sexta-feira, 28 de julho de 2023

À ESPERA DE GODUFO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Matilda era impulsiva, volúvel e da cor amarela indomável que rechaça todo tipo de atenuação e transborda da tela onde o pintor tenta enclausurá-la com outras nuanças. Ia de um extremo a outro, de borboleteira a beatlemaniaca. Com a mesma inflexibilidade da cor da gema que substituiu os besouros bretões pelas borboletas tropicais, Matilda abandonou estas últimas bisonhamente emolduradas nas paredes de sua casa e passou a perseguir óvnis, estes objetos não identificados chamados discos voadores. A escolha dessa nova presa deveu muito ao livro de Eric Von Daniken, Eram Os Deuses Astronautas, que abriu novos horizontes perdidos para Matilda, e do segundo livro desse autor, As Provas De Daniken, para o primeiro sobre os misteriosos óvnis, A Verdade Sobre Os Discos Voadores, de Donald E. Keyhoe, foi um salto rápido e previsível no abismo. Em menos de dois anos, Matilda já era bem versada sobre o assunto e ainda teve um contato imediato do terceiro grau com o Dr. Allan Hynek, um astrônomo considerado a autoridade mais respeitada da época nos meios da mais nova pseudociência e que trabalhou quase duas décadas num projeto secreto da força aérea da terra dos libertos chamado livro azul que tinha por objetivo investigar se alguém ou alguma coisa estava invadindo o espaço aéreo americano. O encontro com o criador das primeiras categorizações ufológicas e que foi convidado por Steven Spielberg como consultor no seu filme ET, ocorreu em São Paulo, e no terceiro e último dia das palestras deste renomado ufólogo, Matilda conseguiu abordá-lo nos bastidores para lhe pedir um autógrafo e não perdeu a oportunidade para fazer a clássica pergunta de quem deseja acreditar em algo, mas que precisa de um ser superior para sancionar sua nova crença: Sim, eles existem, mas eu estaria mentindo se eu lhe dissesse de onde vêm, pois ninguém sabe nem mesmo o que eles são, respondeu o Dr. Hynek. A resposta não contribuiu muito para as expectativas messiânicas de Matilda, mas não impediu os seus esforços jesuíticos de catequização tal qual a primitiva igreja cristã que prometeu aos seus fiéis que a sua geração testemunharia o retorno de Jesus, mas como ele não apareceu, tratou de preparar suas comunidades para uma segunda vinda do cristo num tempo a perder de vista e a recomendar prudência e vigilância porque ninguém mais sabia o dia e a hora do temido dia da volta do filho do deus terráqueo. Ainda que esse deus assim como os alienígenas permanecessem em seus altivos pedestais e fora do alcance dos olhos de Matilda, esses óvnis pareciam estar dando sinais de aproximação a várias pessoas em todo o mundo e o que causava fascínio em Matilda era o fato de ainda não se saber, oficialmente, o que eles eram e isso a impelia a fazer prosélitos pelo simples prazer de impressionar as pessoas e não necessariamente para suprimir suas próprias incertezas mediante a propagação de suas ideias. Matilda sempre era movida por desafios e novidades e os óvnis eram um modismo que a fez se sentir tão próxima de deus como nunca estivera antes. Ela passou a nutrir sentimentos de grandiosidade, desejosa de ser uma pessoa diferenciada e privilegiada, detentora de uma revelação a ser dividida com poucos e pregava como um João Batista preparando o caminho dos seres cinzas e endireitando suas veredas para o encontro final. Para manter o astral elevado, Matilda vivia cantando a música Calling Occupants Of Interplanatery Craft, dos Carpenters, reconhecida pelos novos cultistas como o hino oficial do dia mundial do primeiro contato entre os símios do planeta terra que andam sobre duas patas e os ultra-emissários interplanetários. Mas Matilda não se contentava em confinar seu ímpeto precursor numa área tão distante e isolada como a ribeira do Jordão e ampliou suas audiências perigosa e pateticamente para todas as esferas sociais. No primeiro dia de seu novo emprego, ela ocupou os noventa minutos do horário do almoço fazendo uma síntese do fenômeno ufológico e deixou suas novas colegas indagando como ela teria conseguido passar no exame psicotécnico. No velório de sua avó ela conseguiu roubar a atenção de uma rodinha de contadores de piadas por quase duas horas. Com o passar dos anos e com os óvnis cada vez mais mostrando indícios de que eles não eram projeções das mentes humanas, mas, ao contrário, os humanos eram as projeções deles, o interesse de Matilda pelos extraterrestres passou para um segundo plano, diminui, esmaeceu, descorou aos poucos, assim como o amarelo que segue sua tendência natural ao claro e guarda uma afinidade intensa e física com o branco, como bem observou o artista e teórico abstrato Wassily Zandansky. A volatilidade de Matilda a levava a migrar para qualquer tom, sem baldeações e sem gradações, com a mesma disposição que ela tinha para sair de um estado de profunda melancolia para outro de puro êxtase. Sua inclinação à alvura, em particular, era ambivalente, como o positivo do retrato de sua alma, mas negativamente carregada de todas as misérias humanas resgatadas de volta a uma caixa de Pandora, e recomposta de todas as cores do espectro devolvidas à sua fonte original através do mesmo prisma que as separaram, transformando-o na cor que não representa apenas a ausência de cores ou a soma de todas elas, mas também uma contraposição ao nada que é gelado, escuro e assustadora e desproporcionalmente maior do que o insignificante todo para o homem, essas pedrinhas luminosas e solitárias que salpicam o breu sem-fim. Matilda se desviava para o branco não porque ela fosse pura, pois nem mesmo seus terapeutas tinham acesso ao seu lado sombrio, e nem porque fosse uma pacifista por convicção, mas por conveniência, pois sua apologia a não violência era apenas um simulacro para camuflar sua paura, daí o fato de sua face parecer estar invariavelmente pálida de sobressaltos. Ao sabor das monções e em atrito com infortúnios, Matilda empreendia odisseias como um Ulisses retirante, instigada a sair em busca de aventuras, como se o destino não permitisse que sua vida tivesse interstícios ou sofresse solução de continuidade, sempre lhe aflorando uma nova veneta logo que uma velha começasse a minguar. Por onde andava Matilda ainda carregava consigo seu acervo de relatos sobre visitantes de outros cantos do universo e quando a ocasião se oferecia, por estar na entressafra e por falta do que falar, ela entortava novos incautos com as mesmas histórias, agora não mais com o mesmo entusiasmo amarelo e contagiante, mas apenas com uma centelha esbranquiçada e nada interessante. Um desses novos imprudentes não se empolgou nem um pouco com suas fábulas, mas se apaixonou por ela e logo se tornou seu novo cristo, mais tarde apelidado por Matilda de Mensageiro da Enganação, um nome inspirado no título de um livro do ufólogo Jacques Vallee. Como acontece com todos os filhos do homem, Matilda passou por várias fases na vida, cada uma delas de duração variável e marcada por uma profusão de opiniões, interesses, vícios e credos que são despudoradamente jogados na privada de tempos em tempos deixando menos vergonha do que fedor. Mas Matilda sempre precisou de um eixo em torno do qual suas manias efêmeras e cíclicas pudessem orbitar elipticamente como um asteroide que não se importa quão longe ele possa às vezes estar de sua estrela mãe contanto que ela permaneça sempre lá, no mesmo lugar, sempre lançando luz sobre sua trajetória e mantendo sua cauda alinhadamente para trás tal qual seus cabelos acariciados pela brisa do mar. Este centro gravitacional era um ponto de referência, um alguém que estivesse à sua altura em termos relativos, e abaixo dela e de deus em termos absolutos. Um tipo de guru não charlatão que desse mais do que validez às suas opiniões e ainda se prostrasse aos seus pés como uma divindade submissa. Não um líder que escolhesse sua meta e a conduzisse até ela, non ducor, duco, ou um conselheiro que sugerisse mudanças nos seus planos, ou um guia ou um orientador que lhe mostrasse o caminho, mas apenas uma diva que tivesse pelo menos algo em comum com ela, que tivesse um conhecimento geral aparentemente parco e que a motivasse a superá-lo, deixando-a ser o centro de suas atenções, ouvindo-a, admirando-a e engrandecendo-a e, ainda que pudesse ser autônoma para arrebanhar seus próprios admiradores, deveria se resignar com o papel de figurante para que Matilda se sobressaísse como a atriz principal. Tal potestade podia ser filho de homem nascido de mulher, mas de natureza glamorosa, como a Miranda Priestly da moda cuja opinião é a única que importa, e deveria se apequenar sob a sombra de Matilda e ser pega para seu cristo particular, como o Personal Jesus do Depeche Mode. Matilda tinha ciúmes desmesurados dessas divindades e se melindrava a ponto de mandar tomar banho até mesmo seus familiares se estes lhe furtassem seu tempo com elas ou desviassem suas atenções para outras pessoas. Se suas deidades morressem, morreriam também todas suas motivações correspondentes ao período que atravessava e com elas Matilda podia se afogar como um salva-vidas despreparado que é levado para o fundo da água pelos braços fortes de um desesperado. Matilda tinha dificuldades crônicas para se livrar da dependência destas divindades, como um viciado inveterado que só consegue deixar as drogas com ajuda médica e ao custo de muito sofrimento. Só mesmo o tempo, o remédio que não faz mais efeito e a visão de uma nova imagem primitiva permitia que uma déia dessas fosse milagrosamente largada no esquecimento, num ostracismo involuntário. Na infância e na adolescência Matilda teve um cristo chamado Joe Citadino que nunca entendeu a indiferença e o desprezo de Matilda por conta do seu total desconhecimento das sequelas deixadas pelo abalo emocional e incurável que ela sofreu na juventude e que dividiu sua vida em duas: antes e depois do colapso. E assim como Estragon e Vladimir de Samuel Beckett esperaram pelo amigo Godot que não apareceu e concordaram em ir embora mas não esboçaram nenhum movimento, Matilda morreu sem ver seu disco voador e suas duas vidas nunca saíram do lugar.


