sexta-feira, 28 de abril de 2023

VOCÊS NÃO SÃO TÃO IDIOTAS COMO PARECEM!

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  


Era Fevereiro de 1964. Harold Conrad, promotor de lutas de boxe, estava em Miami para cobrir o tão aguardado combate entre o campeão mundial de peso pesado, Sonny Liston, e o jovem e promissor desafiante, Cassius Clay. No mundo inteiro não se falava em outra coisa. Aliás, na América falava-se noutra coisa sim. O coração dos americanos pulsava freneticamente com um fenômeno chamado Beatles que acabara de chegar na cidade, vindo do outro lado do Atlântico. Harold logo teve uma ideia: colocar juntos Cassius e os quatro moptops num poster promocional. Era como acertar os besouros e o fala muito com uma só cajadada. Harold até imaginava o sucesso que fariam os cartazes e as capas de revistas com as quatro celebridades e o candidato ao cinturão. Ele procurou o empresário dos britânicos, Brian Epstein, para pedir-lhe uma autorização. O fleumático inglês, meio lisérgico, disse não, por questões de segurança. Harold já tinha tudo planejado na cabeça e não iria desistir. Ele, Sonny e sua esposa foram convidados para ver a apresentação dos Beatles no programa do Ed Sullivan. O favoritíssimo Sonny fez uma rápida aparição apenas para receber os aplausos de praxe. Logo depois dos primeiros números do programa, entraram os Beatles. Quando eles terminaram de cantar a primeira música, Sonny cutucou Harold e disse: Fizeram todo esse fuzuê por causa destes vagabundos? Meu cachorro toca bateria melhor que aquele narigudo! Ao final do espetáculo, Sonny e sua mulher foram embora, mas Harold foi até os bastidores, procurou Ed e pediu a ele para apresentar-lhe aos Beatles. E não é que ele conseguiu! Harold perguntou aos four fab se eles não queriam assistir ao treino do Cassius Clay. Oras, por que não?, respondeu John Lennon. Porém, havia ainda a barreira imposta por Brian. Não se preocupe, nós damos um jeito nele, disse o debochado John. No treinamento propriamente não aconteceu nada de excepcional a não ser aquela foto que entrou para a história. Foi tudo engendrado e coreografado por Cassius. Ele pediu aos Beatles para deitarem-se no ringue, como se tivessem sido nocauteados, e Cassius ficou bailando e sapateando em volta deles, vangloriando-se. Com tantos holofotes convergindo para os levados à lona, Cassius olhou para eles e disse: Caras, vocês devem estar levando uma boa grana. Vocês não são tão idiotas como parecem. E John respondeu na lata: Nós não somos, mas você é! Sonny foi nocauteado no sexto assalto. Cassius Clay converteu-se ao islamismo, tornou-se Muhammad Ali e o maior campeão dos pesos pesados de todos os tempos. Harold abandonou a carreira de promotor de lutas e virou escritor. E os Beatles? Well, well, eles estavam só começando, mas já eram Hors Concours.



sábado, 22 de abril de 2023

SEMELHANÇA A DEUS

Texto  de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

O trecho do livro que eu te enviei não foi inspirado em música. Na verdade, ele foi escrito na terceira pessoa. É o narrador quem fala do personagem. Eu fiz minha própria leitura do texto e o coloquei na primeira pessoa, como se o próprio personagem estivesse falando sobre si mesmo só para você. Mas no livro não é assim. Para te explicar o que pretendo dizer no livro levaria mais tempo do que ler o livro inteiro. Eu escrevo não apenas porque gosto, mas para deixar registrado que tive uma vida neste planeta e também para passar adiante tudo que consegui aprender lendo muitos livros. Nunca tive e ainda não tenho a mínima pretensão de ser um escritor, muito menos ainda culto e inteligente. Além disso, não tenho condições de escrever um livro de não-ficção porque ninguém, se houver alguém, me levaria a sério. Então, penso ser mais fácil passar adiante meu aprendizado sob a forma de ficção. É difícil ou até mesmo impossível alguém se interessar pelo que escrevo e perceber algo subjacente ao meu texto metafórico. Este trecho que eu te enviei ocupa apenas cerca de 90% de uma única página de um livro que pretende ter cerca de 250 páginas, e já estou quase na metade. No entanto, este trecho de 45 linhas contém muito mais informação do que pode se perceber à primeira vista. Este trecho se encontra na página 19 do livro. Lendo-o isoladamente, da maneira como você leu, não é possível se ter qualquer ideia do que o narrador fala sobre o personagem secundário chamado Tilly. Se você ler as primeiras 18 páginas, você terá uma vaga noção sobre o que o narrador pretende dizer a respeito do personagem. Mesmo assim, não será tão fácil entender o todo, mesmo que você ler o livro inteiro quando eu por no papel as 125 páginas restantes que estão impressas em minha mente. Não tenho a ridícula petulância de querer imitar James Joyce. Meu livro não é ilegível como Paulo Coelho qualificou Ulisses, considerado o melhor romance dos tempos modernos, assim como seu autor, James Joyce, é considerado o melhor escritor da literatura moderna no mundo. Não duvido, e sei que você não me dirá, que você achará estas 45 linhas de má qualidade, banais, triviais e bregas, um patético amontoado de retalhos sem nexo e pretensamente sofisticado. O que mais importa é que este trecho é bonito para mim, pois eu usei a alma para escrevê-lo. Normalmente meu cérebro reúne as informações que acha úteis e depois deixa a alma descrevê-las à sua maneira, mas cuidando para não parecerem ilógicas, pois o cérebro está sempre por perto, observando o tempo todo. Nas primeiras 18 páginas páginas, o daimon de Tilly, aquela voz interior citada por Sócrates, fala muito sobre este personagem, e a partir da 19 ele passa a descrever seu comportamento com ideias concretas e abstratas, através de alegorias e metáforas, atribuindo ao personagem cores, seus efeitos psicológicos sobre o ser humano e seus sentidos abstratos a elas atribuídos pelo homem. Coloca-o também lado a lado com as estrelas e suas temperaturas que guardam relação com cores. Por último, ele faz menção à maneira como os psicólogos, como você, descrevem o comportamento das pessoas bipolares e desequilibradas nas suas fases maníacas. Um pouco antes da página 19, o narrador dá indícios de que o personagem Tilly está se aproximando do auge da fase maníaca do seu transtorno afetivo bipolar, se envolvendo com o espiritismo e se tornando um fanático. Este trecho é uma síntese do estado paranoico de Tilly. A cor escolhida para representar tal estado é o azul porque no sentido abstrato ela simboliza um mergulho na espiritualidade e no sentido concreto uma elevação da temperatura - um eufemismo para euforia. Ao contrário do que todos pensam, o azul que está associado à frieza na terra, é quente no universo. Todas as estrelas têm cores diferentes vistas pelos nossos telescópios. A azul é a mais quente do universo, enquanto que a vermelha é a menos quente. Para não deixar dúvidas, eis aqui a escala das estrelas com suas respectivas temperaturas e cores, desde a mais morna até a mais quente:

