência de AustMathr. É uma mistura de sonho lúcido com viagem no tempo e com convergência de 3 conceitos humanos que não existem: presente, passado e futuro. Gwendolyn Marie-Baxtor (vulga Inglesa Luso Chinesa) 28 de Outubro de 2023.


Estávamos na selva há quase dois meses, desde o começo de Dezembro, molhados das torrentes que não distinguiam o dia da noite, das águas encorpadas de barro dos rios que empastavam a roupa no corpo, o cabelo sob o capacete, cheirando a mofo. Estávamos esgotados, infectados e até mesmo imunizados por todos insetos da região que deviam nos identificar pelo tipo sanguíneo. Dormíamos poucas horas a cada dois, três dias. Eu ficava sempre olhando para o céu nublado esperando ver queima de fogos celebrando a passagem do ano. Quem sabe um de nossos espanadores passasse pela área cegando a escuridão com mil e quinhentas labaredas por minuto. Ou então umas de nossas mortes sussurrantes com suas enormes línguas de fogos em forma de leque que viajavam longe e deixavam rastros resplandecentes até desparecerem como estrelas cadentes, depois de, literalmente, dizimarem todas as formas de vida num raio de um km. Já devíamos estar no final de Janeiro e não vi nenhuma comemoração, nem do ano novo solar, nem do novo ano lunar. As nuvens que desaguavam estacionavam nas alturas e esperavam ver um espetáculo de artifícios pirotécnicos. Eu tinha cocaína e papelotes de maconha suficientes para mais umas duas semanas. Deviam faltar poucos quilômetros para chegarmos ao principal posto de comando. A mata fechada começava a se abrir, as árvores mais grossas espaçavam-se e bem lá no fundo do horizonte já se podia ver pequenos clarões de civilização pulsando por entre a vegetação. De repente, sofremos mais um daqueles ataques súbitos. Atiramo-nos ao chão e fizemos dos arbustos rasteiros trincheiras improvisadas. Não tínhamos nenhuma ideia de onde partiu o bombardeio. Estranho foi que este não era como as costumeiras investidas de nossos adversários e mais parecia uma  das nossas, como fogo amigo. Mas a prova de que não era foi a forma como fomos facilmente identificados naquele negrume e alvejados com precisão, com a certeza de que não estávamos sendo confundidos com os nossos inimigos. À noite, costumávamos varrer o perímetro com holofotes infravermelhos que nos permitiam identificar a localização exata dos nossos adversários sem que eles soubessem que haviam sido descobertos. Em seguida, os holofotes eram revertidos à luz visível, deixando nossas presas sob a mira implacável de nossos morteiros. Agora, estávamos na posição inversa. Eu via até mesmo holofotes sendo usados para rebater luz nas nuvens para melhorar a visão de patrulhas em terra e pelotões próximos utilizando telescópios. Eu me via cercado de claridades por todos os lados e as bombas que caiam sobre nossas cabeças sem parar transformavam aquele sedimento úmido, infestado, abafado e caliginoso no verdadeiro inferno do qual falavam-me quando era criança. O meu companheiro do lado esquerdo disse-me:
Temos que fazer alguma coisa rapidamente senão vamos morrer. Eu sei como sair daqui. Siga-me.
Ele falou-me com voz de superior, mas bem amistosa. Eu tremia de medo e agarrei-me ao uniforme daquele que parecia ser de patente mais alta e deixei-me ser arrastado por ele. Talvez só ele percebeu que todos estavam mortos e que sobraram só nós dois. Borrei as calças de pavor e não largava de meu companheiro. Rastejamos por quilômetros, noite adentro, feito répteis ainda não adaptados ao chão da floresta, nos esfolando, com bocas abertas e esbaforidas, engolindo mato e insetos e eu socando cocaína nas narinas. Os insetos também estavam mais preocupados em bater em retirada do que em fazer a habitual refeição noturna. O estouro dos foguetes impulsionava-os à nossa frente. Num dado momento, meu companheiro ergueu-se com serenidade. Ainda deitado, olhei para trás e percebi que não havia mais bolas de fogo no céu. Só ouvia a cantoria dos costumeiros noctâmbulos e famintos parasitas, agitados com  o atraso do jantar. Começamos a caminhar. Notei que a selva havia ficado para trás. Abrira-se à nossa frente uma enorme clareira, mas não era um vilarejo. Era uma imensa área desolada, com apenas um sinistro edifício bombardeado e abandonado. Meu companheiro fez sinal para que eu esperasse e, com cautela, olhando para os lados, aproximou-se furtivamente do prédio e, à sua entrada, deu sinal para que eu viesse e despareceu ao subir as escadas. Apertei os passos com as pernas bambas para alcançá-lo. Quando cheguei no topo do primeiro andar, surgiram dois cachorros dobermann atrás de mim, galgando dois degraus de cada vez, prontos para atacar-me. Eram bem mais velozes do que eu e iam devorar-me. Gritei. E o meu companheiro falou lá de cima
Feche a porta atrás de você.
E de fato havia portas de metal que separavam os andares. As duas feras, bravas, raspavam a porta, ensandecidas, com unhas ruidosas, como se soubessem que podiam abrir um buraco através dela. Continuei a subir. Percebi que as escadas eram feitas de metal sólido, com várias perfurações circulares que permitem enxergar através delas, como aquelas escadas e andaimes dentro de fábricas. Enquanto passava de um degrau para outro, sentia firmeza e segurança. Cheguei ao último andar. Um enorme salão vazio, sujo, com vários objetos quebrados e espalhados pelo chão. E lá estava meu companheiro, sentado no que sobrou do batente da janela, uma perna para fora, outra sobre o beiral e dobrada, servindo de apoio para seu cotovelo que levava a mão à cabeça de olhar perdido, estático, contemplando a paisagem. Assim que esbocei dirigir-lhe a palavra, ele saltou, assustado, levou o indicador aos lábios a  pedir-me silêncio, e apontou a metralhadora para a porta que dava acesso à escada. Ouvi passos acelerados e destemidos de quem sabe onde quer chegar. Bem à nossa frente despontou um jovem soldado, com menos de 20 anos, louro, uniforme intacto e limpo. Sorridente, mas respeitoso, ele bateu continência e disse:
Recruta apresentando-se ao comandante para ser levado ao front.
Descansar, recruta. Por que você quer ir ao front?
Senhor, meu avô morreu na primeira guerra mundial, meu pai na segunda e, seguindo a tradição da família, eu devo lutar até a morte nesta.
Está bem, amanhã cedo te levarei ao front. Descansar!
Obrigado, senhor!
Como se estivessem seguindo o script de um filme, cada um, naturalmente, procurou um canto para se recostar. Mantive-me de pé, aproximei-me do companheiro que passei a chamar de comandante, pois era clara sua ascendência sobre nós, mas ele antecipou-se às minhas perguntas.
Soldado, estamos cansados e precisamos dormir. Amanhã temos uma longa jornada. Temos que levantar cedo para levar este herói ao front e depois voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. Boa noite.
Eu deveria estar morto porque é impossível sobreviver a uma investida tão implacável como a desta noite. É impossível acreditar em tudo que ocorreu desde a ofensiva de nosso inimigo até chegarmos neste prédio. Se estou morto então sou um daqueles espíritos que, segundo os adeptos da vida após a morte, permanece no local de desencarne e segue vivendo normalmente. Será este também o caso daquele jovem herói e deste estranho comandante que continuam existindo sem saber que já morreram? Depois de tantos acontecimentos utópicos que vivenciamos não há nada mais quimérico do que este comandante planejar um retorno a este edifício para me mostrar algo que nunca vi antes. Pior do que morrer sem saber é sentir o gosto amargo de uma impensável derrota. Quando me alistei voluntariamente para esta guerra estava preparado para tudo, logicamente para uma vitória inapelável em primeiro lugar, mas não para morrer. Vim aqui para lutar pela liberdade dos povos, para evitar que um efeito dominó alastrasse o mal por toda uma região e a subjugasse. Meus governantes me passaram a certeza de que esta é uma guerra já vencida e que precisamos só de um pouco de tempo e paciência para voltarmos para casa com mais louros de nossos sucessivos triunfos. Foi a plena consciência de nossa esmagadora superioridade no mundo, comprovada pelos nossos êxitos em conflitos mundiais e regionais recentes, que levou a maioria de jovens como eu a se apresentar para servir minha nação por livre e espontânea vontade. Apesar de nossa supremacia, teremos baixas. Numa guerra sempre há baixas dos dois lados. As nossas serão mínimas. De acordo com meus superiores, bem menos de meio por cento retornará em caixões e no máximo dez por cento sofrerá ferimentos, graves e leves. Menos de meio por cento é um número desprezível, mas sempre rezei para não fazer parte dele. Seria o mesmo que ter a sorte de ganhar sozinho na loteria. Não desejo nem este azar nem esta sorte na vida. Estes dez por cento de inválidos me dão calafrios. É um