sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

ÚLTIMA MENSAGEM PARA DEIRDRE ULTRAMARI

Texto de autoria de AustMath Viking Dublinense com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Querida Deirdre, Teu súbito e recente passamento serenou meu espírito, Por mais cruel e ignóbil que possa parecer este sentimento, Dizia minha avó espanhola que o pouco leva ao desespero, O muito à calma, Só espero que a efusão da saudade não me afete, Como fazem os ricos com os pobres para não serem importunados, E de todo aplaque-se à sucessão de meus dias sem você, Embora não acredite em vida após a morte, Falo com você como se você me ouvisse, Porque você sempre teve o outro lado como certo, Tamanha era sua fé, Não duvido pela mera quizila de descomprazer, Mas porque sempre ambicionei somente certezas científicas, Então te puxo para mim do montículo de terra sobre o último lugar para nos guardar, Sem sabermos onde estar, Cubro-me de suas lembranças, Estas me mergulham em devaneios, Quimeras, E bolinhas de sabão, A ponto de desejar que você possa ter projetado sua consciência para fora do corpo antes dele falecer, E que sua mente vaga por ai, Sem massa encefálica, Sem hora para se recolher, Recebendo e despachando pensamentos, É utópico, Você sabe, Uti non abuti, Porque me conheceu bem, Sempre me quis melhor ainda, E não quero que uma única nota de minha alegria se cale por sua triste partida, Você se decepcionaria muito comigo se eu o permitisse, Se você estiver verdadeiramente me captando, Deve estar de mãos nos quadris, Menos zangada do que surpresa, Você já sabe que não vou mais publicar meus livros, Você havia me convencido, Assenti, Dolorosa e profundamente áulico, Confesso, Por você enquanto viva, Mas não fiz nenhum juramento pelo resto de nossas vidas e que está sendo quebrado pelas suas costas, Nada mudou, Tudo continuará como sempre quis, Postagens nas redes sociais e nada mais, Não consigo conceber a fealdade de palavras solitárias, Só os gênios da literatura as fazem ganhar vida e beleza na companhia de leitores compulsivos, De mentes cultas, Não consigo apreciar o que escrevo sem o meu triunvirato, Esta minha trindade que insiste em colocar em harmonia a alta expressão do pensamento, A arte e ciência de combinar os sons de modo agradável à minha audição, E a representação gráfica, Fotográfica e plástica, Do ser e do objeto, Somente os três juntos alimentam meu espírito, Algo comparável somente à sua voz artística, De cortar a alma, Emprestada às minhas várias palestras performance que demandavam mais do que um personagem, E às vezes até cinco deles, Como em Contexto Para Uma Parábola, Dois dos quais femininos, Duas mulheres interpretadas brilhantemente por você, Com distintos e difíceis tons de falas, Ambas com diferentes sotaques semíticos, E mais ainda, Você elevava suas partes do texto às alturas rarefeitas em que costumava abonar-se, Para sensibilizar o público, Especialmente o masculino, Exprimindo a parte emocional e intuitiva da mulher, Por oposição à suposta parte intelectual do homem, E uma das homenagens que lhe faço aqui, É postar as duas músicas que você escolheu para sua participação em nossa apresentação, Iskanderia de Natacha Atlas quando é a Herodiana quem fala, E Waiting de Sheila Chandra, Quando é a vez de Maria Madalena, Você já sabe também que minha fase de palestras, Tanto as acadêmicas, Como as de performance, Terminaram, E decidi publicá-las no meu livro Um Bazar Chamado Pescoço de Cavalo, Exceto algumas, Como aquela chamada Gravidade. Porque achei-a pedante e presunçosa, Mesmo tendo ela caído no seu gosto, Mas se você continua de cara feia, Te pergunto: Que importância tenho eu para explicar aos outros o que escrevo e como? Nenhuma! Sou tão insignificante como Maravilhas Explicadas, Quem se interessa por esclarecimentos