Vermelha =  3 mil graus

Laranja = 4.5 mil graus

Amarela = 6 mil graus (nosso sol)

Verde = entre 7 e 9 mil graus

Branca = 10 mil graus

Azul = Acima de 35 mil graus

Na fase maníaca, o estado de humor do bipolar se eleva demais ... O espírito de Tilly elevou seu ânimo às alturas... e, dentre as várias possíveis manias, seu daimon escolheu a espiritualidade, representada pelo azul, e, em consonância com essa cor, ele apresenta vários aspectos desfavoráveis de sua natureza, entre as quais, o desvario de um pseudo polímata que busca mais conhecimentos do que ele pensa ter sem parar ....e ele se pôs a procurar numa busca incessante... É também característica do azul sua tendência para o sobrenatural ...penetrando incólume nas profundezas dos domínios do imaterial e do supra terreno... O maníaco se sente um deus no topo do mundo e seu estado de humor elevado pode significar uma alegria contagiante a contragosto de seus interlocutores  ...tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com alegria esfuziante... Para comparar seu sentimento de grandeza com uma estrela azul, que além de ser a mais quente do universo é também das mais massivas, o daimon escolheu a estrela chamada Naos, que em Grego significa literalmente uma nau, uma embarcação, uma das mais brilhantes no céu e uma das mais raras estrelas azuis super gigantes, com uma massa 60 vezes maior que o sol, localizada a uma distância de 1.400 anos luz da terra. O daimon a coloca no lugar da estrela Sírio, mas só mais adiante você entenderá porque ele fiz isto, e ele continua adjetivando o senso de grandeza do maníaco ...no topo do cosmos, logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso, invencível.... O azul é uma cor santificada e enquanto o personagem transita por ela, o daimon vai descrevendo vários tons de azul tais como o azul persa e o azul prussiano ...Tilly é sagrado, divindade persa e prussiana... Para dar uma ideia do tamanho do sentimento de grandeza do personagem, o daimon mostra como a estrela azul Nau seria vista da terra se ela estivesse a uma distância de apenas 9 anos luz, exatamente onde está a estrela Sírio, que é um sistema binário composto por duas estrelas, Sírio A e Sírio B ... e de lá, mais acima no lugar de Sírio Alfa e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra... Na fase maníaca, o bipolar fala alto e rápido demais e não percebe. Ele fala sem parar e sua voz parece um trovão - no evangelho de João, Jesus chama os irmãos João e Tiago de Boanerges, que em Aramaico significa ‘filhos do trovão’, referindo-se ao temperamento intempestivo de ambos - e suas ideias correm rapidamente a ponto de não concluir o que começou e sempre emenda uma ideia inacabada com outra nova numa sucessão quase interminável. A isto vocês,  psicólogos,  dão o nome de fuga-de-ideias ...e todos ouvem sua voz eloquente trovejar e mal conseguem acompanhar suas ideias difusas e furtivas, ideias de um filho de Boanerges... O daimon se refere ao personagem como a estrela Naos, chamando-o literalmente pelo significado de seu nome, uma nau, acompanhada de uma tonalidade do azul, o azul centáureo, e compara a sua passagem pela fase maníaca com uma particularidade das estrelas azuis gigantes. A estrela Naos é classificada pelos astrônomos como uma estrela fugitiva, porque ela se desloca no universo com uma rapidez impressionante. Desde que se formou, Naos se distancia de seu ponto de origem a uma velocidade de 100 km por segundo. Ela vai ganhando massa e temperatura na medida em que se mantém viajando pelo cosmos. Do ponto de vista astronômico, Naos tem uma vida curtíssima, assim como é curtíssima a vida humana na terra que existe há quase 5 bilhões de anos. E também pode ser curta a fase maníaca de um bipolar em relação ao seu período depressivo, mesmo que demore meses, tendo em vista que a expectativa de vida do homem chega a 80 anos. Acho que para todos a vida humana nasce pequena como um rio que brotou de uma pequena bica, uns pingos d’água que se esguiam por entre as rochas, depois viram um filete de água corrente, depois um riacho, e finalmente um rio abundante que logo desemboca no mar, para a morte, mas o mar é imenso, é o inconsciente coletivo, a morte é mergulhar nele, onde os sonhos mais impensáveis são fabricados. Todas essas ideias estão compactadas na frase ....nau centáurea desde o nascedouro navegando apressada num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até o mar... Meu ídolo Pete Townshend compôs uma música chamada ‘The sea refuses no river’, ‘O mar não recusa nenhum rio’, então pensei: ‘muito menos um deus’, e a esse deus o daimon continuou acrescentando mais tons de azul, azul ciâno, azul cerúleo, e a estes tons agregou mais características abstratas desta cor ...o mar que não recusa rio, muito menos Tilly que é deus ciâno e cerúleo, confiante e devoto da fé... Finalmente, o daimon descreve o apogeu da fase maníaca, imaginando o que aconteceria com a terra se, ao invés do nosso sol, tivéssemos Naos no centro de nosso sistema: veríamos uma enorme lua cheia (do meio dia e da meia noite são nomes de tons de azul), as águas se evaporariam, a vida seria extinta, o ar seria irrespirável como ácido, e substancioso como lava de vulcão. Tudo isso é análogo ao que o maníaco depressivo faz com seus interlocutores, sufocando-os de tanto falar sem parar ...e que toma o lugar da fonte de toda energia que aquece oceanos e continentes, e de lá, no lugar do Sol Único, se torna lua cheia, lua do meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é água doce e salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é palco da fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante, derretido num mar de lava escaldante... O daimon adiciona mais atributos concretos e abstratos da cor azul, mais sintomas da fase maníaca, e mais tons de azul, azul aço e azul royal ...Tilly é habilidoso, curandeiro, incansável, é deus que não come, não bebe e não dorme, é sobrenatural, sobre-humano, forte como o aço, real como rei... O daimon começa a preparar o regresso da fase maníaca para a depressiva, como um deus que se torna humano, fazendo-o descer do céu ao chão, e vai acrescentando mais aspectos abstratos do azul, mais tons da cor azul, mais aspectos concretos da cor azul e mais sintomas do maníaco descendo a ladeira, fazendo a estrela Naos cair no chão, pois esta estrela é chamada pelos Árabes de ‘Suhail Hadar’, que significa literalmente ‘estrela que brilha no chão’. Por que interessa o nome desta estrela em Árabe? Durante os mil anos de trevas entre a alta e baixa idade média, enquanto o ocidente suprimiu o saber em favor da fé religiosa imposta pela Igreja dominante, os árabes desenvolveram, entre ouras coisas, um interesse muito grande pela astronomia e é a eles que devemos muitos nomes de estrelas por eles encontradas e batizadas. Exemplos: Altair, Aldebaran, Betelguese, Denebe, etc. Jung escreveu que ‘a falta de segurança do exaltado o induz a apregoar suas verdades, de cuja validez é o primeiro a duvidar, e, fazendo prosélitos, talvez possa provar-lhes o valor e a exatidão de suas próprias convicções, pois não sente gosto na abundância de seus conhecimentos, e, ao ficar só, sente-se isolado, e o medo de ser abandonado o impele a propagar suas opiniões e interpretações, a propósito e sem ele, porquanto, só convencendo alguém, se sente a salvo das dúvidas corrosivas’...mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa, como ele sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim e índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas erosivas querendo saber o que sua criação tem a dizer sobre sua obra, desce do seu pedestal sideral e inatingível, despenca como estrela cadente, vem ter com o homem, vive como ele, ilumina os quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como uma estrela brilhante do chão... O sujeito que se eleva demais ao ponto de se sentir um deus, quando cai na realidade, se afunda e entra em profunda depressão é, para o daimon, como um deus que não sabe administrar a vida que criou, que se vê perdido no seu próprio mundo. O maníaco, que caiu de seu pedestal e enfrenta a dura realidade de suas fraquezas e frustrações, ainda transita na cor azul por um tempo na fase depressiva, por isso o daimon faz mais usos de tons de azul, como o azul cobalto - cobalto é uma palavra de origem alemã que significa literalmente ‘demônio das minas’ - o azul água marinha, o azul ardósia, o azul flor de milho. É preciso mostrar como o ser humano se torna patético, tanto na hora que se sente um deus como na hora que se sente um parasita. É triste ver um deus se inebriar com a natureza terrena e humana ...Tilly se revela um deus que não conhece o mundo que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando com demônios de minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com água-marinha. Ele se inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho... Toda estrela azul super gigante, como Naus, tem vida curta, pois ela consome seu combustível rapidamente e, na medida em que ela se encaminha para sua morte, ela vai esfriando, passando pelas diversas cores das estrelas, de azul para branca, para verde, para amarela, para laranja até se tornar uma super gigante vermelha. E isso vai acontecer com Naus. Meu personagem Tilly vai morrer, e, enquanto um deus que caiu do pedestal celestial para uma vida patética, ele, como deus caído, continua provando de tudo o que há na natureza que possa representar estas cores que estão no caminho que leva uma estrela azul à morte, um caminho marcado por mudanças gradativas nas cores do espectro das estrelas, até se tornar uma gigante vermelha. O daimon começa, então, passando do azul para o branco, fazendo uso de tons de branco, branco gelo, branco neve, branco floral, branco fumaça ...O gelo se incrusta na sua visão e a neve esquenta o frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto quanto fumaça e como fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente... Eu não morro de amores pelo verde, mas acho interessante a descrição de tons de verde no texto porque na astronomia não se fala em estrela verde, não porque ela não exista, mas porque o verde esta bem no meio do espectro visível, por isso, embora não possa ser claramente vista na sua cor original, a estrela verde emite luz em várias outras cores, ou seja uma estrela que emite uma pluralidade de luzes na faixa verde do espectro, emite também uma porção de cores nas faixas vermelha, amarela, azul, e violeta. Portanto um ‘deus’ que se torna humano deve ficar ‘encantado’ com os tons de verde tão ‘visíveis’ na terra, verde primavera, verde mar escuro, verde hortelã, verde jade, verde esmeralda ...Tilly perambula por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar escuro, farejando hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e esmeralda... Os tons de amarelo e laranja são óbvios ...e, quando atravessa o pomar da maçã outrora proibida, amarga o limão, faz cara menos feia para o abacaxi, transborda da boca para seu queixo o sumo suculento do pêssego, se lambuza de manga, apalpa cenouras e abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e às melecas com mamão... Quando a estrela super gigante se torna vermelha é sinal de perigo pois ela está preste a entrar em colapso e explodir. No verso anterior o daimon faz a metáfora do outrora fruto proibido ao homem no éden, a maçã vermelha, que o fez perder seu paraíso, e no próximo verso o vermelho continua sendo sinal de perigo para o homem e deus que se faz homem, vermelho tijolo refratário, vermelho sangue, vermelho urucum e vermelho carmim ...Tilly não se demora muito no mundo mundano pois sinais de perigo se adiantam aos seus passos e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim... Toda estrela super gigante tem fim trágico e espetacular, e os estilhaços de sua explosão provocam um brilho enorme e intenso que pode ser visto por todo canto de uma galáxia, por semanas ou meses. Os restos de uma super gigante que explode sempre formam uma dessas duas coisas: um buraco negro ou uma estrela de nêutron, o que restou do núcleo de uma super gigante que explodiu e que juntou o que sobrou num espaço tão pequeno como a zona norte de São Paulo, mas com uma massa compactada muitas vezes maior que o sol, mas que já não dá vida. O destino de uma estrela super gigante que morre me faz especular sobre a vida após a morte.  Há vida após a morte? Ou, na verdade, a morte vive se alimentando da vida, como um buraco negro, uma estrela que morreu e que se alimenta de estrelas e galáxias ainda vivas? Ou não existe nada, como uma estrela de nêutron? ...Ele se fartou demais com alimentos dos deuses criados à imagem dos homens e deve vomitar e explodir, deve se metamorfosear de alguma forma espetacular, deve explodir em bilhões de pedaços super novos, e suas cintilações serão um farol para todos os navegantes da galáxia. Seus cacos juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável buraco negro que suga até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que desistiu dela... Leia o texto original na cor azul claro, precedido de uma curta conversa de Tilly com seu daimon:

       Após a morte do Arqueiro, Tilly perdeu tudo: o rumo, o juízo, a vergonha e o desconfiômetro. Perdeu o emprego e nunca mais trabalhou. Rompeu com todos os boçais do espiritualismo de cartilha e tentou criar seu próprio ocultismo e angariar adeptos, mas sua empreitada teve curta duração, porque ele já não acreditava nem em si mesmo. Estava confuso, perdido. Estava desmoronando. Pensou em abandonar tudo e cair no mundo como um caixeiro-viajante, vendendo bugigangas para se manter e dormindo em motéis com uma mulher diferente a cada dia. Tilly pensava fazer isso, mas a dúvida corrosiva entre o pensar e o fazer lhe causava muito sofrimento.                                       

      “Por que você anda tão angustiado, Tilly?”, perguntou seu daimon.

“Sabe, meu daimon, estou num dilema. Sinto vontade de abandonar todos os dogmas e todos os coletivismos e seguir adiante sem eles e sem destino, mas não sei por que tenho este desejo, por que esses convencionalismos ainda me dão um mínimo de proteção contra mim mesmo”.

 “E o que você espera que eu lhe diga, Tilly?”

 “Gostaria que você me explicasse o que está acontecendo comigo”.

 “Quer mesmo?”

 “Claro, você é o único que pode descobrir o que se passa comigo”.