AS ÚLTIMAS HORAS DE VIRGINIA WOOLF


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

As horas, Por que elas se demoram, E quando chegam vão embora? Por isso esta minha mensagem solitária e breve, Para ser hora esquecida, E não esperar por mais instante, Para tirar um peso oneroso das suas costas, E por para dormir sonhos de que desde sempre me levanto, Pois minha luta está pela hora da morte, Que não tarda, Não se atrasa, E nesta hora de cancão pegar menino, Mantenho acesa a lâmpada da imaginação quando tudo está em silêncio, No fundo do mar, No ventre materno, Sem tempo para ver de que lado sopra o vento, Sem sono, De olhos arregalados, Sem cochilos e despertares, Porque já estou em cima da hora, Já não tenho mais tempo para juramentos, Se não me apressar agora, Nunca vou te ler, Nem te escrever, Não posso mais ter horas para a liberdade de sua criação, Para o prazer da sua leitura, E da sua audição, Oras, O que são essas horas? Por que esperar para produzir em boa hora? Por que achar que as más escolhas são sempre feitas na última hora, Em má hora? Para que fazer hora? Por que esperançar que a inspiração venha fora de hora, A desoras? O medo que me retrocede, Da soleira da porta banhada pelo sol contente, Até as horas mortas sob o luar doente, Vem da minha frívola insegurança, De meu arrependimento da hora que nasci, Da hora que morri, Então, Meu benquerer, Saio à boca da noite, Faço horas pelos jardins, Até encontrar-me com as águas de olhos fundos, Irmãs na dor, Chorando comigo minhas mágoas, Dou-lhes meu beijo de boa noite, Deixo-lhe saudades, Meu amor pela sua bondade, Por ter sido feliz ao seu lado, Para te deixar criar, Para levar minha maldição embora, E não te ver mais aflito, Te deixar livre de minha eterna aparência triste, Minha insistência doentia, Que cria coragem com a prece saída de seus pensamentos, Tudo nas melhores horas e nos melhores momentos.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

ESPÍRITO SEGUNDO UM DAIMON E UM HUMANO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

POR UM DAIMON

O espírito cábula que não se manifesta nem a cada lua azul. Joga só com o nome e pelo nome não atende quando invocado no reduto do seu suplicante ou em estância forânea.Tem ojeriza draculiana da luz do dia que desce com o fogo do sol e derrete o orvalho da terra que não se debela com a água da chuva e só bruxuleia com o sopro do ar.