percentual considerável. Uma em cada dez pessoas é canhota, e eu conheço muitos canhotos. De acordo com alguns pseudo cientistas, é de uma em dez as chances de eu estar sonhando neste momento. E se estes fanáticos por fantasias científicas estiverem certos? Posso estar inconsciente após ter sido gravemente ferido e tendo pesadelos. Se não estou morto e nem sonhando, então tudo isso se deve aos alucinógenos que tomo em grandes quantidades todos os dias. E hoje abusei na quantidade de tanto medo de morrer. Eles são imprescindíveis. No início me revoltei com a necessidade de ter que usá-los, mas hoje não mais suportaria estar aqui sem eles. Apesar de nossa determinação e valentia, os soldados,  recrutas e veteranos, receberam um arsenal de drogas para poder enfrentar o inimigo. Como pode uma superpotência como a nossa ter que tomar drogas para ter coragem de enfrentar nossos inimigos? Eles são pequenos e frágeis, ratos de esgotos que fazem tocas nas florestas tropicais e nos surpreendem com frequentes emboscadas. Eles são covardes. Não têm coragem de lutar em campo aberto como  nós. Poderíamos dar uma solução final a este paizinho, sair daqui e jogar bombas atômicas sobre eles, como já fizemos com outra nação. Fui para um dos cantos e me recostei. Não esperava dormir nesta noite. Minha adrenalina estava muita alta e meu coração batia forte. Estava extremamente aturdido e não atinava direito para o que estava acontecendo. Voltar para cá para ver algo que nuca vi? Depois de tudo pelo que passei, de tudo que vi, agora espero ver apenas o paraíso. A noite ainda não tinha terminado para mim. Na verdade, não tinha certeza se minha  vida ainda não tinha terminado também. Pela primeira vez estive frente a frente com a morte e, em virtude da sucessão de eventos misteriosos que me acompanharam até aqui, não sei se morri e estou em alguma outra dimensão, mas ainda preso à guerra, ou se escapei e estou delirando com o trauma de ter chegado tão próximo do fim, se estou sonhando ou se estou endoidecendo com uma overdose. Sentei-me num canto como fizeram os outros dois e eles já pareciam ter entrado em sono profundo em poucos minutos. O comandante tinha um sono sereno, mas um rosto sofrido e judiado, rosto de muitas guerras, longe de casa. De onde será que ele veio? Não conseguia dormir e continuei refletindo sobre tudo que aconteceu. Participei de muitas batalhas, sempre em posição de vantagem em relação ao inimigo, embora algumas vezes estivesse perto de ser atingido. Mas desta vez, nesta noite, fui surpreendido e completamente dominado pelo inimigo, à mercê dele, esperando morrer a qualquer instante. Meu pelotão todo foi impiedosamente dizimado neste ataque surpresa, exceto eu e este estranho soldado que fala e age como um oficial e que jamais tinha visto em toda minha companhia que se dividiu em três grupos rumo a diferentes posições estratégicas na mata. O horror da guerra esteve sempre presente em minha mente a cada segundo de nossas incursões pela selva, mesmo nas raras e poucas horas de sono, sempre atormentado por pesadelos fragmentados e assustadores. Quando a gente se vê em meio a um inferno como eu me vi nesta noite, cercado de explosões ensurdecedoras e intermitentes, você não espera outra coisa senão a morte. Não há tempo para rezar e você se despede rapidamente da família que nunca mais verá e se encolhe torcendo para que a morte seja bem rápida, com balas ou uma granada na cabeça. Os segundos que antecedem a morte parecem uma eternidade queimando numa fogueira medieval. Não há tempo e nem esperança por um milagre. Nem mesmo o desespero incontrolável traz à mente qualquer ideia de um possível milagre. Mas este portento surgiu na figura deste sinistro soldado que sabia como me tirar daquele martírio. Em meio ao pânico, você se agarra à menor possibilidade de sobreviver. E eu agarrei-me àquele desconhecido soldado. Mas como ele conhecia o caminho pela mata fechada, ainda mais se rastejando na escuridão? Como ele sabia como chegar a este prédio assombroso numa clareira tão distante e que lhe parecia tão familiar? E aqueles dois cães que me ameaçaram à entrada e, aparentemente, não importunaram o comandante? O que fazem dois dobermanns guardando um edifício abandonado? E este jovem recruta que surge misteriosamente do nada e sabe onde e a quem se apresentar para ser levado ao front? Nesta guerra não há front. Ela está em toda parte. Na selva, nos vilarejos e nas áreas urbanas. E o que dizer da estranha tranquilidade deste recinto e destes dois companheiros, especialmente do comandante, que não é, de fato, comandante do meu pelotão? Acabei vencido pelo cansaço e dormi com a última frase do comandante em minha mente: voltaremos a este edifício e, então, vou mostrar-lhe algo que você nunca viu. O sol ainda não tinha nascido quando fui acordado com uma chacoalhada do comandante.
Levante-se, soldado, temos que partir agora.
Duvido que eu tenha dormido mais do que duas horas. No entanto, levantei com uma disposição de quem dormiu as 20 horas de um leão. O jovem herói esbanjava saúde e determinação e um enorme sorriso no rosto. Incontinenti, descemos as escadas até o térreo. Os dobermanns já não estavam lá. O comandante tomou um caminho deslumbrante. Uma larga trilha aberta no meio da mata e por onde se podia caminhar sem ser incomodado por ninguém e ainda poder admirar a linda flora que adornava os dois lados da rota pavimentada com terra macia. O comandante certamente lia pensamentos ,pois eu mal esbocei lhe falar e ele antecipou-se.
Soldado, deixe para conversar outra hora. A prioridade agora é levar este herói ao front. Temos algumas horas de uma árdua e longa caminhada.
Seguimos andando a passos acelerados como numa maratona. Eu devia estar cansado, mas estava em ótima forma e suportava muito bem o ritmo. E, estranhamente, não sentia falta das drogas nas quais estava viciado. Nenhum de nós tinha um relógio. Mas tive a nítida impressão de termos percorrido vários quilômetros, em, pelo menos umas duas horas. Logo avistei à nossa frente um lugar muito incomum. Não era uma pequena cidade, nem um povoado, nem um pequeno vilarejo. Parecia-se muito com aquele cenário de uma passagem da mitologia cristã onde uma multidão se aglomerava em torno do rio Jordão para ser batizada por João. Só que ali não havia um rio, nem homens. Só mulheres e crianças. O que causava esquisitice era um longo corredor com grades, dos lados e no teto, muito parecido com aqueles longos corredores em forma de jaulas de prisões, especialmente reservados às pessoas condenadas a pena capital para tomar um banho de sol no pátio, isoladas dos presos comuns para que elas não fossem tocadas. Começamos a atravessar este corredor. Dos dois lados muitas mulheres com crianças no colo vociferavam contra nós, aos gritos. Não era preciso entender o que elas diziam na língua estranha a mim. O ódio contra nós estava estampado em seus olhos. Ao final do corredor, paramos. O comandante disse ao jovem herói que ele estava entregue e lhe desejou boa sorte. O jovem loiro bateu continência todo feliz, nos deu as costas e se pôs a marchar para além daquele lugar onde havia somente mato, mais nada. Eu e o comandante voltamos pelo mesmo corredor, ouvimos os mesmos gritos de lamento e ira, e voltamos pelo mesmo caminho que nos trouxe até aqui. Sabendo que teríamos mais de duas horas de andança, eu não iria esperar chegar até aquele velho edifico sinistro para cobrar explicações do comandante.
Comandante, o que significa tudo isso?
Significa que esta guerra já está perdida e devemos nos retirar.
Perdida? Impossível! Estamos esmagando nossos inimigos Eles fogem de nós como ratos pelos esgotos. A nossa superioridade é flagrante. Eles só sabem nos tocaiar e sair correndo para dentro de suas tocas. Eles não aguentam nossos armamentos. Logo eles se renderão. Como pode o senhor dizer que perdemos esta guerra?
Soldado, torno a lhe dizer que esta guerra está perdida.
Então me explique como eles estão sucumbindo todos os dias aos nossos pesados armamentos, impondo-lhes grandes baixas?
Soldado, sobre este paizinho já foram despejadas oito milhões de toneladas de bombas. 4 vezes mais do que as despejadas na guerra mundial de décadas atrás. 80% caíram em zonas rurais, matando apenas civis, principalmente mulheres e crianças. Apenas 20% atingiram alvos militares. Estas bombas abriram cerca de dez milhões de crateras no solo deste paizinho. Além das  bombas, foram lançadas 400 mil toneladas de agentes químicos sobre vilarejos, indiscriminadamente. Mais um vez matado mais civis dos que solados. Além disso, foram lançados 80 milhões de litros de agentes químicos para devastar a natureza deste paizinho e que vai causar muitas deficiências de nascença nas futuras gerações. Estão sendo deixadas sob o solo deste paizinho quase quatro milhões de minas e cerca de 300 mil bombas que não explodiram, e juntas, estas minas e bombas irão matar cidadãos deste paizinho todos os dias, durante muitas décadas. Foram mortos cerca de 1 milhão de solados inimigos, mas o número de civis mortos, principalmente mulheres e crianças, é 5 vezes maior, 5 milhões de inocentes. Então, soldado, contra quem estamos lutando e quem estamos vencendo nesta guerra?