 “Tilly, seu espírito elevou seu ânimo às alturas e você se pôs a procurar numa busca incessante, penetrando incólume nas profundezas dos domínios do imaterial e do supra terreno, tangenciando os arredores da abóbada celeste e contagiando-a com alegria esfuziante, no topo do cosmos, logo abaixo de Sírio, grandioso, poderoso, invencível. Você é sagrado, divindade persa e prussiana, e de lá, mais acima no lugar de Sírio Alfa e Sírio Beta, lança sombra sobre a terra, e todos ouvem sua voz eloquente trovejar e mal conseguem acompanhar suas ideias difusas e furtivas, ideias de filho de Boanerges, nau centáurea desde o nascedouro navegando apressada num rio caudaloso, ganhando volume e velocidade, vigor e vontade, até o mar, o mar que não recusa rio, muito menos você que é deus ciâno e cerúleo, confiante e devoto da fé, e que toma o lugar da fonte de toda energia que aquece oceanos e continentes, e de lá, no lugar do sol único, se torna lua cheia, lua do meio-dia e da meia-noite, e quem da terra olha para seu brilho é água doce e salgada evaporada com calor intenso, é vida dizimada em segundos, é palco da fauna humana envolto numa densa atmosfera venusiana e asfixiante, derretido num mar de lava escaldante. Você é habilidoso, curandeiro, incansável, é deus que não come, não bebe e não dorme, é sobre-humano, forte como o aço, real como rei, mas se imiscui muito com o humano e a ele se afeiçoa, como ele sonha, fantasia e se entrega a devaneios, veste sua carne, veste denim e índigo, ostenta safira e turquesa, se enfatua e se deprime, não suporta mais sua onisciência, sua onipresença, sua onipotência, não sente mais prazer na fartura de seus conhecimentos, tem medo da solidão, quer dirimir suas dúvidas erosivas tentando convencer pai e filho que é espírito santo, desce do seu pedestal sideral e inatingível, cai como estrela cadente, vem ter com o homem e vive como ele, iluminando os quadrantes do globo como tocha de pirilampos, como uma estrela brilhante do chão. Você se revela um deus que não conhece o mundo que governa, tropeça na própria sombra e acaba se atracando com demônios de minas e se sujando de cobalto para depois se lavar com água-marinha. Você se inebria com o aroma da ardósia e da flor do milho. O gelo se incrusta na sua visão e a neve esquenta o frio que lhe dá arrepios. Os florais o seduzem tanto quanto fumaça e como fumaça desaparecem os fantasmas que surgem à sua frente. Você perambula por florestas da primavera com grama alta e banhadas por mar escuro, farejando hortelã e vasculhando os caminhos que trilha atrás de jade e esmeralda, e, quando atravessa o pomar do fruto outrora proibido, amarga o limão, se adocica com o abacaxi, transborda da boca para seu queixo o sumo suculento do pêssego, se lambuza de manga, passa ao largo de cenouras e abóboras, não resiste aos bagaços de laranja e se meleca com mamão. Você não se demora muito no mundo mundano, pois sinais de perigo se adiantam aos seus passos e obstruem seu caminho com calçamento de tijolo quente, refratário e incandescente, manchados de sangue, urucum e carmim. Vejo o seu tempo no céu e na terra chegar perto do fim. Você se fartou demais com alimentos dos deuses e dejetos humanos e deve verter, deve se metamorfosear de alguma forma espetacular, deve explodir em bilhões de pedaços super novos, e suas cintilações serão um farol para todos os navegantes da galáxia. Seus cacos juntados ainda não se sabe o que formarão. Um insaciável buraco negro que suga até a luz da vida ou uma pálida estrela de nêutron que dela desistiu 

Alceu Natali

Traverse, IL, EUA, 10/10/2007 


quinta-feira, 20 de abril de 2023

AO REDOR

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DE MARIANA E BRUMADINHO

Encontrei um sanhaço morto em meu quintal, Azul acinzentado, Num dia ensolarado, Asas enfeitadas, Endurecidas, Recolhidas junto ao corpo, Era adulto, Não tinha sinais de violência, Deve ter morrido por envenenamento ou doença, Porquanto ninguém vê pássaro morrer de velhice, Velei-o por um tempo, Como uma mãe vela pelo filho que dorme, Dei-lhe um funeral digno, Coloquei flores à sua volta sobre a terra, E como um saltimbanco, O sol apontou todos seus raios para minha guirlanda, Silenciou todo espaço, E brilhou toda fauna na vizinhança, Entrei, Liguei a TV, Outra tragédia é anunciada, Gente morrida, Desaparecida, Coisas perdidas, E muitas lágrimas de sangue que já não cabem nos olhos, E só irão chocalhar nos pescoços de sobreviventes como as contas escuras das lágrimas de santas marias por não terem a quem recorrer, É calamidade, De grandes proporções, Dela falarão por vários dias, Até ser esquecida, Quando a terra estiver do outro lado do sol, E eu estiver do lado de cá para não me lembrar do que aconteceu por lá, A grama crescerá sobre a última morada de meu passarinho, E o cobrirá de eterno carinho, A terra voltará para onde estou, E não poderei evitar que ela me faça recordar o que daquela desgraça sobrou, Escassas vidas com pouco sonhos para sonhar, Confusas com tudo quanto se passa ao redor, Sem as doces cantigas dos namorados da beira dos rios, Ainda por muito tempo a tristeza andará penando em suas águas turvas, Cada vez que a lua completa uma volta em torno das noites, Tenho meus longes de que, Mais hoje, Mais amanhã, Terei meus dias pela proa com os que vieram ao mundo para nos alegrar e os que vieram só para nos enlutar.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

LIBERDADE SILENCIOSA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
 LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)



É primavera na sisuda Leipzig da Alemanha Oriental, Esta semana de Maio de 1982 é muito especial, Há Manobras do Pacto de Varsóvia nas redondezas, Os soviéticos assumem o controle do trânsito e fazem muitas proezas, Misturam russo com alemão e inglês, todos atravessados, São quase polidos, apitam sem parar, não são muito animados,

Vim participar de uma exposição internacional muito disputada, Não há alojamento porque a infraestrutura da cidade está saturada, Vou para a delegacia da polícia e passo por uma triagem, A burocracia não é tão lenta e logo consigo um lar como hospedagem, É preciso andar de bonde para chegar até a periferia, Não existe táxi, nem carro para alugar, nem cortesia,

O dono é zelador no condomínio de prédios de dois andares, A dona trabalha como enfermeira nas redes hospitalares, A filha única foi para a casa da avó por uma semana, Para que eu pudesse usar seu quarto e dormir na sua cama, Ainda faz frio, a calefação cochila ao lado e com seu calor me abano, A noite é silenciosa e o ar é igual a todo lugar do planeta: humano,