O espírito psicóide que vem do nada e vem do azul. Sintoniza um sincrônico e, sem ser chamado, a ele se reapresenta para onde quer que seu refúgio tenha se mudado. Colhe fôlego do ar e nele se camufla quando desce à terra, esgueirando-se pela água que não molha e pelo fogo que não queima.

O espírito desarmado que não traz inimigo e também não põe azul sobre azul. Fala com os olhos e pela mente se expressa em sonho, mas adormece os sentidos na vigília. Renova suas feições da terra e confunde como fogo amigo. Testemunha a água de lágrimas assustadas e o ar gentilmente abanado pelas preces murmuradas.

O espírito anacrônico que não deixa seu nome entrar num livro azul e o abandona numa lápide. Zela pelos que ficaram e dele não se sabe o que se espera, mas a ele mais se pede do que se tem para dar. Materializa-se como vapor de água que não pode ser bebida pela terra. Desaparece como o fogo da vela que se extingue com o aroma de incenso que esteriliza o ar.


POR UM HUMANO

Cadê você, seu inconstante,que não sai do lado oculto da lua, que tem mais fama que o nome que eu uso para te invocar, e que sempre me deixa falando sozinho,tanto no meu lugar que me amedronta,como no lugar dos outros que não me afronta?E por que esse seu apego pelo umbral da noite,que traz caligem aos meus dias iluminados, que nascem com o orvalho da terra e se derretem com o fogo do sol, que não se debela com água de tempestades, tampouco tremula com o ar de ventanias?

Eis aí você, seu casual,que surge do nada, do lado invisível da lua,e vem me procurar só por meio de sincronicidade, e mesmo que eu não te chame,faz sua aparição parecer mera coincidência,para onde quer que meu lugar tenha se mudado!E por que você vem buscar ar do meu arfar,e ainda nele se disfarça quando desce à terra,valendo-se da minha água que não te molha,e de meu fogo que não te queima?

Aqui me tens, seu pacificador,que não faz se acompanhar de inimigos, e não lança o lado obscuro da lua contra sua própria obscuridade!Fale comigo com seus olhos!Faça telepatia comigo nos meus sonhos! Acorde durante minha vigília!Mostre-me sua feição renovada da terra! Não me confunda com fogo amigo!Veja a água das minhas lágrimas assustadas!Sinta o ar das minhas preces murmuradas!

Para onde você vai, seu atemporal, que teima em não aparecer no lado visível da lua e se deixa abandonar sempre no seu lado sombrio? Zele pelos que ficam comigo,porque não sei o que de você esperar, e só sei que mais lhe peço do que tenho para lhe dar! Apareça diante de mim como vapor d'água, que não pode ser bebida pela terra, e desapareça com o apagar do fogo de minha vela, e se dissipe com meu incenso que esteriliza o ar!

Eu sou feito de água, terra, fogo e ar e você é o irrepresentável que quintessencia minha alma vulgar.


Man gets tired
 Spirit don't
 Man surrenders
 Spirit won't
 Man crawls
 Spirit flies
 Spirit lives when man dies
 Man seems
 Spirit is
 Man dreams
 The spirit lives
 Man is tethered
 Spirit is free
 What spirit is man can be

quarta-feira, 26 de julho de 2023

O FUTURO É O QUE VOCÊS FIZEREM DELE ONTEM

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 


Nota: Além do texto, os londrinos se amarraram na ilustração, capa de um álbum da banda britânica OASIS, uma foto tirada numa transversal da famosa Oxford Street, quase em frente à loja de sebo de CDs chamada SELECTA (a primeira do lado esquerdo), onde comprei e troquei CDs muitas vezes nos anos 90. Em tempo: a música é da banda britânica CORNERSHOP, formada por um inglês e um indiano e tem o nome de SPECTRAL MORNINGS (Manhãs Espectrais), nome que achei bom para a poesia.



Manhã de glória, Pose de Lord, Manhã da história, Patíbulo em Oxford, Em Paris dancei o último tango, Em Liverpool cantei além-mundo, Eterno campo de morango, Eterno surreal sou oriundo, Na porta da última morada, Wilde, Keats e Yeats são seus, Na janela da arte narrada, Woolf, Lessing e Austen meus, Manhã que aureola, Massa verde na água mel, Morre na pedra que rola, Meu espectro sobe ao céu, Em Praga meu coração é Rilkeano, Em Grangemouth gêmeo de Cocteau, Incomparável voz de verso Joyceano, Incomparável sabor de vinho Bordeaux, Na sala da primeira oração da sapiência, Espero morrer antes de envelhecer, Na fase última de minha curta vivência, Espero vencer antes de morrer, Manhã espectral, Máquina estatal na indefesa beleza, Morre no voo da projeção astral, Minha glória no chão sem surpresa, Na America meu orgulho é de cor preta, Na Irlanda ele fala em nome do amor, Vocês dois na rua sem nome e sarjeta, Vocês dois sem ninguém e sem temor, Na noite turbulenta seu sorriso, O sol precisa se pôr para se levantar, No sonho calmo seu paraíso, A lua precisa girar para equilibrar, Manhãs gloriosas, Manhãs para onde os espectros apontem, O futuro era uma pergunta de vozes curiosas, O futuro é o que vocês decidiram fazer dele ontem. 