de um pretenso escritor amador? Nem mesmo eu, Um rude fariseu, Tenho interesse em ler e buscar explicações para as crônicas dos melhores colunistas do jornal O Estado de São Paulo, O melhor da América Latina, Que leio desde criança, Contudo, Mesmo a contragosto, E relutante, Você aquiesceu ao pequeno texto reescrito com o mesmo nome, Gravidade, Meu último que você leu pouco antes de seu adeus sem aviso-prévio no dia 02/03/2016, E apesar de ainda preferir a transcrição da palestra na íntegra no meu livro, Você teve a bondade de me felicitar pela minha fidelidade, Sem nenhuma concessão, À minha triádica escrita, As ideias nascidas do intelecto, Impulsionado pela alma, Nutrida por música e também pela intuição em busca de uma ilustração para materializar o conjunto, Nunca as músicas, Nem as ilustrações serviram de simples decorações de textos, Elas nunca se fizeram presentes por capricho e acaso, A música é e sempre será  a alma do intelecto e a imagem seus olhos, Se onde você se encontra lhe foi preservado o dom da reminiscência, Recordará que na palestra Gravidade foram poucos os que entenderam como o conto Além do Portão nasceu de uma interpretação da música Bylar pela alma, E ofereceu ocasião e uma demanda natural para se elaborar um contexto para tal interpretação, E eu decidi explorar as Experiências De Quase-Morte que aprendi com os vários livros de Kenneth Ring, Fui longe demais sobre algo que jamais saberemos, Ou talvez eu esteja errado e você possa já estar sabendo de tudo, Especulei sobre o que acontece com aqueles que decidem não voltar de um coma, Deixando o mundo real sem provas, Apenas com um cadáver, E não se esqueça que quase ninguém se empolgou com minha ingênua pretensão de um Grand Finale, Aquele último e longo parágrafo de duas páginas de livro, Escrito em português galego do século 14, E que me tomou três meses de leituras da época, Neste momento, Posso até ler seu pensamento retrucando: E o texto Abaixo do Décimo Nível? Todos que o leram jamais perceberam que foi escrito no ritmo de Águas de Março de Tom Jobim, E os presentes na palestra tampouco o entenderam apesar de minhas cuidadosas e prudentes elucidações, Você se lembra de alguém ter perguntado o significado de Abaixo do Décimo Nível? Como convencê-los de que há centenas de degraus na escada de nossa consciência, Desde o alerta total até a morte? Como fazê-los entender que, Na preparação para uma cirurgia, A anestesia geral faz nossa consciência descer somente até o décimo degrau, E abaixo dele há um verdadeiro universo de informações e experiências onde, Possivelmente, Reside parte do conhecimento absoluto que o cosmos nos concede de graça? Discutimos muito sobre isso, E certamente você não esqueceu da catarse da palestra, porque Gravidade foi escolhida como título, E porque a palestra foi ilustrada com a foto daquela mulher sem rosto, Parecendo um mar engolido pelos céus, Uma ilha sumida nos mares, Destilando mistérios, Curiosidades pelo elementar e absurdo, Sabe, Deirdre, As pessoas só têm tempo para sobreviver, E fora disso, Só querem o que o império romano oferecia ao povo: Panis e circenses, Só que o entretenimento dos romanos nada tinha a ver com a cultura de uma civilização esclarecida e inteligente como a Ateniense, Os gregos visavam conquistar o saber, E os romanos apenas o poder, Todos nós sempre soubemos que somos uma ínfima parte do todo, Mesmo assim queremos ser lembrados por alguma coisa, Queremos fazer algo que fez diferença no mundo, Algo que mudou a vida das pessoas para melhor, Mas não somos nada, Por isso deixo o que escrevo, Que nada tem de valor, Nestas chamadas redes sociais, Para ser esquecido, E não lembrado, Apenas para me convencer de que passei por este mundo, Nada importante, Simplesmente para certificar-me de que existi aqui uma única vez, Só