A frígida manhã congela meus dedos que seguram a alça da pasta, O abrigo do ponto de bonde deixa passar frio e a mão ficar dura e gasta, Dentro do ônibus elétrico, em movimento, peço ao cobrador uma informação, Uma loira volta-se contra mim e vocifera ódio em alemão, Confundiu-me com um de seus americanos imperialistas, Aqui meu sotaque inglês é igual a todos, todos comunistas,

Ao longo da Avenida Stalin, não ouço Johann Sebastian Bach compor e tocar, Nem Johann Wolfgang von Goethe escrever e declamar, Não ouço Schumann, Hahnemann e Mendelssohn ecoarem na atmosfera, Só outdoors impondo aos alemães os ditames de uma opressiva e humilhante era, Eu devo ter um amigo russo porque ele é nossa única esperança de paz no mundo, Produzimos armas nucleares para nos defendermos do americano porco e imundo,

O frio é de lascar e, antes de chegar ao meu local de trabalho, paro num local familiar, Um outro pavilhão onde há um estande da nossa Petrobras com tudo no devido lugar, Mulheres lindas, bar completo, cachaceiro do Rio, pinga, limão e açúcar brasileiros, Uma caipirinha dupla esquenta o peito e a mente e deixa os membros bem ligeiros, Já sei onde vou completar todos os dias meu café das sete da manhã a semana inteira, Já sei onde farei uma parada no final do dia para falar português e tomar uma saideira,

De volta ao lar da menina que teve férias forçadas para que os pais fizessem um bico, Ainda preciso trabalhar, escrever relatórios à mão e enviá-los ao meu patrão rico, Vou até uma sala que tem um sofá, uma mesa de centro e uma redonda com cadeira, Ela fica entre meu quarto e o resto da casa e dá passagem obrigatória a uma geladeira, Antes de terminar, ouço uma porta ranger, levanto-me para ver que é numa hora destas, Vejo um vulto distanciando-se lentamente e que espreitava-me por entre as frestas,

Mais um dia de trabalho, hoje abençoado com um encontro com um velho amigo meu, Morou no Brasil, voltou à sua pátria, a Suíça, e estava fazendo em Leipzig o mesmo que eu, Ele ajuda-me a encontrar-me com a Ministra de Economia da Alemanha Oriental, A reunião é no estande de outra empresa brasileira conspirada com aquele país ditatorial, O dono tem que comer a Ministra todos os dias e depositar sua comissão numa conta na Suíça, A corrupção deles não é mais sofisticada do que a nossa e perde em questões de injustiça,

Meu amigo Suíço convida-me para sair para jantar com outros companheiros europeus, A noite de Leipzig é triste, solitária, deserta, um lugar desconhecido por Deus, Os velhos prédios ainda conservam todos os buracos de balas da segunda guerra mundial, Encontrar um restaurante é coisa rara, só com dia e hora marcada e expectativa mortal, Fomos  rechaçados por vários deles, até que um aceitou como suborno um valioso pó, A gente esquece todos esses inconvenientes tomando um copo cheio de vodca num gole só,

De volta ao meu ‘lar’, sou surpreendido com uma máquina de escrever sobre a mesa na sala, Ao lado dela, há um maço de papel sulfite caprichosamente alinhado com um pacote de bala, Imaginando minhas mãos calombentas e minha boca seca, meu anfitrião compadeceu-se, De propósito, deixou a porta da sala aberta, passou rapidamente pelo seu vão e escondeu-se, Tirei o paletó, afrouxei a gravata, arregacei as mangas compridas e pus me a trabalhar, Ouço passos macios do outro lado onde fica a cozinha e sinto que há alguém a me perscrutar,

Gostaria de dar uma escapada até a Escola de Tubinen para manifestar uma honraria, A Ferdinand Christian Baur que defendeu pela primeira vez o estudo científico da Bíblia, Mas o tempo é exíguo, então vou logo ali à famosa Universidade de Leipzig, Por onde passaram Wilhelm Leibniz, Goethe, Nietzsche, Wagner e só faltou Ludwig, Lá no campus e no refeitório conheço duas patrícias em busca do que não há em Portugal, Elas só sabem falar de dialética marxista e do iminente fim do ocidente imperial,

Em casa tenho outra surpresa: um par de abotoaduras peroladas e fingidas de mortas, Meu anfitrião continua tentando acerta-se comigo por linhas que me pareciam tortas, Primeiro foram minhas mãos calejadas, e agora são minhas mangas compridas sem botões, Eu sei que persegue-me uma inevitável amizade e logo abriremos nossos corações, E meus pensamentos são corroborados com sua entrada segurando duas garrafas de cerveja, Aqui começam as mimicas e o esforço paciente quando é fraternidade que se almeja,

Hoje resolvi sair mais cedo, andar a pé pela cidade para conhece-la melhor antes do sol se pôr, É hora do rush, as ruas estão inquietas, mas nos semblantes das pessoas há sinais de torpor, Todos andam de cabeça baixa, como se estivessem cuidando onde pisam para não tropeçar, Olham para o alto procurando a posição do sol para ver quanto falta para o dia terminar, Não há sorrisos, movimentos espontâneos, olhares maravilhados, nenhuma descontração, As pessoas parecem ainda viver em clima de guerra com a vida que flui por obrigação,

Lá em casa, meu anfitrião recebe-me com sua esposa e mais déjà vu, Iniciamos uma conversa baseada numa frase universal: I love you, Eles ensinam-me alemão e eu português e sobra um pouquinho para o inglês, As mãos falam pelas bocas e os olhos convertem tudo em humanês, Não existe fronteira, nem país, nem ideologia, só um fraterno apego, O silêncio imposto pelos mandatários é rompido por um livre aconchego,

Última noite em Leipzig num restaurante cubano com a turma da Petrobras, Nas paredes posters de Fidel, Guevara, Lenin e Marx, Copos de tequila num só gole, piadas brasileiras, música e alegria, Alguns gritam viva a revolução, outros não ao neo fascismo, outros viva a democracia, Todos embriagam-se, dançam e já não sabem de onde são, Todos amam-se uns aos outros, mas no dia seguinte de nada se lembrarão,

Último dia no meu lar em Leipzig e tenho a honra de almoçar com toda a família, Comida simples e farta, regada a vinho e aberta com uma homília, Meu anfitrião fez um cambalacho na antena para captar a rádio de Berlim Ocidental, Tento lhe mostrar que há muita coisa além de sua cortina de ferro prisional, Ele não me entende e me surpreende com uma coleção de discos dos Beatles original, Adquiridos através de contrabando e pagos em dólares do seu maior rival, 


Malas prontas, meu amigo alemão, que só tem primário, leva-as para mim até o ponto, Olha para mim ficando a imaginar se um dia teremos outro encontro, Eu lhe devolvo as abotoaduras, ele as aperta contra seu coração e as recola em minha mão, Entrega-me um papel com endereço, pede-me para escrever e não contém a emoção, Estamos quase derramando lágrimas, e, de irmão para irmão, damos abraços calorosos, Adeus Leipzig, adeus dias inesquecíveis, adeus meu amigo alemão, adeus tempos impiedosos.