domingo, 23 de julho de 2023

O FAZEDOR DE CRUZ

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Desesperando-se da terra, Voltou-se para Deus, E a braços com todos seus sofrimentos, Estendeu-Lhe o direito na escuridão, Deu de mão ao mundo e suas aflições, Trocaria o guarda-roupa variado como toda fortuna por um vestido único e perpétuo de salvação, Adormeceu e sonhou com o sonho do barco pesqueiro, No qual o que ia na proa não era pescador, Era mais que um carpinteiro, Que fazia cruzes para os dominadores, E parecia um feiticeiro, Porque fazia-lhe delirar com imagens de gente e criaturas que só existiriam no futuro, Como se estivesse desafiando-lhe com uma enigmática trindade, E quando acordou do segundo sonho, Estando ainda a sonhar o primeiro, De súbito viu-se em desabalada carreira, Por um solo árido, Salpicado de outeiros com escassa vegetação, Sentindo-se uma ladra maltrapilha, Tendo as mãos sujas com coisas alheias, E a consciência pesada com sangue de outrem, E atrás de si dois de seus pares da mesma laia, Sedentos para por fim aos cem mil pecados dentro de seu coração, E apesar de seus largos passos, A distância de seus algozes diminuía, Até chegar o fim da linha que surgiu à sua frente com uma colina quase intransponível, E lá estava Deus, Soprando-lhe invisível ao topo, Um cimo assustador que fez seus verdugos darem meia volta e desaparecem no infinito, Mas a pecante não conteve seu impulso, Ultrapassou um círculo externo de mulheres agachadas e vestidas de negro, E depois outro interno de soldados de pé vestidos de escarlate, Que guardavam três miseráveis pregados em cruzes, Mas sua imperdoável intromissão a um ritual do poder, Custo-lhe uma chave de braço que prostrou-lhe no chão, Seguida de uma lança que atravessou suas costas e a cravou na terra, E antes de entregar seu espírito a Deus, Esforçou-se para erguer a cabeça, Para não morrer com aqueles condenados antes de olhá-los, E estando a noventa graus de sua visão, O do meio que tinha o rosto voltado para o leste, Virou-se para ela, E apesar da face desfigurada de flagelo, Reconhecia-lhe o fazedor de cruz, Que lá do alto, Fincou seus olhos nos dela, Despregou a mão esquerda da cruz, E com prego e sangue a estendeu para ela, Em reposta às suas súplicas nas noites solitárias, E enquanto o sol já caminhava para o oeste, Uma vez rompidos os liames do ceticismo que a prendiam à materialidade, Restou-lhe insípido, Ao acordar, O excedente de sua alma sobrevivente à esperança.


quinta-feira, 20 de julho de 2023

APENAS DIFERENTE

Dedicado a Mary Temple Grandin, americana autista que aprendeu a falar tardiamente, com a ajuda da mãe, que recusou-se a interná-la e insistiu para que ela estudasse. Temple é  Bacharel em Psicologia, com Mestrado e Doutorado em Zootecnia. Ela revolucionou as práticas para o tratamento racional de animais vivos em fazendas e abatedouros e hoje ministra cursos em universidades e é a mais bem sucedida e célebre profissional norte-americana com autismo, altamente respeitada no segmento de manejo pecuário

Meu amigo Oxman que prefere o seu apelido original AustMathr, escreveu, logo na primeira linha deste texto espetacular, uma frase simplesmente genial e belíssima: 'SE EU TIVESSE SEUS OLHOS, PODERIA OUVIR O SOM DAS ESTRELAS'. Só mesmo quem assistiu ao filme TEMPLE GRANDIN poderá tentar descobrir de onde veio esta ideia de escrever esta maravilhosa frase.
Gwendolyn Marie-Baxtor
21 de Julho de 2023.


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Se eu tivesse seus olhos, Poderia ouvir o som das estrelas, E como minha voz muda quando estou zangada, Feliz, E mais satisfeita, Se eu não tivesse uma mente, Os mortos morreriam para sempre, E eu não pararia de perguntar aos vivos para onde eles vão, Se eu entendesse bem as pessoas, Não entenderia melhor os animais, E seria tão cruel quanto à natureza, Se eu não tivesse você, Não seria independente, Nem poderia dar um significado à minha existência, Se eu não pudesse ver a morte, Antes dela estar viva, Não me sentiria próxima de Deus, E não saberia como a vida é tão preciosa, Se eu tivesse medo de atravessar a escuridão, O vendaval, E a tempestade, Meus sonhos seriam abalados, E caminharia eternamente sozinha, Sem esperança no coração, Se não existisse alguém de boa vontade para me mostrar perspectivas, As portas não se abririam para mim, E minhas ideias morreriam comigo, Se eu não fosse estrangeira, Menos mimada, Menos exigida, Mais prolixa, Menos pragmática e objetiva, Não seria tão bem sucedida, E ainda seria eu mesma, Se você tivesse meus olhos, Veria o mesmo mundo, Mas com outro tipo de inteligência, Se eu conseguisse te abraçar, Entenderia porque você faz o que faz, E porque as pessoas são capazes de amar, Se você vestisse meu corpo e minha alma, Entenderia porque sou tão diferente, Mas não inferior.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

NATUREZA MORTA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

De onde vejo o sol há muito silêncio e nenhum movimento. Ele está longe do universo. Seu lar é a terra com seus passarozinhos redomoinhando o céu, silhuetando suas formas ágeis e delicadas, num bailado não ensaiado, diante e distante de uma chama branda que harmoniza-se com nuvens desamarradas e crestadas de rosa. De onde estou posso ler seus bicos cantando, ecoando e passando ao largo da minha imaginação, deixando-se levar pela aura que estende-se até onde as águas cacheadas de verde encontram-se com o firmamento macio e ainda anilado. Meus olhos percorrem prados ondulados até onde as montanhas esmeraldas alquimiam-se com o ouro do pôr do sol, juntando-se à serenidade da noite, caindo lentamente e acalmando o coração, que bate com a taciturnidade das estrelas e cumplicia-se com o sortilégio da alvorada. Da banda oposta vejo o lado iluminado movendo-se calado e com seu rosto espreitando a pálida escuridão. Ele ainda continua bem afastado do cosmos. O teto de seu lar está vazio, sem deixar nenhuma marca onde há pouco penduravam-se olhos cintilantes que de longe observavam almas com uma aparente insensibilidade de natureza morta. De onde ainda estou gostaria de vê-lo despontar no fundo do quintal de sua casa novamente, acordando e cativando a fauna no palco onde a mesma peça é representada todos os dias. Onde estarei dormindo pela última vez, meus olhos se voltarão para o alto e sondarão as mesmas imagens ilusórias. Meu espírito buscará os mesmos sentidos vãos. E por mais alto que eu pense, ninguém me ouvirá. E por mais distante que meu pensamento viaje, ninguém o encontrará. Por mais viva que esteja minha essência enquanto deixa marcas deléveis no mundo, é a magia de meus sonhos que viverá para sempre.