Comandante, como você sabe numa guerra baixas de civis é sempre inevitável e esta desproporção de baixas entre civis e militares deve-se a fato destes covardes esconderem-se entre civis para nos surpreender com emboscadas. Se quiséssemos, poderíamos simplesmente jogar uma bomba atômica sobre eles e isto não faria diferença nenhuma sobre o número de mortos civis e militares, bastando o fato de que teríamos posto um fim aos homens do mal.
Soldado, você é adepto do genocídio?
Genocídio? Do que você está falando comandante?
Não preciso explicar. Você sabe do que estou falando.
Espere um pouco, comandante. Aquelas duas bombas atômicas que lançamos no passado teve o objetivo de abreviar uma guerra sangrenta e poupar as vidas de milhares de nossos soldados. E surtiu efeito porque o inimigo logo se rendeu.
Soldado, você acha que aquelas duas cidades foram escolhidas aleatoriamente?
Elas foram escolhidas porque eram fontes de produção de armamentos de nossos inimigos e com as bombas nós cortamos o fornecimento de armas que os abasteciam e, no final das contas, elas serviram de avisos a eles sobre o que poderíamos fazer com o resto do país. Por isso a rendição veio em poucos dias.
Soldado, mais de 60 cidades daquele pais foram bombardeadas com armas convencionais e apenas duas  foram deixadas intactas. Você sabe porquê?
Porque eram justamente estas duas cidades que produziam armas e para destruí-las por completo era preciso lançar bombas atômicas sobre elas.
Soldado, elas foram deixadas intactas apenas para medir o poder de destruição de seres humanos e suas habitações por uma bomba atômica. Se estas duas cidades tivessem sido bombardeadas por armas convencionais como as outras 60 não seria possível diferenciar que estrago era causado por armas convencionais e armas nucleares. Todos os civis que morreram nestas duas cidades, principalmente mulheres e crianças, deram aos idealizadores deste holocausto a resposta que eles procuravam.
No momento que ia refutar o comandante, ele me interrompeu e me pediu silêncio. Estávamos nos aproximando do edifico. Foi muito interessante o fato de termos uma breve conversa e não sentir o tempo passar tão rápido. Estranhamente, ele procedeu como na noite anterior. Pediu para eu esperar e foi sozinho até o edifício. Chegando lá ele fez um sinal para que eu viesse e, sem seguida, subiu as escadas. Quando cheguei à porta do edifício não vi os dois dobermanns. Subi tranquilamente e ao chegar ao salão no último andar, o comandante estava sentado naquela mesma janela e na mesma posição da noite passada. Quando aproximei-me dele ele fez algo inesperado e incrível. Saltou da janela para cometer suicídio. Mas ele não caiu. Flutuava no ar e ainda me convidou para saltar. Loucura total. Neste momento, pensei comigo: quer saber de uma coisa, devo estar morto mesmo e se eu saltar não tenho mais nada a perder. Então saltei, e flutuei. O comandante começou a voar e pediu-me para acompanhá-lo. Voávamos sem nenhuma resistência do ar. Uma suave brisa nos envolvia e nos acariciava da cabeça aos pés, como se estivéssemos dentro de uma bolha tão aconchegante como estar debaixo de lençóis acolhedores na noite acordada e calada. Não ouvia-se qualquer barulho. Nem de vento, nem de animais noturnos, nem de vida. Ouvia-se o som do silêncio absoluto sob a luz de um firmamento mais branco que negro e de uma lua maior que a cheia que nos guiavam através de um imenso tapete verde-escuro de vegetação abundante, salpicada por luzes tênues, amareladas, parecendo velas com chamas dançantes e bruxuleantes.
Comandante, estou surpreso. Não vejo nenhum sinal de guerra!
Você não surpreende-se por estar voando, mas admira-se por não ver uma guerra onde deveria haver uma.
O comandante imprimiu um pouco mais de velocidade ao voo e começou a assobiar uma melodia desconhecida. O som de seu sibilo chegava-me aos ouvidos em forma de palavras:
Nossos ascendentes são capazes de entoar hinos que sensibilizam os corações dos anjos. Eles cantam em seus lares e em terras estrangeiras, mas não permitem que seus habitantes os ouçam. Nós temos a vida que pedimos a Deus, mas sacrificamos parte dela para defender os nossos valores e os impomos a gente que os estranham. Dividimos nossa felicidade somente entre nossos pares, mas, mesmo entre nós, os mais fracos ficam com a menor parte dela. Nós oramos a Deus para que nos ajude a derrotar nossos adversários e a estes Deus reza para que não esmoreçam. Nós temos Deus de nosso lado e nossos inimigos do lado do mal. Eles não conseguem encontrar a paz entre seus iguais e nós queremos subtrair-lhes até suas últimas lágrimas de dor. Nesta luta desigual, Deus sente-se o maior de todos os perdedores. Só são capazes de perceber isso aqueles que nada Lhe pediram e estes são os verdadeiros vencedores.
De repente, o comandante começou a descer. E eu o segui sem vacilar. Fizemos um voo rasante e pairamos alguns metros acima de uma daquelas luzes cor de ouro velho. Ali havia uma choupana, abrigo de uma família, que reunia-se ao ar livre. Pai, mãe e filha, sentados, de mãos dadas, formando um círculo em torno daquela luminosidade áurea e quase divina. A mesma sublime mudez que acompanhou nosso voo também permeava aquele ambiente afetuoso, e eu esperava ouvi-los falar, ou, sussurrar, ou ouvir seus corações baterem. No entanto, embora muda, vida palpitante espalhava-se por toda parte e o que se ouvia era a harmonia e a paz que emanavam dos pensamentos daquelas criaturas de olhos puxados refletindo o brilho dos astros, tão naturalmente quanto nosso ato de respirar, a todo instante, a atmosfera que nos circunda, sem dar-nos conta.
Meu companheiro arremeteu e eu acelerei para acompanhá-lo.
Temos que voltar. Vou levá-lo para casa.
Minha casa. Por quê?
Meu companheiro sinalizou que deveríamos nos manter calados porque tínhamos uma longa viagem pela frente. Depois de um tempo imponderável, avistei uma enorme cidade, iluminada, que parecia-me familiar Meu companheiro puxou-me pelo braço e aterrissamos no meio dos prédios.
Você conhece este lugar?
Claro! Este é o marco zero de minha cidade!
Você sabe como voltar para casa daqui?
Claro. Logo ali tem um ponto de uma linha de ônibus que vai direto para meu bairro.
Meu companheiro disse adeus e preparou-se para alçar voo.
Mas, o que significa toda esta experiência que tivemos? Qual é a lógica de tudo isso? Quem é você?
Significados, identidades e coerências não têm importância, mas a experiência sim. Você a teve e é só isso o que tem valor.
Ele começou a afastar-se de mim e, lentamente, vi minha mão apartar-se da dele. Enquanto ela ainda pendurava-se em um de seus dedos e conformado com o fato de que ele jamais iria desvendar-me o mistério destas duas noites, resignado, despedi-me me dele.
Sabe, comandante, eu não estou preocupado se estou vivo ou morto. Sinto, no meu íntimo, que continuarei dormindo, sonhando e acordando todos os dias. Só tenho medo de uma coisa: de um dia acordar no meio de um inferno como o da noite passada e não ter ao meu lado alguém como você para me proteger.
Pela primeira vez o comandante falou-me olhando nos meus  olhos.
Aconchegue-se em meus braços, soldadinho, como um passarinho em seu ninho quentinho. Feche estes olhos maravilhados, solte de meu dedo esta mãozinha e repouse esta cabecinha cansada. Esta noite você vai dormir em paz. Nenhum mal perturbará seu sono. Não se  assuste com os sons que você ouvir. Alguns são apenas folhas de árvores levadas pela brisa de encontro à porta de sua casa. Outros, os murmúrios do mar, são apenas ondas solitárias lavando a praia. Você continuará sonhando como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos. Seu rosto resplandece sob o olhar do seu anjo que o assiste do alto. Seu amor manifesta-se em mim, desperta a esperança e faz jorrar alegria. Seu anjo desce e nos envolve com sua paz celestial.. Agora, soldadinho, é você quem me levará até o lugar do qual Eu gritei para ele esperar e ele se deteve a um metro do chão. Mais uma vez, ele antecipou-se às minhas perguntas.
Você não precisa de respostas para todas estas perguntas. Tudo o que você precisava ver e saber eu te mostrei esta noite.
É só isso que você tem a me dizer?
Sim. Não se preocupe. Você nunca mais me verá. Não sou seu anjo da guarda e nem aquele coelho enforcado na maçaneta da sua porta que lhe causava terror noturno na infância.
Você não pode, ao menos, dizer seu nome?
Nomes não são importantes.