sábado, 15 de abril de 2023

AQUELA QUE VEM COM A MARÉ


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/9


Água calma, espraiada ao sabor da cor do céu brigadeiro, do mar profundo em dia translúcido, espelha a esmeralda das encostas, a safira do firmamento límpido, o dourado do sol alto, o arco-íris da bonança, dando reflexos multicoloridos à vida submersa, à que brota na superfície, à que se ergue às alturas, à que prolifera neste paraíso, e teu silêncio é rompido pelo distante espocar de nuvens esparsas que se uniram para gotejar, cada pingo rufando silencioso, águas do empíreo com as águas da terra, espargindo o doce sobre a graça, o espírito e a vivacidade, em harmonia e comunhão, cada um deixando-se tocar e se penetrar, aumentando e diminuindo o volume, orquestrando o entorno revezado e concomitante, miúdo e torrencial, abrandando com o vento austero que arregaça as ondas, rugindo com grandiosidade e elegância, donas do mundo que enfrentam a lua e por ela não recuam, mas se impõem e aquietam-se quando lhes apraz, então surgem seus contornos graciosos, de expressão severa e bela, para experimentar os ares do continente a desfraldarem seus cabelos, caminhar pelos prados verdejantes a encantarem-se com seus movimentos, pelas ribeiras sombrias a revelarem seus mistérios, pelos bosques passarinhados a juntarem-se ao seu canto, e a ele também me junto para cantar-lhe uma canção de amor impossível, mas esperançoso, entre o meu mundo e o seu, entre a terra e o mar, o mito e a realidade, cercado de enigmas que só o coração pode desvendar, de simplicidade que você é capaz de entender, de paixão que você é capaz de sentir, que vem de um lugar antigo que traz saudade, que tem águas transportando casais enamorados por entre as edificações, que nos convida a valsar, a relembrar os tempos de cavalheirismo, e como é lindo vê-la embalar-se ao som envolvente, descontrair seus lábios carnudos e descerrar um largo sorriso, rodopiar e rodar sua saia alegremente ainda que por poucos segundos, e como é sublime e lastimoso vê-la valer-se deste instante de felicidade para abrir sua voz e entoar sua despedida.






terça-feira, 11 de abril de 2023

OH! COMO?

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)



Hoje a vi com maquiagem em excesso, Cabelos pintados de verde e presos por muitas varetas multicoloridas, E ainda desbotadas, Cobertos  com um boné impossível, Tudo denunciando um gosto brega que não lhe combina,

Oh! Boné impossível? Como?

Não sei explicar, Nunca cobriu a cabeça nem com lenço, E a expressão de seu rosto não era propriamente de alegria ou exaltação, Mas de alienação mental, Ela fincou os olhos na ponta do nariz, Atarantando todos os sentimentos externos,

Oh! Olhos fincados na ponta do nariz? Como?

Não sei explicar, Tentei chamar sua atenção, Mas não ligou para mim, Estava é ocupada dando uma bola, baforando colunas salomônicas de fumaça,

Oh! Dando uma bola? Como?

Não sei explicar, Sempre foi extrovertida, Barulhenta, Gostou de cantar, De conversar pelos cafés, De passear entre o lobo e o cão nas ruas desertas, Mas agora está exagerando e se perdendo,

Oh! Entre o lobo e o cão? Como?

Não sei explicar,Ela sempre acordou cedo em dia de fazer, Nunca deixou de cumprir o dever, Já agora, Não sei mais, Está saindo da cama só depois das onze, 

Oh! Dia de fazer? Como?

Não sei explicar, Ela não diferencia mais a segunda do domingo, Leva a vida na base de semanas furadas todos os meses, Cansei de lhe pedir para largar os vícios e voltar à vida, Mas não adianta,

Oh! Semanas furadas? Como?

Não sei explicar, A verdade é que não a quero mais, E não vim aqui só para te contar, Vim também para tentar fazer um pé de alferes a você, Porque sempre gostei mais de você do que dela,

Oh! Pé de alferes? Como?

Não sei explicar, Quero dizer, Colorir nossa amizade, Sem compromisso, Por uns tempos, Juntar meu momento temporal com seu momento iluminado, Como num casamento de raposa, Que tal?

Oh! Casamento de raposa? Como?

Ei, Não tenha medo, Não sou do tipo de raposa querendo tomar conta de seu galinheiro, Não quero bagunçar sua vida como minha ex bagunçou a dela própria, Quero apenas experimentar, E se for importante para você, Podemos pensar em algo mais estável, Quem sabe um romance passageiro possa acabar indo das baixadas aos firmes, Depois dos firmes aos platôs, E, finalmente, dos platôs aos cimos serranos,

Oh! Aos firmes? Como?

Casando com você, E se você não quiser casar, Podemos simplesmente sair por aí sem destino, Casando somente a frieza de suas mesmas perguntas com seu frio de serra no mês dos frios que haverá pelo caminho,

Oh! Mês dos frios? Como?

Não sei explicar, Mas garanto-lhe que não são carnes em conservas ou defumadas, Vamos nessa, Minha inglesa fleumática? Ou seria minha  alemã sisuda e pensadora? Ou minha holandesa empreendedora e paciente? Ou será que vou me surpreender com uma espanhola ousada, Exaltada nas paixões, Ambiciosa  e aventureira?

Oh! Como? Que dom tenho eu de viver-te por tantas feições estrangeiradas e falar-te por tantas expressões desusadas?



JARDINEIRAS E PLANTADORES

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.