sábado, 15 de julho de 2023

O MANDANTE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Conheci um sujeito muito interessante. Super culto. Erudito, com, pelo menos, umas doze graduações, outras dez e tantas pós-graduações e mestrados e uns cinco títulos de doutorado. Um poliglota. Ou melhor, um panglota, porque ele fala, literalmente, todas as línguas oficiais do planeta, e também as não oficiais, inclusive as mortas como o Latim, o Sírio Aramaico, o Aramaico Samaritano e por aí vai. Ele faz palestras pelo Brasil e mundo afora. Ele diz que foi Paulo de Tarso na sua última encarnação e que voltou para preparar o mundo para a segunda vinda do Cristo.

 Eu queria conversar com um sujeito desses. Mas era mais fácil passar um fim de semana com o papa ou pôr o Maluf na cadeia do que conversar um minuto com ele. Mas eu consegui. Fiz uma tremenda safadeza. Fui a uma de suas raras palestras em São Paulo. Devia ter umas 50 mil pessoas. Havia mais seguranças do que no dia em que George Bush veio a São Paulo participar de um festival de piadas promovido pelo Lula. Ao final da palestra, eram muitas as pessoas que queriam pedir autógrafos a ele nos bastidores, mas, como reza o evangelho, muitas compareceram, mas poucas tiveram o privilégio. Eu levei um caco de vidro comigo e tentei furar o bloqueio na marra. Quando um segurança me deteve eu fiz um corte na minha testa e o sangue começou a jorrar. O segurança ficou assustado e eu gritei.

- Um emissário de Cristo me agrediu e tirou sangue da minha cabeça! Socorro!

Um jornalista que estava por perto viu e confirmou.

- O cara está sangrando! Foi o segurança que cortou a testa dele!

 Isso atraiu a atenção de muitos fiéis que ficaram horrorizados. E a coisa foi passando de boca em boca até chegar aos ouvidos do porta-voz do Cristo que ficou preocupado e deu ordens.

 - Tragam logo esse homem aqui, por favor!

 Quando eu cheguei ao salão onde ele encontrava-se esparramado num sofá, várias pessoas vestidas de branco vieram a mim. Deviam ser médicos ou enfermeiros ou ambos. O fato é que me trataram com rapidez, delicadeza e eficiência. A grande celebridade veio a mim, ajoelhou-se diante de mim, beijou minha testa com cinco pontos e fiquei quase cego de tantos flashes nos meus olhos. Parecia aquela cena quando o Michael Jackson veio fazer um show em São Paulo e o carro de um de seus seguranças atropelou um menino. Como vocês sabem, o preto vira-casaca teve que ir ao hospital e ao lado do menino de perna quebrada tirou um montão de fotos fazendo o ‘v’ da vitória com os dedos .

O tal de Paulo de Tarso, pois esse foi o nome que ele adotou também na nova encarnação, falou suavemente e com modéstia.

- Meu irmão, o que lhe fizeram é tão hediondo quanto o que fizeram com Nosso Senhor, por isso peço-lhe que me perdoe pois meus assessores não sabiam o que faziam.

 - Nossa, quem sou eu para te perdoar? Eu que lhe peço desculpas, pois a admiração que eu tenho pelo Senhor fugiu do meu controle. Não fique bravo com seus seguranças. Eu mesmo me cortei. Fiz esta bobagem só para te conhecer. Acho que muita gente faria pior só para tocar a túnica do nosso Mestre.

Paulo de Tarso, muito tranquilo, não se surpreendeu e continuou falando dócil.

 - É verdade! Qual é seu nome?

 - Alceu.

Paulo fez uma cara simpática do tipo ‘eu sabia!’, e chamou a atenção de todos que estavam no recinto amplo, e mais da metade dos que ali se encontravam era da imprensa.

- Meus irmãos, vejam que coisa maravilhosa aconteceu aqui hoje. Estou diante de mais um gentio convertido como eu. Um gentio que demonstrou mais força do que eu, pois ‘força’ é o que significa ‘Alceu’ em grego. É preciso ter muita força e coragem para seguir o Cristo. O nosso querido Alceu se mutilou apenas para estar próximo de um humilde e pobre apóstolo do Cristo. E o que ele não faria para estar com o próprio Cristo? É deste tipo de homem que o Cristo precisa no Reino dos Céus que está para ser inaugurado. Homens de força, vontade e coragem como o Alceu. Homens que são capazes de arrancar um olho que o escandaliza para não contaminar aquele que é digno diante de Deus, Nosso Pai.

E todos aplaudiram. E mais fotos foram tiradas do Alceu ao lado de Paulo de Tarso.

- Esta cicatriz que você acaba de ganhar na sua testa será como um ingresso para sua entrada no Reino de Deus. Quando as portas do Reino se abrirem e você dela se aproximar, os anjos guardiões verão a marca da sua conversão e logo reconhecerão: ‘Este foi chamado e é um dos escolhidos’.

E eu, só querendo fazer média, para não ficar o tempo todo só sorrindo como um bobo alegre, emendei:

- E o Senhor já nem precisa mais da sua, pois o Senhor foi o primeiro a ser escolhido.

 - Não preciso mais do quê, Alceu?

 - Da sua cicatriz, Senhor Paulo!

 - Que cicatriz, Alceu?

 - A cicatriz que levou o Senhor a se converter.

 - Não, Alceu, a luz que me cegou a caminho de Damasco não deixou nenhuma cicatriz!

 - Não sabia disso. E mesmo que houvesse uma não apareceria pois agora o Senhor veste outro corpo. Talvez o Senhor tenha ficado com uma cicatriz moral ao ter que trocar de nome.

- Como assim?

 - O Senhor chamava-se Saulo e, quando se converteu ao Cristianismo, mudou seu nome para Paulo!