isso, Gravidade foi escrita para explicar o que não interessa a ninguém, Explorando uma das três tríades que chamo de olhos da alma, Aquelas imagens que me desafiam a escrever sobre elas, Sem querer saber o que seus criadores pretendiam nos transmitir com suas artes e os nomes que lhes foram dadas, E Gravidade foi uma das raras imagens que minha alma não conseguiu atinar, E precisei, Pela primeira vez, Entrar em contato com a artista, Uma Argentina, E pedir a ela para me descrever o significado da foto, Inclusive a razão de seu nome, Foi um desafio para mim e para o público que continuou a ver navios, Mas, Em compensação, Tive o enorme prazer de compartilhar com você o que inferi das generosas elucubrações que ganhei da artista: Não preciso ver seu rosto, Porque em você não há nada de assustador e misterioso, Há quem sinta a gravidade caindo, Nos levando para casa, Subindo e vendo estrelas colidindo, Para saber de onde viemos, Há quem pense nas lembranças esquecidas de uma mulher que acredita que você um dia já foi, Até quem note os nítidos detalhes de seus sapatos, E ainda os ouve como moedas a tilintar, Te vejo como  reflexo da composição de um artista, Vejo você evocar e recriar uma atmosfera livre, Um desígnio singular que te define, Uma cintilação suave, Incerta e fina, Que bruxuleia incolor e sozinha, Indo de um puro rio a uma opaca névoa, Ainda não desfeita do sol nascido, Criando a ilusão de um ser desaparecendo no ar rarefeito, Uma ninfa etérea e real, Atraída pela gravidade sem peso, Flutuando em direção a uma luz que se acende em mim, Ao final, Deirdre, Ficou muito melhor a redução de quase duas horas de falação inútil a alguns minutos de leitura, Se bem que quase ninguém lê, Mas nada me deu mais satisfação do que reviver algumas das várias ilustrações que me inspiraram escritos, A mulher espectral que caminha solitária na escuridão de um casarão abandonado, Mas que precisa de uma lamparina para se guiar, Porquanto só quem vive precisa de luz, A jovem que derrama uma lágrima de terror perante o horror, E que para mim se afigura como o feminino santificado que abençoa e enfrenta o medo, A outra que não sorri e foi fotografada num momento de acidez, Mais uma outra que fita o vazio infinito, Sem nenhuma esperança, Por algo que perdeu para sempre, E, Por último, Aquela que esbanja charme, Numa fria indagação, Dissimulando seu interesse do porquê, Na madrugada do dia seguinte à sua morte, Enquanto seu corpo aguardava a dissolução em poeira, Pensamentos vários tramitavam em minha mente, Todos voltados para você, À luz brilhante das estrelas, E refleti: Delas viemos, Para elas voltamos, E por que não sonhar que estamos viajando entre elas, Prócion, A cintilação de uma lâmpada suspensa, Castor e Pólux, Os padroeiros de nossas aventuras pelo espaço, Nossos fogos de Santelmo, E para mim a única Helena que você sempre foi, Minha Betelgeuse, O braço de minha guerreira, Do centro regulador de minha psique, Rígel, O seu pé de algo maior, Não se exaspere com este meu cansativo palavreado, Gastei toda esta saliva para lhe dedicar um poema, Sonhos Com Estrelas, Que gostaria que você lesse, Mas não se perturbe, Jamais serei um cão Meara se lamuriando sobre o corpo de seu dono Arcturo, Não me lembrarei de você somente na data de seu aniversário, Como Vega e Altair, Vivendo em lados opostos da abóboda celeste, E com permissão de se encontrarem somente uma vez por ano, Nunca fizemos nenhum pacto, Daqueles que quem morrer primeiro volta para avisar o outro, Nunca fizemos promessas, Portanto, Deirdre, Resta-me te dizer, Não te prometer, Que por você, Doravante vou tentar transformar meus pálidos debuxos de morte-cores em aves-do-paraíso.

São Paulo, 01/10/2016

Minha Canção para Deirdre


Canção de Deirdre para a Herodiana

Canção de Deirdre para Maria Madalena