Quando eu era jovem plantei três flores, Uma de cada vez, Uma de força nobre, Outra oriunda de uma cidade italiana, E uma última reveladora da verdadeira imagem de sua mãe, E a palavra mãe aqui é apenas uma força de expressão para realçar a parte mais fina e bela de uma planta, No entanto nunca soube como tratar bem de um jardim, Mesmo sem jamais deixar faltar-lhe adubo, Água e sol, E tendo, Ainda, Uma fiel jardineira indiferente a uma pintura de natureza morta, À celebridade de um vegetal raro, A um ornato qualquer capaz de dotar uma flor de mais beleza que sua própria, A um livro sobre seu oficio e seus ossos, Apenas as mãos calejadas de dedicação sobre estas lindezas, E eu, Ingenuamente, Sempre achei que elas pudessem ter sentimentos, Sempre tentei falar com elas, Como aqui nossa alma com o universo conversa e o homem compreende, Sempre esperei que elas me respondessem, E como é triste o silêncio delas, Qual rochedos imóveis e mudos aos brados das ondas, E, Como determina a lei natural, Sempre pensei que elas morressem antes dos humanos, Como o sol que morre na tarde e a natureza torna-se um poema santo, Mas, Hoje, Creio que possa ter errado, Como enganam as aparências, Pois muito moço fiquei doente, E minhas formosuras parecem ter enfermado com minha moléstia contagiosa, Falta de amor não sei se foi, Mas sei que as estremecia, Que talvez adoecia de sabe-las doentias, Apesar deste infortúnio, Continuei esforçando-me para preservar meu quintal fértil em três culturas variadas, Meus encantos cresceram e tornaram-se mais independentes e, Em pouco tempo, desabrocharam suas pétalas bonitas e delicadas, Tão frágeis a ponto de recear tocá-las, E machucá-las, De tão sensíveis, Medos sempre tive, Mas este se impregnou em mim quando percebi que minhas flores murchavam com minha aproximação, Talvez por eu ser um simples plantador, E não um jardineiro, E muito sofri com isso, Muito sonhei sentir de perto as agradáveis fragrâncias que elas exalavam, Então, Chegou uma época que, Com o agravamento do meu mal, Me vi forçado a partir, A afastar-me de meu jardim, Mas minha fiel jardineira lá permaneceu, Cuidando dele, E muito saudoso no meu exílio, Não podia mais prover água e sol às minhas flores, Mas, Na medida do possível, Sempre enviava-lhes fertilizantes, E no meu ostracismo involuntário, Gastava minhas madrugadas, Não a folgar por bares, Mas a refletir sobre a sensibilidade das flores, E em minhas horas de monólogos sublimes, Na companhia de lembranças penosas, Buscava consolação que as atenuassem, Atravessando as noites remoendo arrependimentos, E, Estranhamente, Enquanto meditava, À distância tinha um pressentimento de que minhas flores já não pesavam minha ausência, E desconheciam o amor que sempre tive por elas, Porque sempre amei tudo nelas, O coração, A beleza, A mocidade, A inocência e até o nome, E assim como agora escrevo como bálsamo para minha dor, Resolvi, No meu cativeiro, Plantar outra flor, Num pequeno canteiro, Que se desenvolveu além do meu controle, Como um pé de mostarda, E hoje, Ainda mais enfermo, Preciso de tantos cuidados quanto ela, E o pouco que restou de mim, Fica para ela, Um pouco de excremento animal, Água da chuva, E raios de sol que brilha contra nossa vontade, Mas quando durmo meu sono, Calmo e profundo como deveria, E não eterno como desejoso, Oro, Fervoroso, A todos os santos, Pelas minhas primeiras flores, Mas meus antigos sonhos dourados transformam-se em amargos pesadelos, E minha antiga vida, Um cântico de amor, Transformou-se numa triste toada, Visto que chegaram a todos meus sentidos a notícia de que minha morte foi anunciada no meu antigo jardim, E assim comecei a admitir que, Talvez, As flores consigam imaginar um ser humano morto antes delas, E Quem recebeu notícias de minha morte antes da hora, Não sabe que estou vivo, E eu também não sei se estão vivos ou mortos todos os que estão dentro e fora de meu antigo jardim, Então passei a crer que, De fato, Um ser humano pode morrer antes de uma flor, Pois já morri para minhas primeiras flores, Mas não para esta nova que plantei na minha expatriação, Que ainda vai crescer e tornar-se formosa como as outras, Porquanto sempre adorei flores, Para cercar-me de responsabilidade e zelo por um ser, Racional ou irracional, É por isso que plantei flores, É por isso que escrevo um livro de memórias no qual todos os personagens têm nomes de flores, As que já que morreram, Assim como já morri para as primas flores que semeei, Exceto para esta recente, Distante da flor de sua idade, E para quem provi uma jardineira fiel, E meu sonho agora é ensinar esta única flor, Que me vê vivo, E que transportei para um pequeno vaso, A ter afetos, A dialogar, A se deixar tocar, E até a amar como os humanos, E tentarei, Na medida que a natureza permitir, Não morrer antes dela emancipar-se, transformar-se em beleza e formosura, Dizem que todo mundo já foi uma flor pelo menos uma vez, Dizem também que já fui uma flor plantada num jardim, Que tive todos os devidos cuidados, E que não atinei para o desvelo de meu fiel jardineiro, Talvez porque, Sendo uma flor, Eu não tivesse afeto, E que não vi meu fiel jardineiro viver, E que, Mesmo sendo uma flor, Sabia que ele deixou de existir, E isso deve ser uma prova que a flor intui, Tem afeição, Mas não sabe se expressar aos humanos, Sei que jardineiros e jardineiras são sempre fieis, Dedicados e carinhosos, E que um plantador é mais dado ao trabalho braçal, Por isso, Anseio ser, Um dia, Um fiel jardineiro que rega uma flor com amor, Ou então voltar a ser uma flor para melhor entende-la e compartilhar minhas percepções com todas do gênero, Se minhas primeiras flores tivessem a mesma suscetibilidade, A mesma estima, Mesmo sendo um mero plantador convalescente, Elas saberiam que a felicidade brota de todos os reinos, Mineral, Vegetal e animal, Em solos e em tempos férteis e inférteis, Assim, Para a esta nova flor, Quero aprender a ser um jardineiro, E chorar da ingenuidade de achar que todas as flores, Todos os plantadores e todas as jardineiras podem conviver num mesmo jardim, Chorar da ingenuidade de pensar que todos precisam ficar sabendo quando morre uma flor, Do quanto se devota uma jardineira, O quanto trabalha e sofre um plantador.



It is the evening of the day
I sit and watch the children play
Smiling faces I can see but not for me
I sit and watch as tears go by

My riches can't buy everything
I want to hear the children sing
All I hear is the sound of rain falling on the ground
I sit and watch as tears go by

It is the evening of the day
I sit and watch the children play
Doin' things I used to do they think are new
I sit and watch as tears go by

segunda-feira, 10 de abril de 2023

SALTO AZUL EM ÁGUA VERDE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Minha homenagem à pequena cidade de Itobi, SP, onde passei os mais felizes Natais e Anos-Novos de minha infância e pré-adolescência. Dedicado aos meus padrinhos Antonio e Isabel, e meus primos Toninho, Maria da Penha, José Urbano(in memorium) e Ênia.