 - Ah sim, todos sabem disso, mas o que isso tem a ver com a cicatriz?

 - Assim como o Senhor mudou de nome, poderia também ter mudado de cicatriz.

 Ainda muito sereno e falando com segurança, Paulo sorriu meigamente para mim.

 - Não, Alceu, eu nunca tive qualquer cicatriz.

Paulo colocou sua mão sobre o meu ombro com carinho e seu sorriso simpático dispensava prolixidade sobre o assunto. Afinal, ele já tinha consagrado-me ao revelar-me, diante de muitos, um homem de força e um dos escolhidos. Em consonância com o que acabo de dizer, ele, instintivamente, ergueu levemente o traseiro do assento, fazendo aquele gesto típico e involuntário de quem está querendo dar a conversa por encerrada. Naquele instante, eu estava constrangido. Sabia que eu teria que ter a educação de pedir licença para ir embora, mas frustrado, porque eu queria tanto conhecer aquele homem e lhe fazer tantas perguntas para matar a minha curiosidade. Lá estava eu diante dele e o momento não se ofereceu para os meus verdadeiros propósitos. E eu estava muito envergonhado também, porque tenho a soberba de pretender escrever um livro sobre o cristianismo e estava ao lado da maior sumidade no assunto e para a qual nem perguntas pertinentes eu era capaz de formular. E ainda, com aquela minha mania de dar palpite em tudo e achar que eu sei falar sobre tudo, passei vergonha com aquela conversa sobre a cicatriz que nem eu mesmo sei como é que fui tão longe com ela sem qualquer proveito. Eu sou aquele leigo que se mete em tudo, que se acha autodidata. Um palpiteiro que lê uma coisa aqui outra ali e já pensa que pode escrever um tratado, um livro, que pensa que pode responder a qualquer pergunta sobre qualquer assunto como se fosse uma biblioteca ambulante. Eu estendi minha mão ao Paulo e o agradeci efusivamente por ter me recebido e não consegui sair de lá de outra forma senão como aquele chato de galocha que arranca casquinha de ferida cicatrizada e não percebe que alongar-se sobre um pedido de desculpas já acolhido não irá tornar-me mais escusado.

- E me desculpe mais uma vez por aquela história da cicatriz. É que esse tipo de assunto sempre me intriga e me faz ficar pensando, como aquele homem que teve a orelha decepada pela espada de Pedro e depois Jesus a recolou de volta com terra e cuspe, e eu fico sempre pensando que tipo de cicatriz aquele homem carregou. Eu fico cismado com estas coisas de cicatrizes, troca de nomes, nomes que tem significados como o meu e o seu, espero que o Senhor me entenda.

E o Paulo não só me entendeu como também acho que se compadeceu. Deve ter ficado com dó de mim, pois, lentamente, voltou a se sentar e a me dar ouvidos, como um Cristo resignado que não oferece qualquer resistência ao seu flagelo. Só poderia ser piedade, foi o que pensei na hora. De repente, sem eu perceber, todos tinham se retirado e uns poucos seguranças permaneceram, e eu me vi quase a sós com aquele deus naquele enorme recinto. Talvez ele quisesse deixar eu falar o quanto quisesse e não permitir que os outros rissem de mim. Isto, sim, era um gesto nobre, singela compaixão. Só quando ele teve certeza que os distantes guarda-costas não podiam nos ouvir, ele delicadamente me falou:

- Sente-se, Alceu! Fique à vontade! Eu sei que você tem mais coisas para perguntar. Pode perguntar-me o que você quiser!

Ele me falou com tanta naturalidade, com tanta paciência, que eu me senti à vontade de verdade, esquecendo que eu estava diante de um monstro sagrado da história do ocidente. Paulo fez me sentir como se eu estivesse batendo um papo com um amigo de escola na hora do recreio. Eu fiquei aliviado, deixei de lado os rodeios, os melindres, e consegui, finalmente, ir direto ao que me interessava, sem constrangimentos.

- Senhor Paulo, por que o Senhor trocou de nome?

- Alceu, nomes não são importantes. O que vale são os atos. Minha troca de nome foi um ato simbólico de batismo, de conversão de um arrependido perseguidor de Cristãos para um humilde servidor do Mestre.

- Sabe, Senhor Paulo, eu sempre achei muito intrigante o que se esconde por trás dos nomes assim como as cicatrizes que carregamos de uma vida para outra. Perdoa-me perguntar mais uma vez. Então, o Senhor nunca teve mesmo uma cicatriz?

- Não, Alceu, nunca tive. Continue perguntando e pode chamar-me de ‘você’.

- Sabe aquilo que lhe falei sobre o homem que teve a orelha cortada pela espada de Pedro?

 - Sei, Alceu. Pode falar.

 - Há algo muito curioso naquela passagem sobre a prisão de Jesus e que é narrada apenas no evangelho de João.

 - Muito bem. Quero ouvir.

 - O evangelista João diz que o sujeito que se adiantou para prender Jesus era um escravo do Sumo-sacerdote e acrescentou, ainda, que o nome deste escravo era Malco.

 - Ótimo, Alceu. Estou gostando muito. Continue.

 - E foi esse escravo chamado Malco que teve a orelha cortada pela espada de Pedro e que Jesus imediatamente colocou de volta. Eu pergunto-me, havia ali tanta gente importante, como o próprio Sumo-sacerdote, sua tropa e sua entourage. Por que João fez questão de revelar o nome de apenas um simples escravo a serviço dos Fariseus?

 - Ah, Alceu, isto foi uma mera preciosidade do nosso querido João. Na verdade, ele teve pena do podre coitado que lá estava a mando do Sumo-sacerdócio e João quis realçar que, até mesmo num momento de agonia, Jesus foi capaz de compadecer-se de um de seus algozes e realizar mais um de seus milagres.

- Já que o Senhor falou em preciosidade, ocorre-me agora que todos os evangelhos estão repletos delas. Muitos nomes para pessoas irrelevantes e ausência de nomes para pessoas importantes.

- Mas, Alceu, é justamente essa a tônica dos evangelhos, exaltar os mais humildes. ‘Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros’, lembra-se?