EPÍLOGO

Estou no ônibus a caminho de casa, A saudade é imensa, O medo também, Não sei se a Célia ainda me espera, Ou se me esqueceu para sempre e já está com outro, Se eu tiver a sorte de ainda encontrá-la, Será impossível fazê-la acreditar no que me aconteceu, Estou voltando como queria, Vivo, Sem mutilações, Mas não da maneira que esperava, Tudo é real, Mas não deveria ser, Deve passar da meia-noite, As ruas são as mesmas de sempre, O caminho é conhecido, Tudo é familiar, As poucas pessoas que viajam são verdadeiras, Uma delas tem um pequeno rádio junto ao ouvido e conversa com ele, Esta estranheza me fez lembrar quando entrei no ônibus, Na hora de pagar me dei conta que não tinha dinheiro e nem documento, Só meu uniforme, Quando tentei me explicar com o cobrador, Ele acenou com a cabeça pedindo-me para passar, Mas insisti em me justificar, E ele apenas respondeu que soldado que luta pela pátria não paga, Então perguntei-lhe como ele sabia que eu voltava de uma guerra, Ele limitou-se a dizer que eu sou um homem de sorte, Um espírito de muita luz, Retruquei dizendo que isso não era uma resposta à minha pergunta e que, Além do mais, Não lutei pelo meu país, Mas por um pais estrangeiro, E isto está errado, O cobrador respondeu que errado é matar civis, Mulheres e crianças, Mas eu matei soldados, Ele sorriu e acrescentou que o mundo está se matando todos os dias, Falei-lhe sobre minha preocupação, De minha mulher não saber onde estive, De achar que eu a abandonei, Porque já se passaram  muitos anos, O cobrador acrescentou que o que fiz não é abandono, Mas uma transcendência, Transcendência? O que ele quer dizer com isso? Perguntei-lhe se eu estava sonhando, Ele estendeu-me a mão e eu a apertei, Senti-a, Em seguida ele tirou sua carteira do bolso, E me mostrou uma foto de sua mulher e filhos, Eles estão dormindo agora, E minha esposa me aguarda sob lençóis quentes, E a sua também, Como você pode ter tanta certeza disso? Você não me conhece, Nem minha esposa, Não é preciso conhecer, Você não conhece a pessoa que te trouxe de volta, Mas acreditou nela, E confiou seu retorno a ela, Mas ela é tão estranha como você é para mim, É estranho este ônibus estar te levando para casa? Não! Qual é seu nome? Nomes não são importantes, Mas todo mundo fala seu nome quando se apresenta, O meu é Alceu, E o seu? Homônimo, Você também se chama Alceu? É coincidência demais! Meu nome não é muito comum, Não! Saiba que laço quer dizer laçada, E lasso quer dizer cansado, Entendi, E como se escreve seu nome? Como você quiser, Deus, Por exemplo, Mas Deus não é homônimo de Alceu! Deus é homônimo do homem, Você está me dizendo que é Deus? Não, Não estou, Então por que você disse que seu nome é Deus? Eu não disse que meu nome é Deus, Então por que mencionou Deus como exemplo? Porque o homem inventou Deus, Todos nós somos deuses, Se eu sou Deus e Alceu, Um soldado, Você é Deus e quem mais? Eu sou Deus e o cobrador deste ônibus, Acho que agora você está brincando comigo, Não quer dizer seu nome por quê? Quando você chegar em casa e contar à sua esposa tudo que lhe aconteceu você acha que ela vai pensar que você está brincando? Como posso saber? Nem sei se vou encontrá-la? Quer saber quando algo é brincadeira e quando não é? Sim, Como você chegou na cidade? Voando! Você está brincando comigo? Não, Não estou, Juro por Deus que cheguei voando! É por isso que acho que estou sonhando, A gente só voa em sonhos! Se você acha que está sonhando, Então continue sonhando, Sonhar é bom! Mas enquanto estive na guerra tudo era real, Quase morri durante um ataque surpresa do inimigo, Um soldado sinistro, Aparentemente de patente superior, Me salvou, E a partir daí tudo ficou esquisito, Ele me disse que havíamos perdido a guerra e que iria me trazer para casa, E o problema é que ele me trouxe de volta voando, Fora isso, Tudo parecia real, Lá no campo de batalha e agora aqui na minha cidade, Mas não deveria, O que é mais importante para você? Saber meu nome ou descobrir se você está sonhando ou não? É claro que preciso saber se continuo sonhando, Então prove esta barra de chocolate, Ela é real, E saborosa, Não? Sim, Você tem razão, Se você quiser mais uma prova, Te levo para minha casa, Acordo toda a minha família, E depois podemos ir à sua casa para apresentar minha família à sua mulher e marcamos um dia para jantarmos juntos, Meu turno acaba em uma hora, Quer ir? Não, Obrigado, Preciso ir direto para minha casa, Se eu encontrar minha mulher e tudo mais no devido lugar, Então acreditarei que não estou mais sonhando, Olha, Este é meu ponto, E minha casa fica a duas quadras daqui, Vou descer agora, Foi bom conversar com você, Mas não pense que me engano facilmente, Você não é um simples cobrador e não está aqui por acaso, Tenho outras prioridades agora, Mas um dia vou descobrir quem você é, Conheço esta linha de ônibus e sei onde fica a garagem de onde saem todos os veículos, Ele sorriu e acrescentou que todos nós estamos aqui por acaso, Me chamou de soldadinho, Como aquele desconhecido comandante que me tirou daquele inferno pelos ares, E desejou-me boa sorte, E à minha mulher também, Cheguei em casa, Graças a Deus tudo é real! É minha casa mesmo! Não estou sonhando! Mas a porta não está trancada, Isto não é normal, Minha mulher jamais deixaria a porta destrancada numa cidade tão perigosa como esta, Entrei, Subi até o quarto, Meu coração disparou, Lá estava ela dormindo serenamente, Deitei-me ao lado dela,  Cobri-me com o lençol, E chamei-a silenciosamente, Querida! Aí que susto! Meu Deus, Ainda bem que você me acordou, Você me tirou de um pesadelo horrível que parecia uma eternidade! Eu estava emocionado, Quase chorando, Tudo estava normal, Nada havia mudado, Que pesadelo, Querida? Meu amor, Você não vai acreditar, Sonhei que você decidiu entrar numa guerra, Não pelo nosso país, Mas por um país estrangeiro contra outro estrangeiro, Não entendi porque você fez isso, Você disse que voltaria logo e disse adeus, Mas passaram-se anos, Não tinha nenhuma notícia sua, Você não me escrevia, E nem sabia em que guerra você estava, Procurei amigos e perguntei-lhes se eles sabiam onde poderia estar ocorrendo uma guerra, E eles me disseram que havia um guerra em outro continente bem longe do nosso, E que já durava muitos anos, Me deram os nomes dos países envolvidos, Fui na embaixada dos dois, Dei seu nome a eles, Mas nenhum deles tinha qualquer registro seu como soldado servindo seus países, E acharam estranho eu procurar por você junto a eles já que você não é da mesma nacionalidade, A partir daí todos nossos amigos e parentes se mobilizaram para saber de seu paradeiro, E eu orava a Deus todas as noites, Por que ele fez isso? O que aconteceu com ele? Por favor, Meu Deus, Traga meu marido de volta para casa! Neste momento, Surgiu um homem alto e forte, De olhos penetrantes, Não se preocupe senhora, Seu marido está são e salvo, Eu o tirei da guerra, Trouxe-o para cá, E coloquei-o num ônibus, Ele está a caminho de casa, Logo ele estará aqui, Quem é o senhor, Deus? Sou a transcendência, Transcendência? O que o senhor quer dizer com isso? Sou um dos atributos do homem, Que lhe ressaltam a superioridade em relação a todas as criaturas irracionais do planeta, Mas só Deus tem esses atributos! Todos nós somos deuses, senhora, Me desculpe, Mas o senhor está blasfemando, A senhora pediu ajuda a Deus e ela já está a caminho, Agora preciso ir, Seu marido logo chegará e vai te tirar deste pesadelo, Ele é um espírito de muita luz, Um soldadinho de muita sorte, Qual é seu nome, senhor? Nomes não são importantes, senhora! Então, Meu amor, Neste exato momento você me chamou e me acordou, Não é incrível? Eu estava sem palavras, E sabia que iria passar o resto de minha vida refletindo sobre tudo o que me aconteceu e porquê, Estava um pouco aliviado também, Porque tudo continuava normal e eu não iria precisar explicar tudo à minha esposa, Mas de repente ela exclamou, Meu amor, Por que você tirou o pijama e vestiu este uniforme de soldado?