 - Sim, Senhor, lembro-me, mas, perdoe-me, não resisto à tentação de fazer-lhe uma pergunta mais contundente e que incomoda-me há muito tempo.

- Pois pergunte-me, então, Alceu!

- Por que existe esta teoria nos dias de hoje de que os evangelhos foram criados após a sua morte para exaltar a figura do Mestre e diminuir seu poder.

- Meu Deus, Alceu, de onde você tirou esta ideia? Os evangelhos são os livros mais divinais já escritos na história da humanidade. Minha missão era apenas divulgar as boas novas do Mestre entre os gentios através da ressurreição dos mortos, um milagre que o Mestre operou e trouxe esperanças a todos os que tem fé e acreditam sem terem visto. Os evangelhos são livros magníficos que discorrem sobre todo o ministério de Jesus Cristo na terra e transmitem seus ensinamentos a todos os seguidores.

- Senhor Paulo, volto a questão dos nomes. O Senhor tinha um nome de rei, Saul, o primeiro rei dos hebreus, se não estou enganado, e o trocou por um nome grego, Paulo, que significa ‘baixo’ ou de baixa estatura. Isto não teria sido uma maneira de diminuir seu poder? Uma pessoa com o poder de um rei que passa a ter o nome de uma pessoa de importância menor!

- Não, Alceu, é exatamente o contrário. Trata-se desse homem diante de você, um arrependido perseguidor dos cristãos que se apequenou para não mais perseguir, mas servir com humildade.

- Bem, Senhor Paulo, quando o Senhor perseguia os cristãos o Senhor mandou matar um de seus mais fortes oponentes, Estevão. Isso não era uma luta pelo poder?

- Não, Alceu, esse foi um dos atos dos quais mais me arrependo em toda minha vida. Não se tratava de luta pelo poder. Era apenas meu ódio pelos cristãos e meu desejo de destruir um de seus maiores líderes e todos seus seguidores, e eu teria continuado a matá-los todos não fosse a intervenção do Mestre que salvou minha vida, convertendo meu ódio em amor à humanidade e à sua causa.

- Senhor Paulo, eu volto a questão dos nomes porque eles são muito significativos. O Senhor tinha um nome de rei e Estevão em grego significa ‘coroa’, coroa de rei. Ao mandar matá-lo o senhor não estaria tentando tomar seu lugar?

- Não, Alceu, eu não estava tentando tomar o lugar de um cristão. Na verdade, eu estava querendo destruir todos eles.

- Senhor Paulo, quero fazer-lhe uma última pergunta: Tem certeza que o Senhor não conheceu o Mestre em vida?

- Eu não o conheci como os apóstolos o conheceram, mas posso dizer que, praticamente, eu o conheci em vida porque, embora ele tenha sido assassinado, ele ressuscitou dos mortos e, mesmo depois de sua ascensão aos céus, ao lado de Nosso Pai, ele veio a mim para converter-me e tornar-me o principal mensageiro de suas boas novas. Mas, Alceu, por que você insiste tanto em me incriminar de  maneira tão implacável e inexplicável?

- Senhor Paulo, o Senhor não foi digno de ter seu nome mencionado em nenhum dos evangelhos, e acho que João foi o único que decidiu, com sutileza, dizer a todos nós quem o Senhor foi, na verdade. Eu acho que o Senhor era aquele serviçal chamado Malco a mando dos Fariseus porque este nome, Malco, em hebraico significa ‘rei’.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

COMO SE FAZ PARA CONHECER UM BEATLE?

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Estou lembrando do dia que chegou na vida da Carol, homenageando-a com a música This is The Day, da banda britânica The The, com aquele refrão - porque sont les mots qui vont tres bien ensemble - : This is the day, your life will surely change, This is the day, when things fall into place. De volta para casa, depois de um dia mágico, Carol disse: Acabo de ver um rosto, uma alusão ao título de uma música dos Beatles, I've Just Seen A Face. Como foi isso? Carol é a americana Caroline Marsh. Num sábado de manhã, de Fevereiro de 1964, Carol foi passar o dia na casa de uma amiga. Chegou cedo demais. O rádio ligado atualizava detalhes sobre a chegada dos Beatles a todo instante. Ela pensou: Nossa, acho que vou até o aeroporto para vê-los. E ela foi mesmo. Chegou, deu uma olhada na multidão de cerca de 5 mil pessoas e resmungou: Ah não, estou fora, tem gente demais aqui, não aguento isso. Pegou um táxi e pediu para voltar para a cidade. O taxista, a par do fuzuê no aeroporto, arriscou uma pergunta: Você veio ver os Beatles? Carol confirmou e disse que não queria esperar porque tinha receio do tumulto. O taxista surpreendeu: Olhe à sua volta. Os Beatles estão bem perto de você. E lá estavam eles, em quatro limusines grandes e pretas, uma para cada Beatle. Ao parar num semáforo, o taxista propôs: Vou segui-los a partir da última limusine e você me diz ao lado de qual você quer que eu pare. O taxista emparelhou com uma das limusines. Carol identificou George Harrison e pediu ao motorista para parar. Ele acenou para a limusine e ela parou. George abriu a porta e deixou Carol entrar. A longa conversa que ela teve com George foi publicada no jornal Herald Tribune de Nova Iorque porque Tom Wolf, o repórter daquele jornal, estava com George na limusine. Carol lembra muito bem da extrema simplicidade de George. Ela perguntou: Como a gente faz para conhecer um Beatle? George respondeu: A gente diz ’Oi’. Os Beatles foram muito importantes para Carol. Ela era uma garota comum, mas cool, como se dizia na época. Os Beatles mudaram sua vida. Ela tinha planejado se formar em Direito, mas, depois que ela conversou com George e conheceu os outros 3 moptops, a advocacia lhe pareceu horrível e desinteressante comparada ao Rock and Roll. Os Beatles a fizeram perceber que tudo é possível na vida. Eles estavam muito distantes do domínio das experiências de Carol. Era como se eles fossem de outro planeta. Como se eles fossem a prova de vida em outras regiões do universo. Carol abandonou a faculdade e foi trabalhar na gravadora Mercury Records. 



sábado, 8 de julho de 2023

ANYTHING YOU WANT



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

A lifetime lived, A whole Sisyphus work started over, At full brilliance, All demigods' friends, All the united and translucent suns of pale gold, Which I am still allowed to see, Reviving, They are yours, All those colossal waters, Going down, Through twisted paths, From the top of rapids to infinity, Among so indecipherable sortileges, How eternal moment of venture, Adored be all of you, I return them to your eyes, All the moonlights running the hours over sighs, Sweet harp's preludes, Over your body's singleness, Lighter than a magnolia leaf, Fallen from the sky in the night dissolved in stars, June moon silvering the fields, Whiteness of light in the silent mornings, I return them to your memories, All the cold fear that flows in my veins, All my fire that burns feverishly and remains unseen, Everything that cools me down and drives me crazy, That lifts me up and knocks me down, They are all love I give to you, From the bottom of my heart.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O SONHO MAIS DOCE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Este texto escrito pelo meu amigo Alceu, vulgo Oxman, contém, segundo ele, informações fornecidas, durante um sonho, pelo inconsciente coletivo. Não são informações pessoais, e são obtidas através da projeção da consciência para fora do crânio durante o sono, e pertencem ao patrimônio coletivo da humanidade. Estas informações aleatórias e, aparentemente sem sentido, ocorrem quando a ‘anima’, o lado feminino do homem, estabelece uma ponte até o centro regulador da psique humana, que nós chamamos de deus. É muito difícil entender o que o inconsciente coletivo pretende dizer porque ele se comunica somente através de linguagem metafórica, porém a mensagem tem um propósito. O Alceu sabe de algumas coisas sobre as quais o inconsciente coletivo está dizendo, e, aos poucos, tem desvendado outras. Ele teve este sonho com o inconsciente coletivo há 30 anos. O Alceu está no vídeo DREAM A LITLLE DREAM OF ME, cantada em francês pela banda britânica THE BEAUTIFUL SOUTH. Mas o Alceu nunca gostou de aparecer. Ele está no meio dos carros dirigindo na Avenida Champs Élysées em direção ao Arco do Triunfo, está no barco passeando pelo Rio Sena, debaixo da Torre Eiffel, próximo ao teatro LE LIDO e caminhando, anonimamente, pelas ruas de Paris.
Gwendolyn Marie-Baxtor (vulga Inglesa Luso Chinesa),                     
7 de Julho de 2023

O sonho que tenho com você é o mais doce de Dóris. É o despir de meu espírito como se tira uma blusa, para entrar na sua casa da vida, andar pela bagunça que se espalha pelo seu chão e ouvir agora o que você iria dizer ao mundo só no futuro. Seu café está frio e seu jornal é de ontem, mas seu sorriso candente, embora me remonte a um passado recente, me prende somente à imponderabilidade deste momento. Seu lençol está encardido e a poeira se acumula. Sua roupa está rasgada e seus sapatos gastos. Com toda esta bagunça, você não deve ficar surpreso com tudo que desprezava nos outros. Você perdeu a mulher que todo homem deseja e precisa, mas ela voltará e colocará seu casaco furado no piso para você se deitar. No sono que você pegar, a melancolia que impermeia seu coração irá espairecer. Aquela mulher volta em mim de pés descalços, diz coisas e loisas e coloca nomes em todos os rostos que ela encontra em sua mente. Já estivemos aqui não sei quantas vezes e sempre recomeçamos como se fosse a primeira vez. Brrr, mas que frio faz aqui! A caminho de seu futuro, não hesite em partir de onde é menos recomendável, de seu pilhérico teclado, dos diabos, mas não se preocupe, sua sobrinha vem ao seu auxílio tocando um violino ligeiro, irrequieto e escriturado por um político nessa tessitura mais aguda. No ciclo corrompido em que você tem vivido, esta e outras mulheres farão a água suja de sua morada não tardar a esvair-se. Aquele piano que você não usa há muito tempo despertará para martelar a madeira revestida de feltro e brandir o recinto. As coisas não serão mais as mesmas, mas sua popularidade permanecerá inalterada. Aprenderá a cozinhar, conservará sua sagacidade, falará com a língua do corpo. Iniciar-se-á na prestidigitação sem ajuda de instrumentos. Aprenderá a pescar. A gravar. A inverter os acordes para um jazzista. Seu próximo sonho já acordou dentro de mim ainda mais doce. Despertou em mim aquela mulher dando voltas ao mundo em sua maleta, enrolada num pano branco, entrando em transe e dançando para você, como uma mulher Maria, com uma maneira apaixonada e poética, como de sentir e de viver. Seu último sonho já acordou dentro de mim, abriu-me os olhos e os ouvidos com a sublime sinfonia dos meninos que vêm do centro mundial das testemunhas do altíssimo e a eles se juntaram suas sete oitavas, suas quatro cordas afinadas em quintas juntas e a sagrada voz da negra que você levou de um cabaré para o estrelato. O espaço deixado por sua tristeza indefinida será preenchido pela grande fuga de Beethoven e de futebol! Pelo interlúdio vicioso e arenisco como um tapa de gato! Por prelúdio! Por blues à deriva! Por uma Ippanese barroca, rendendo preces a este nosso jogo de encontros que me permitem o direito de te escrever, mas não de te fazer perguntas. Pergunte a si mesmo o que sou para você. Pergunte ao balseiro. Grite para ele se ele não te ouve. Traga a água suja de volta para sua casa se quiser, mais brinquedos jamaicanos, um cantor country, um tema aleatório. Eu gosto dessas coisas. Traga um revolucionário, um arpejo, mais temas estocásticos. Leve-me ao melhor restaurante de Paris para jantar, deixa-me saudosa de palavras solitárias, inicia-me, faça de mim uma amante demente, engrandeça-me como um elefante, escreva-me um poema perturbado, ligue-me à lua, contorça-me, troque-me por Dóris, Dóris por Teresa, e Teresa por Atena. Você e nosso instrumento da alma e da mente nos adentra. Tudo está nesta doce lembrança de um sonho logo ao amanhecer.