terça-feira, 24 de outubro de 2023

PURGAÇÃO

Texto de autoria de Austmathr Viking Dublinense com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Eu chamo este texto de AustMathr de uma iguaria literária que nada tem a ver com comida. É para mim um tipo de especiaria que não existe em nossa culinária e que condimenta as palavras e o curso das ideias com um sabor sui generis, num contexto real e surreal que raríssimas pessoas conseguem descrever, muito menos imaginar. A primeira metade relata ações reais, mas para protagonizá-las, AustMathr preferiu criar uma personagem fictícia. Uma mulher que percorre todo o caminho que AustMathr faz, once in a blue moon, de sua casa até a modesta vereda que ousa e precisa disponibilizar quase tudo que normalmente encontramos num shopping center da high society. É muito elegante e gracioso como são expressos os vários lugares onde AustMathr costuma fazer ponto na alameda lá em baixo e que sua mulher, Penélope Charmosa, acha muito feia. Tudo muda do lado do avesso quando a mulher volta para casa. Ao adentrá-la, ela dá de frente com a segunda parte de um sonho que AustMathr teve, pra lá de bizarro, sem pé nem cabeça, como costumamos dizer. Mais uma vez, o inconsciente coletivo presenteou AustMathr com 4 belíssimas músicas que não existem em nosso mundo. Assim é e sempre será o inconsciente coletivo, misterioso e maravalilhoso. E AustMathr é um privilegiado. Esta não é a primeira vez que AustMathr ouve lindas músicas que não foram compostas por nenhum ser humano. AustMathr encerra com uma purgação que nada tem a ver com remissão de culpas e pecados. Trata-se apenas da aceitação e a superação da dor e tristeza imensa que lhe causaram certos acontecimento que ele viu in loco, em fotos e num sonho. A ilustração que AustMathr escolheu para este curto texto é divina. Deixo para vocês explicarem o que ela significa. Antecipo que a mulher ao piano não é um fantasma. Se algum de vocês já sonhou com o inconsciente coletivo, passará noites, dias, meses e anos para entender. A música tirada do filme Anjos e Demônios com Tom Hanks é bem adequada. 

Inglesa Luso Chinesa  
24 de Outubro de 2023.


Ela não se vestia como rainha, Como outras tantas mulheres, Desenfiou-se da camisa de dormir, Trouxe sobre si qualquer roupa parca, Calçou sandálias de pescador, Descuidou-se de toucar os cabelos anelados, E ganhou as ruas, Removeu-se de cima para baixo, Desceu a ladeira como montanhas, E desembocou na avenida como um rio no mar, Um mar de vidas, Balangandãs, Utensílios, E gentes afins, O mesmo percorrido pelo Ulisses de James Joyce, Vai e vem, Fazendo todas as paradas quites da obrigação, O farmacêutico tem o remédio de sua dependência química, O Empório ainda não baixou o preço do açaí que tanto lhe apetece, A carne de seus cachorros amigos está garantida pelo açougueiro por 5 reais o quilo, Sua cabeleireira está de portas fechadas, Mas o mercadinho está aberto ao açúcar cristal que ela precisa levar para o bebedouro de seus beija-flores e chupinzinhos, O menino mecânico ainda não ligou para a testemunha que ela precisa ter presente no julgamento de seu estado de necessidade, Hora de galgar a subida íngreme, Ela corre como uma maratonista em ótima forma, Surpreende-se, Hoje não há falta de ar, Chega inteira e sobrando ao topo, E sua casa, Logo ali, A espera de volta, Portão adentro, É cercada por um bando de jornalistas querendo saber de seu novo namorado, Ele mora noutro bairro, E a música de seus sonhos, Por que você a lançou num antigo compacto duplo? É uma quadrofenia? Esquizofrenia quádrupla? Por que estas outras três são tão diferentes? Uma parecendo ópera! São parte de seu scoop? Toque uma delas para nós, Ela recebe um estranho piano, Com dois curtos teclados na vertical, Entre eles nenhum fole, Ela não sabe tocar, Com as duas mãos martela a madeira revestida de feltro e brande o quintal, Empolga-se com a harmonia, Um interlúdio? Não! Um estanco, Para dar lugar a um celestial e emocionante vocalise, Cantate Domino Canticum Novum! Purgadas são todas as tristes lembranças consteladas na consciência, O cãozinho pacífico que teve o pulmão perfurado por outro, O cão desesperado tentando fugir da bacia com água fervente onde o chinês quer cozinhá-lo vivo, O filhote de macaco de olhar surpreso e assustado sendo carregado pelo ombro pelos dentes afiados de um cão selvagem, O pai que quer que ela fique de quatro para penetrar-lhe o ânus.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

YEKUN

Texto de autoria de  AustMathr com direito autoral protegido pela Lei 9610/98


Este conto de AustMathr é de tirar o fôlego e te deixar pelado(a) no meio de uma movimentada avenida. É como um enorme bolo de casamento com 3 camadas. Na base, ele descreve fatos reais dos quais ninguém faz ideia. No meio, ele é desbocado, jogando o puritanismo hipócrita na privada sem puxar a descarga. A melhor camada, aquela que normalmente reveste-se de chantilly, o andor da cereja mais cobiçada, é recheada com um altíssimo nível cultural e uma fartura de conhecimentos inigualáveis. Uma preciosidade!
Gwendolyn Marie-Baxtor (vulga Inglesa Luso Chinesa)  18 de Outubro de 2023.

Isto aconteceu anos atrás. Eram 23 horas. Tomei 6 mg de Lexotan e, como de costume,  fui para a cama assistir a um filme até pegar no sono com a TV ligada. Hoje preciso de 18 mg para dormir. O telefone tocou. Naqueles dias eu vociferava como o pai do bem sucedido corretor da bolsa de valores no filme O Lobo De Wall Street: 'Quem é o filho da mãe que me liga em plena terça-feira a esta hora?' Hoje, ao contrário, corro para atender, para receber uma má notícia ou um chamado de emergência (mas quem precisa de minha urgência?). Também deliro, esperando que minhas comunicações telepáticas foram, finalmente, atendidas, e que minha confidente tenha captado meus pensamentos e, mesmo a contragosto, num gesto de mera caridade ou desencargo de consciência espiritual, resolveu responder às minhas súplicas, talvez a pedido de um espírito alemão. Tirei o telefone do gancho. Do outro lado da linha uma voz meia metálica, nem masculina, nem feminina,  respondeu ao meu alô com uma certa entonação e cadência:

Sou alienígena, Com sexo de anjo, Sem pênis e sem vagina, Não descasco banana e nem toco banjo.

Nunca tolerei trotes. Sempre soltei um tremendo palavrão antes de desligar na cara. Porém, naquele dia não irritei-me tanto e não sei porquê. Aquele sujeito inconveniente até que tinha um pouco de senso de humor. Sua trova era hilária, pouco original, mas não tão obscena. O filme na TV não era tão ruim. Até me prendia a atenção. Por isso o sono ainda não tinha me pegado e a alta dosagem do Lexotan levava cada vez mais tempo para fazer efeito. Então, impelido por uma curiosidade que nunca tive, decidi dar trela ao gozador, mas bancando o durão importunado:

Olha aqui, cara, já passam das 11, e estou com muito sono. Vou desligar. Se você voltar a ligar vou te denunciar. Tenho identificador de chamadas, sacou?

Não adianta me denunciar, Sou ubíquo, Ninguém pode me encontrar, Você é apenas um soníloquo.

Desgraçado! Como ele sabia que falo dormindo? Ele me tirou do sério. Perdi a paciência. Não suporto desafios, ainda mais de anônimos fazendo pegadinhas por telefone.  Por isso desliguei e até desconectei a linha do aparelho. Um segundo depois o telefone tocou. Impossível! Atendi. Era o chato de novo, arfando, apenas dizendo a palavra desafio, num ritmo e num tom do ET phone home. Isso deixara de ser uma brincadeira. Tornara-se perigoso e preocupante. Alguém estava me vigiando, me grampeando, fazendo ligação direta num telefone com fio, mas desconectado. Como isso era possível? Era mais que invasão de privacidade. Era uma intromissão de alta tecnologia. Precisava descobrir o que estava acontecendo, quem era este cara e o que ele queria de mim. Procurei não demonstrar preocupação, mas apenas surpresa bem humorada:

Cara! Como é que você conseguiu isso? O telefone está desligado!

O sujeito cínico simplesmente desconversou. Não respondeu à minha pergunta e ainda continuou me desafiando.

Estou estudando o caráter humano, Você parece ser cristianicida, Não tente bancar o einsteiniano, Senão não falarei mais com você pelo resto de sua vida.

Cacilda, pensei,  o cara é doido mesmo! Cristianicida? Nunca levei jeito para carrasco da Santa Inquisição. Sou ateu, mas não persigo cristãos. Aliás, não persigo ninguém, com ou sem religião. Raramente dou atenção para trotistas, mas este, além de me preocupar, estava despertando minha curiosidade e conseguindo ganhar minha atenção. Desliguei a TV. Continuei super invocado com o truque do telefone. Tentei por um fim a este jogo:

Cara, não sou anticristão, ok? Agora chega de brincadeira. Qual é a sua? Quem é você? Por que você está me espionando?

Ele desconversou de novo, mudou completamente de assunto e me veio com essa:

Você deve ter percebido que sou poeta, Rimo tudo que sai da minha mente, E para me seguir você terá que andar na minha bicicleta, Sempre para frente, E, Se parar, Não pode ser de repente.

Já estava ficando com raiva dessas dissimulações e metáforas. Poderia ligar para a operadora para identificar o dono do número, mas o telefone não desligava. Pensei até em sair de casa e ir à polícia. O sujeito continuava na linha, ofegante, esperando pela minha resposta. Hesitei. Parei para pensar. Talvez o melhor fosse continuar conversando com o matusquela para ver como isso iria acabar. Continuei refletindo. Repassei sua primeira rima dele: 'Sou alienígena, Com sexo de anjo, Sem pênis e sem vagina, Não descasco banana e nem toco banjo.' Ela era tão hilariante que cheguei a decorá-la. Então percebi que o sujeito cometeu erros. Decidi desafiá-lo:

Claro que percebi que você é poeta, seu matusquela. Você fala cantado, como se estivesse declamando um poema. Embora rima não seja meu forte, aceito montar na garupa de sua magrela, e para começar, vai aqui uma pequena lição: alienígena não rima com vagina. As duas palavras têm terminações diferentes: uma com ena, e outra com ina. Além disso, a primeira é proparoxítona, e a segunda é paroxítona. Que tal essa, Fernando Pessoa galático?

Não pensei que você atinasse para esse tipo de detalhe, Actum quam scriptum plus valet, Espero que você não falhe, Alienum nobis, nostrum plus aliis placet.

O filho da mãe relegou minha correção a um pequeno e desprezível detalhe. E ainda por cima apelou para uma língua morta. Eu  estudei latim no último ano em que esta língua era obrigatória no ensino médio. Logicamente meu latim estava bem enferrujado, mas ainda me permitia entender o que ele dissera e percebi que o danado alterou a ordem das palavras de uma das frases para forçar uma rima. O correto é plus valet actum quam scriptum e não actum quam scriptum plus valet. Ao invés de apontar mais um erro dele, optei por ater-me ao significado de uma das frases em Latim:

Ah, meu chapa, te peguei. Você fugiu da raia, e além disso escolheu a pessoa errada para testar seu latim. Todo mundo sabe que os humanos têm inveja uns dos outros, até mesmo você que se diz extra terráqueo! E o que você fez ou faz que é mais importante do que escreve, além do que você está me falando?

O maluco resolveu enfurecer de vez com um ultimato:

Só respondo se você falar em rima, Você aceitou minha proposta seu bestunta, Portanto entre no clima, E reformule sua pergunta.

Bestunta? Um revide porque o chamei de matusquela? Poderia ser, mas eu não era mau humorado como ele pensara. Fiz a mesma pergunta sem rimas. Ele não respondeu. Continuava esbaforido. Este jeito dele disfarçar, mudar completamente de assunto parecia um joguinho de adolescente, uma criancice. Não tinha dúvidas de que ele tinha em suas mãos várias estrofes já escritas, preparadas com antecedência, todas rimadas e anotadas num papel. Ninguém consegue responder a uma pergunta de imediato rimando as palavras. Precisei de alguns minutos para refazer minha pergunta com rimas. E o maluco parecia não ter nenhuma pressa. Parecia ter todo o tempo do mundo. Consegui, finalmente, rimar o significado da outra frase em latim e o desafiei novamente:

Diga-me, então, seu desmiolado, o que você  faz mais importante do que diz, Algo que possa ser comprovado, Algo que não te contradiz.

A resposta dele foi uma charada:

Tenho o dom da premonição, Vejo uma propaganda de uma bebida que vocês chamam de cerveja, Tem uma garçonete na praia que os clientes chamam de verão, Ela rebola e o que ela deixa ver não vem numa bandeja.

Eu não fazia a menor ideia do que ele queria dizer com este negócio de propaganda de cerveja. Mas hoje, relembrando o que ele disse anos atrás, fico pasmo e incrédulo. O cara falou de uma propaganda que só foi veiculada na televisão no ano passado! Era aquela propaganda da cerveja Itaipava com uma morenaça de saia curta e deixa aparecer até as nádegas. Esse cara é paranormal, pensei. Eu tinha gravado aquele comercial por causa de um detalhe. Quando o assisto em câmera lenta é possível congelar a imagem no momento em que a bunda da mulher aparece claramente. Minha mulher me disse que ela não está sem nada por baixo. Diz que ela está usando um fio dental. Oras, se lá existe um fio dental ele está bem escondido dentro do rego porque o que se vê é apenas a bunda da mulher. Esse anúncio me fez lembrar da ridícula censura à propaganda da cerveja Devassa da Schincariol. No comercial, a socialite Paris Hilton, de vestido preto, pega uma lata da cerveja da geladeira e a passa por seu corpo, rebolando, ao som do tema de O Homem do Braço de Ouro de Elmer Bernstein, e é observada por admiradores que estão na praia. Paris Hilton não mostra nem a bunda e nem mesmo a calcinha, mas apenas suas belas pernas com uma minissaia usada por todas as mulheres até hoje. Na ocasião, grupos de defesa dos direitos das mulheres protestaram contra o anúncio e o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária – CONAR – acatou o protesto e removeu o comercial da televisão alegando que o mesmo continha apelo sexual. Quem aqui, que estiver lendo este texto, é burrinho o suficiente para ignorar que as novelas de terceiro mundo da Plim Plim e o pornográfico Big Bosta Brasil contém mais apelo sexual do que qualquer propaganda? Sem saber que o doido com uma provável percepção extrassensorial estava lendo o futuro, fiz críticas aos desmandos e roubos no Brasil. Estranho foi que, enquanto pensava na ideia, as palavras adequadas para as rimas me vinham à mente rapidamente, com extrema facilidade. Hoje tenho certeza que o paranormal estava me ajudando de alguma forma que não sei explicar. Mais estranho ainda foi o fato de, não sabendo que ele estava prevendo o futuro, eu ter esquecido de lhe perguntar o que ele queria dizer com a propaganda da cerveja. O que acabei respondendo tem tudo a ver com minhas reflexões deste exato momento. Começo a achar que ele ainda está aqui presente, lendo meus pensamentos, e consegue trasportá-los para o passado. Isso pode ser justificado com a resposta que lhe dei com minhas críticas às desavisadas censuras. Vejam só o que disse a ele:

Ótima ideia para falar do país baluarte da  moral, Onde fazer propaganda de cerveja devassa é um insulto, Onde jovens casais na cama global do horário nobre são apenas expressões da arte corporal, Onde ladrão da planície que rouba ladrão do planalto fica cem anos sem receber indulto.

O danado, mais uma vez, ignorou meu comentário. Apenas pegou um gancho numa de minhas palavras e veio com outra premonição:

A Copa do Mundo em 2014 será um câncer com rápida metástase, Se vocês tivessem sido eliminados nas oitavas seria frustrante, mas menos deprimente, Por sorte, ou azar, vocês conseguiram passar para as fases seguintes, Mas na semi vocês sofrerão uma humilhação que marcará suas vidas para sempre.

Logicamente em 2014 era praticamente impossível para qualquer brasileiro imaginar que o Brasil não seria campeão de futebol jogando em casa, com toda a torcida a favor, muito menos não conseguir nem chegar à final e ainda dar um tremendo vexame. Mais aí está o fato incontestável: o cara é realmente sobrenatural. Ele fez outra previsão do futuro e acertou na mosca. Inacreditável e assustador. Eu fiquei revoltado com o vexame que o Brasil deu e se eu pudesse responder ao paranormal hoje,  eu diria: 'Espero ver o Brasil perder mais uma de 7 X 1, mas desta vez no Maracanã, Espero ver as Olimpíadas do Rio vencidas pelo crime organizado, Masturbar meu ego com minha inteligência, Danar-me com minha irresponsabilidade, Ver televisão até as seis da manhã, Dormir até o dia ter acabado. Roubar dos ladrões de Brasília e  negar-lhes sociedade. O que o demente me perguntou em seguida é uma prova inconteste de que ele está aqui, agora, neste momento, lendo minha mente, e levando meus pensamentos para o dia daquela conversa que tive com ele por telefone anos atrás. Novamente, ele mudou de assunto e, tenho certeza, que ele pegou carona na minha frase sobre as Olimpíadas no Rio e me perguntou:

O que você tem contra a cidade maravilhosa? Sua natureza de beleza incomparável? Seu excesso de mulher bonita e formosa? Ou sua espontaneidade tão invejável?

Continuava não entendendo o motivo desta  repentina pergunta sobre O Rio de Janeiro. Eu tinha uma resposta pronta para a pergunta e, estranhamente, meu raciocínio continuava muito mais rápido que o normal e as rimas fluíam com rara facilidade. Se eu pudesse responder hoje, eu teria usado uma notícia do jornal O Estado de São Paulo por ocasião do aniversario de fundação da cidade do Rio no ano passado, com umas poucas mudanças para atender às exigências de rimação do poeta de araque. Eu teria dito: 'É fácil para o visitante que chega ao Rio achar que não há nada de errado com o Brasil. A classe média com certeza sabe viver: Copacabana e Ipanema distam apenas alguns minutos dos principais centros financeiros e comerciais e de um jogo de vôlei ou o surfe para começar o dia com céu de anil, Os escritórios das corretoras localizados no alto dos prédios têm a visão do Jardim Botânico e dos morros cobertos de vegetação, Mas quanto mais sairmos dos bairros mais ricos,  Mais os esplendores desaparecerão, E darão lugar à cidade real assolada pela pobreza e pela violência que agarram-se aos morros, Tendo como cartão postal a favela, Quanto mais profundo é o nosso olhar, Pior esta cidade maravilhosa se revela.' No entanto, antes mesmo de eu dar uma resposta sobre a questão da cidade maravilhosa, o sujeito estranho antecipou-se, leu meus pensamentos do presente, levou-os ao nosso bate-papo por telefone e, com sutileza, me fez uma recomendação:

Para combater esta sua aversão, Você pode idealizar uma república perfeita, mesmo que utópica, como a de Platão, Impor-se um ostracismo de dez anos por ser, na condição de poderoso político, suspeito, mesmo sem prova, de corrupção, Ou então aderir ao culto dos mistérios, mesmo que místico, que têm mais moralidade que a fé cega de qualquer religião.

Oras, eu não sabia que ele lia pensamentos  futuros, por isso não entendia porque antes de esperar pela minha resposta, ele acrescentou outra para reforçar sua insinuação de que eu tinha ojeriza pelo Rio. E nesta recomendação, ele fez uso de uma sequencia de fatos fartamente conhecidos sobre a Grécia antiga. Achei que ele estava me gozando. Paguei a gozação na mesma moeda.

Hoje é um dia perfeito para traçar uma freira de convento, Cortar uma mecha do cabelo da Medeia e abrir a caixa da Pandora, Sentir o cheiro de bacalhau da pitonisa que não espana as teias da aranha há muito tempo, Trancar-se com ela e Afrodite num templo em Corinto e jogar a chave fora.

O zureta me fez uma leve e sutil admoestação, mas como se estivesse apenas divagando:

No meu planeta a vulgaridade é repudiada, Mas em todo meu sistema solar não existe um consenso, Já na minha galáxia a grosseria é tolerada, Eu particularmente, não costumo falar tudo o que penso.

Com argúcia ele fez menção à minha grosseria. Pois muito bem. Naquela época eu estava mal, mal mesmo. E foi neste papo com um paranormal anônimo que resolvi extravasar, por para fora toda minha podridão. Baixei o nível para valer. Acendi um baseado e soltei o verbo:

Espero não morrer antes de envelhecer, Roubar mais um milhão antes dos setenta, Fumar baseado toda semana, Fazer amor durante o dia, Mandar todo proselitismo religioso se danar, Abusar de minha virilidade enquanto o coração aguenta, Orgulhar-me de ser um grande sacana, Ter uma pobre e solidária família. Espero assaltar o Banco do Brasil, Assaltar a Igreja Universal, Mentir na cara dura e sem medo, Marcar um encontro e dar o cano, E hoje é um dia perfeito para nascer de inseminação artificial, Pedir ao doutor Abdel Massi para cuidar da mãe da criança, Ganhar bolsa de estudo do governo para fazer o mobral, Eleger os mesmos políticos para a corrupção não perder a esperança, Dia perfeito para dar um passeio num cemitério, Ver um fantasma bravo reclamando com o coveiro, Do IPTU de seu jazigo e da conta alta que veio do necrotério, Rasgando a notificação de despejo feita pelos vermes do viveiro, Dia perfeito para dar uma enconchada num ônibus lotado, Sentir-se correspondido, Sentir o barraco ser armado, Enquanto a carteira é afanada pelo bandido, Dia perfeito para deitar na cama sozinho e pelado, Sem ter hora para dormir e despertar, Assistir TV comendo pizza de alho com repolho e bebendo vodca com Coca-Cola até o dia amanhecer, Arrotar, soltar gases, curtir um pacau e fechar porta e janela para não deixar nenhum cheiro escapar, Morrer chapado, desencarnar um espírito de porco em pleno velório e por todo mundo para correr, Dia perfeito para sair na garoa sem cueca, Cheirar o dedo que coçou o rego por cima da calça, Tossir, espirrar e escarrar até sair toda a meleca, Sentir gosto de cabo de guarda-chuva e aliviar o peso de mala sem alça, Dia perfeito para fazer um programa diferente com a ética, Despintar o pinto de calça e enrabar o rabo de saia, Sem descriminar a gonorreia, a fimose e a aidética, Sangrar ao urinar porque a camisinha sueca é paraguaia, Dia perfeito para receber uma visita das testemunhas de jeová, Fazer do roubo de gravatas pelo rabino a nova mania, Ouvir o bispo Macedo dizer ou desce ou dá, Senão a igreja renasce em cristo e rouba a freguesia.

O sandeu me ouviu pacientemente. Ele não me cobrou resposta e não me interrompeu, e soltou frases complexas e enigmáticas, quase filosóficas, de difícil entendimento.

É abismal e descomunal a distância que separa os ricos e pobres em sua nação, mas, paradoxalmente, parece que ninguém se importa quão poucos são os ricos além dos sonhos da avareza, E se eu fosse passar a você a ideia de um espírito de falso otimismo eu não seria nem justo com você e nem sincero comigo mesmo, Todos aqueles que carregam fé em seus corações e trabalham pelo bem estar de todos são o sal da terra, mas acabam sendo humilhados pelos políticos na garra do dogma, Mais de 200 milhões de momentos de verdade há neste país afora todos os dias, cada vez que cada um deles entra em contato com a minoria abastada.

Eu não poderia deixar isto passar batido. Era um desafio à minha inteligência. Repassei todas as frases atentamente. O que logo me chamou a atenção foi a frase sal da terra, que virou um tipo de clichê tirado dos livros da mitologia cristã. Então atinei para o fato de que talvez ele estivesse montando frases com clichês. Passei a madrugada inteira pesquisando. E o paranormal não tinha nenhuma pressa. Ele continuava na linha, sempre respirando com dificuldade. Valeram o esforço empreendido e todo o tempo que gastei. Descobri todos os clichês. Sonho de avareza é uma expressão criada em 1678. Em 1781, um tal de Dr. Samuel Johnson emendou: Ricos além do sonho da avareza. Momento de Verdade significa um momento decisivo. Foram os espanhóis que criaram a expressão chegou o momento da verdade nas touradas, referindo-se ao golpe final de espada que mata o touro. No entanto, o poeta extrassensorial fez uso desta expressão a partir de uma declaração de um tal de Carlzoon do jornal Financial Times em 1986: Temos 50 mil momentos de verdade neste mundo afora todos os dias. Carlzoon definia momento de verdade como cada vez que um cliente entrava em contato com sua empresa. A frase se eu fosse passar a você a ideia de um espírito de falso otimismo eu não seria nem justo com você e nem sincero comigo mesmo foi escrita por Max Schreiner durante o discurso de um partido político no álbum de comédia de Peter Sellers chamado os Mais Vendidos de 1958. Todos estes clichês chegavam a ser trágicos à luz do contexto no qual o cara os empregou. Eu também conhecia muitos clichês, mas preferi aliviar o peso das frases contundentes do paranormal que entristecem o povo de meu país e, justamente por ter tanto ódio de nossos governantes que saqueiam a nação e a população, continuei com minha baixaria, fazendo criticas aos políticos e seus conchavos. Se fosse hoje, falaria sobre todo o fedor de fezes de nossos governantes que estão transformando nosso país numa fossa séptica, mas naqueles dias, os escândalos eram outros:

Dia perfeito para trocar um nome artístico por um provérbio popular, Daniel D’antas Do Lado De Cá por Um Grupo De Oportunidades Faz O Ladrão Num País Tropical, Celso Da Niel Do Lado De Lá pelo Assassinato Não Investigado É Político E É Bom Engavetar, Gilmar Mem De Sá por Verdade Desrespeitada Mil Vezes Torna A Mentira Constitucional, Dia perfeito para votar para presidente, Ser assaltado pela polícia e preso pelo ladrão, Não ver o dinheiro roubado pelo fisco e esbanjado bem na sua frente, Ver o candidato eleito ser carregado nos ombros da multidão, Mandar deus para a prostituta que o pariu, Mandar a prostituta para o alto escalão do governo federal, Mandar o governo federal juntar-se ao bispo do ou dá ou desce, Dia perfeito para louvar Deus que é brasileiro, Federal e supremo, Que da tribuna lava as mãos imundas com aguarrás, Manda prender todos que são cúmplices do Seu Nazareno, Manda soltar todos que são amigos do Seu Barrarás, Dia perfeito para sonhar em ser um John Lennon tupiniquim, Narrar um dia na vida dos brasileiros, Contar quantas estradas cobrem quilômetros de buracos sem fim, Saber quantas faltam para aprovar o orçamento da união depositado nos paraísos estrangeiros, Dia perfeito para viajar de trem na ferrovia do aço, Fazer Henrique oitavo esperar mais de cinco mil dias para ver a cabeça de um mil de Ana Bolena rolar, Viajar oito mil quilômetros de cipó na transamazônica com Jane pendurada no saco e chita no seu cabaço, Realizar o sonho de todo jipeiro aventureiro que nunca pôde disputar o Paris-Dakar, Dia perfeito para soltar um barro na mesa do chefe, Sem ter arriscado na loteria por ser judeu, Pagar para ver o jogo do color e levar um blefe, Tentar a sorte com um chinês mafioso e amigo do Romeu, Dia perfeito para por ordem no galinheiro, Nomear raposas para apressar o progresso, Realizar outro milagre brasileiro, Com ranço de regime militar e saudades de retrocesso, Dia perfeito para passar um cheque sem fundo, Ser bebê que esconde dólar na fralda e debaixo do berço, Ser o burocrata mais religioso do mundo, Que nunca assina um contrato sem pedir um terço, Dia perfeito para encostar nas bananas da feira e aplicar uma lufada, Sem saber que a banca é do filho do ato secreto abafado, Chegar em casa e encontrar numa dúzia onze podres e uma bichada, Embrulhadas em papel de jornal de estado censurado.

Diante de tantas críticas, o lunático resolver ferir meu calcanhar de aquiles, e feriu mesmo:

Roubar dinheiro do pai enquanto é criança é perdoável, mas denota uma tendência, Propor a um irmão uma carreira às custas de seu dinheiro para cobrar juros do que outrora fora emprestado é detestável, Chamar um irmão de ladrão e depois pedir-lhe dinheiro emprestado é deplorável, Ligar para uma filha com a qual nunca se importou só para usá-la para algo de seu interesse é o que faz um procriador genético mau-caráter sem nenhuma consciência.

Ele acabou comigo. Fiquei sem palavras. Fiz o que ele estava fazendo no início. Desconversando e passando para outro assunto:

Se você é um alienígena de verdade, Do mal ou do bem, Certamente você pode comprovar se existe disco voador, De onde ele vem, Ou se ele é fruto de um exímio enganador.

O cara me arrasou novamente:

Um dia você irá assistir a um filme chamado Trapaça, E nele alguém dirá que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar, Quase todos no seu mundo acham a vida sem deus e religião uma desgraça, Você e Nietzsche acham que a vida sem música é como morrer na praia depois de atravessar o mar.

Logicamente eu não entendi o que ele quis dizer. Só hoje, depois de assistir ao filme Trapaça percebi que ele leu o futuro e o incluiu em nossa conversa no passado. E ele se saiu muito bem ao dizer que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Foi extremamente interessante ele saber que faço da palavras de Nietzsche as minhas. Sem musica, a vida seria um erro. Apesar de minha dissimulação, ele não perdoou minhas criticas anteriores:

A necessidade é realmente a mãe da invenção, E a arte da sobrevivência é uma história sem fim, Metade do que se faz na vida não vem de pura convenção, like what one writes on a postcard, A outra metade é mais maldade arquitetada pela mesma mente ruim, because old habits die hard.

Ele misturou português com inglês (like what one writes on a postcard = como a gente escreve num cartão postal – because old habits die hard = porque é difícil se livrar de antigos hábitos). O mais impressionante é que neste ano de 2016 comecei a escrever um conto com o titulo A Arte da Sobrevivência é Uma História Sem Fim. A certa altura, talvez por causa do efeito do baseado, eu já não estava mais preocupado com ele. Estava certo que  ele era apenas um paranormal que prevê o futuro. mas então, repentinamente, ele me fez uma nova pergunta:

Você assistiu ao filme o Homem Mariposa, Aquele que levou um homem a outra cidade, Depois de ter causado a morte de sua esposa, E o fez a antecipar-se a uma calamidade?

Ele referiu-se a um filme sobre uma história real, embora vários fatos tenham sido deturpados e  inventados. O homem Mariposa, ou Homem Traça é uma suposta criatura sobrenatural, que segundo relatos, apareceu em Charleston e Point Pleasant, EUA, entre novembro de 1966 e dezembro de 1967. Sua aparição está associada ao acontecimento de futuros desastres. A suposta criatura é estudada e investigada pela Criptozoologia, sendo portanto um criptoide. Até o momento não existe um consenso entre os pesquisadores se os Homens Mariposa seriam uma entidade vista por videntes, uma criatura extraterrestre, um produto da imaginação ou fantasia de alguns, ou algo não descoberto pela ciência. No filme, o homem mariposa é visto como um paranormal, que prevê o futuro, liga para qualquer pessoa mesmo que o telefone esteja desligado, e ainda advinha o que você está fazendo dentro de casa. Ele desafia e sempre acerta. Respondi sem nenhuma intenção de ser sarcástico:

Então você é o famoso homem traça, alienígena, Que aparece de tempos em tempos, Prevê o futuro, mas causa desgraça, E subitamente desaparece com o vento?

Calmamente, o paranormal passou a falar longamente:

Sou um ser angelical, Mas de outro sistema solar, A ninguém faço mal, Não sei prejudicar, Minha ideia era fugir de mim mesma, Decolar da pista da realidade, Voar pelo universo a esmo, Sem nenhuma responsabilidade, Visitar um planeta diferente por dia,  Levar bens materiais só  para o gasto, Fingir que já tive uma família, Levar uma vida andando de fasto, Experimentar momentos de fraqueza, Esconder-me atrás de uma humana paixão, Levá-la comigo na incerteza, Ser tratada como se fosse um humano sultão, Dar-lhe tudo o que ele nunca teve, Colocar um filho meu em seu mundo, Levá-lo a lugares  onde ele nunca esteve, Jamais contar-lhe minha história a fundo, Voltar a cometer enganos, Mas humanos, Fazê-lo correr humanos e transeuntes perigos, Ficarmos os dois completamente insanos, Abandonados, Dependentes e sem abrigos, Minha ideia era ser apenas um anjo protetor, Mas agora quero morrer e renascer, Ser como você: um humano de família e escritor, Humilhar-me e amadurecer, Minha ideia era ser uma guia espiritual, Mas agora quero ser protegida de mim, Não criar problemas para sua sociedade, Nem mesmo ser uma folha de grama num jardim, Minha ideia era ser um anjo mentor, Mas agora estou insegura e com auto piedade, Tenho medo dos outros sentirem dor, Não tenho coragem de contar minha verdade, Minha ideia era ser Deus, Mas agora sei que ele não existe, Os outros sofrem por problemas meus, Algo fora de mim faz com que eu persiste, Minha ideia é sair do fundo desse poço, Pensei que já havia me erguido 45 graus, Mais ainda falta muito para sair desse osso, Acima de minha cabeça há uma escarpa sem degraus, Minha ideia agora é viver um dia de cada vez, Ouvir os que sempre oram para mim na solidão, Substituir minha frieza por calidez, Minha indiferença por comiseração, Gostaria de voltar a ser um anjo conveniente, Mas minhas asas não servem mais nem para voar, Nem para proteger um criança de um acidente, Minhas preces não vão a nenhum lugar, Ainda assim, Sou muito inteligente, Conheço o futuro, Ensino a linguagem dos sinais, A ler, A escrever e a dominar a mente.

Ele falou com a mesma voz metálica, mas agora feminina, usando adjetivos e substantivos no gênero feminino. Ele se confessou com palavras minhas que eu escrevi faz poucos anos. Usou, também o termo transeunte que é o título de um conto que escrevi recentemente. De repente, a voz dele tornou-se feminina, doce, suave, e ela começou a cantar uma música que conheço, com muita ternura. Ela mudou a letra um pouco para falar de nós dois e, ao final, ela desligou e nunca mais tive contato com ela. Na verdade, como ela deve viajar no tempo e ler pensamentos, ela pode estar aqui agora, enquanto escrevo.

Sei o quanto você já sofreu, Mas não quero te ver marginalizado, Seu mundo é frio e aí a fraternidade morreu, Mas jamais deixarei você ser ignorado, Trocarei seu Lexotan pelo meu calmante, Tornar-te-ei puro, Você não andará mais vacilante, Tudo isso eu juro, Vou reconciliar a violência em seu coração, Reconheço que você tem sido injustiçado, Vou exorcizar todos os demônios que têm lhe roubado, E satisfazer os desejos ocultos em seu coração, Você engana seu próprio amor, Fazendo-se, Ao mesmo tempo, De malvado e  divino redentor, Você pode ser um pecador, Mas é minha a sua inocência de sonhador, Você pode ser meu acariciador, Ou então me ensinar a acariciar, Você pode ser meu amor, Ou então me ensinar a amar, Vamos reconciliar a inteligência em nossas mentes, Vamos aceitar que temos sido involuntariamente exilados, Vamos esconjurar todos que disseram que somos amados, Vamos dar nomes para nossos erros que para os outros são indigentes esquecidos no passado. Há duas humanas que te estenderam a mão e fizeram sacrifícios por você, mesmo sem te conhecerem, e você sabe de quem estou falando. Faça o mesmo por mim, sem jamais querer me conheceer.