A estrada que leva a vastos horizontes, Aparentemente familiares, Mas de eternas singularidades, É longa e infindável, Deixa o infinito para trás, E cada vez que parece ir de encontro ao céu, Desce como Odisseu ao Hades, Mas para aprender com as almas, E não ser por elas sentenciado, E rapidamente ela retorna terra a terra, Ainda abrangendo num mar verdejante o ímpeto retilíneo da ânsia de chegar a algum lugar, E se chega, Quando se procura, Se desvia e se desce lentamente, Até o que parece ser um lago como o Aquerúsia, Por onde passam todos pecadores, E de onde saem todos os perdoados, E logo percebe-se que o paraíso não é diferente do  mundo, Com lugares ruins, Bons, Melhores, Especiais, E únicos, Como o mais sagrado de todos os santuários, Que pode ser adentrado somente pelo suprassumo dos homens num dia de arrependimento, Do bom e do melhor, Do ruim e do pior, Todos são comuns, E o homem comum deles se enfada e até padece, Mas o homem anormal e passional os engrandece, Com todos hiperbolismos orientais, E a rua principal torna-se tão interminável quanto a rodovia, Mas outras locações têm espírito mais que o comum das percepções humanas, Como o bar da esquina, Que marca o limite norte do local das delícias criado por deus, E que, Irônica e paradoxalmente, É mais santo que a igreja, No outro extremo, Delimitando a fronteira sul, E além dela parece existir um umbral, Literal, Sem almas vivas ou mortas, Ao contrário do que se acha além-bar, Uma trilha percorrida por bicicleta, Onde no meio do trajeto, Numa paragem de pomar de frutas negras, Farta-se dos pecados originais, Farta-se da vida, E depois busca-se o além que aterra, Lá na quietude do fim do caminho, E é novamente a partir do bar que se chega a outro rincão, No sentido leste, Subindo a mesma alameda larga e íngreme, Aquela que se abre subitamente como uma janela no meio do nada, E faz nascer, Milagrosamente, Uma pequena cidade que os olhos abertos na rota não alcançam, Uma cidade de paz lunar e eternidade, Que o homem incomum segue, A olhos fechados, Arrastado para um abismo, Este outro recanto parece um recôndito, Mas quando se atravessa seu alto portão, Descortina-se um enorme ginásio grego, A céu aberto, Reservado somente aos másculos, Onde a paixão pelos jogos, Precedidos por uma expectativa messiânica, Faz o coração saltar palpitando pelos olhos, Imortaliza, Como o amor entre Romeu e Julieta, Quem lá pratica esporte vence sem derrotar o adversário, E tudo mais nele se esgotaria, Se do que aqui se fala não fosse o paraíso, Que tem entre o que deveria ser profano e o que deveria ser sagrado, Um ponto de encontro, Só para ocasiões especiais, Para dançar as pernas em bailes, Para dançar a alegria em festas de casamento, Para se comungar diretamente com a felicidade num estado de alma poético, Quase religioso, Quase metafísico, Mas é o bar quem insiste em monopolizar, Bem à sua frente está o jardim do Éden, Com todos descendentes de Adão e Eva andando em círculos, Entreolhando-se quando se cruzam, O sorriso implícito do sexo frágil, Correspondendo ao gracejo explícito do quase inquebrável, A cidade inteira parece lá se reunir todas as noites, Caminhando em volta do centro, Onde o coreto está vazio, Onde Deus não é visto, Onde a árvore com o fruto proibido desaparece, E Baco e suas Bacantes não atrevem-se, Porque este território fértil em seres simplórios pertence aos carregadores de tirso, Mas suas lanças são muito curtas, E no lugar de heras e pâmpanos, Suas pontas sustentam os frutos congelados com mãos caseiras e santificadas, Que vêm lá do bar, E no recesso menos distante, Abaixo do jardim, Que fecha a cidade no lado Oeste, Os trilhos estão adormecidos nos dormentes, A estação está vazia, Mas não solitária, Fecha-se ao silêncio, Mas seu íntimo abre-se às lembranças de todos que nela desceram e dela partiram, E todos espectros saudosos que fizeram passagem, Por ela ainda são acolhidos com a mesma hospitalidade, E o bar, Aqui tanto referido, É, Na verdade, Somente a fachada de um templo, Um ponto de intercâmbio, De gente, De prazeres, Os adultos trocando dinheiro por aguardente, E os jovens por guloseimas, E quem está por trás das bancas serve e sorri por comprazer, E se deixa levar pelos olhares maravilhados sem se preocupar que vai para onde o impelem, A única moeda de troca aqui é a cordialidade, O templo é enorme, Suas noites de paz celestial são de tirar o folego de Deus, Suas manhãs gloriosas são regadas por mesa farta e uma hóstia, Do tamanho de uma broa, Abençoada com a palavra generosidade ao ser servida, Seu pomar tem o chão forrado de frutas que caem da árvore preferida, E a maior tentação é subir até o último galho para apanhar a fruta que quer sair voando pelos ares, Lá sentar, Se lambuzar, E delirar com uma vida airada, E um de seus vários aposentos, Improvisado de depósito de bebidas e outras tranqueiras, Nada tem de especial, Mas retém pessoas por horas, Encanta, Porque lá parece ser o lugar onde a magia dorme, E muitos dormem com ela, Outros, Porém, Precisam partir, Porque o paraíso é uma democracia, Chega, Fica e se vai quem quiser, Nasce, Cresce e morre nele quem quiser, E os que estão só de passagem fazem uma pergunta que Deus não sabe responder: Para onde vão os que morrem no paraíso?

domingo, 9 de abril de 2023

VIDEOCLIPES SELECIONADOS POR INGLESA LUSO CHINESA - THE POLICE: EVERY LITTLE THING SHE DOES IS MAGIC

 



AQUI ESTOU PARA TE AGRADECER

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


As muitas horas nos mares apascentados com meu corpo e minha alma, As leituras à luz das palavras que calam os dogmas e transcendem a fé, As longas viagens nas mãos da liberdade que acolhem o peregrino, As árvores e seus rebentos que, congelados, frutificam pequenos paraísos, As pessoas incógnitas e os mundos do passado e do futuro que fabricam meus sonhos, As manhãs gloriosas das madrugadas apressadas que acordam minha paixão corpórea, As escolhas privilegiadas das artes musicadas que alimentam meu princípio espiritual, Os muitos deuses nas noites embaladas com meu choro e meu expurgo, Os escritos à sombra das incompreensões que desavistam as feridas e exasperam a humanidade, Os muitos erros às vistas da impunidade que indultam o forasteiro, Os pássaros e seus cantos silenciados que adotam grandes desajuizados, Os seres ocultos e os mundos do presente que preservam meus pesadelos, Os amanhãs esperançosos dos tempos fracassados que fortalecem minha obstinação, Os dias vividos das partes racionadas que me guiam por meio do medo.


quinta-feira, 6 de abril de 2023

TEM ALGUÉM NOS ESPERANDO NO AEROPORTO?

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Depois da apresentação no Ed Sullivan e de um concerto em Washington, os Beatles rumaram para a Flórida. Carol Gallagher era uma aeromoça americana e ficou sabendo, no último instante, que os Beatles estariam no seu voo de duas horas de Nova Iorque para Miami. Ela já era fã de suas músicas pelo rádio e agora teria o privilégio de vê-los cara a cara e ainda servi-los. Carol levou semanas para refazer-se da emoção de tê-los conhecido justamente em sua primeira visita ao seu país em 1964. John, ao lado de sua esposa Cynthia, permaneceu quieto o tempo todo, sentado na última fileira. Os outros não paravam de distribuir autógrafos. Eles primavam pela alegria, simpatia e um senso de humor que Carol nunca vira antes. Eles davam a nítida impressão de que não estavam levando a sério esta ideia de conquistar o maior mercado de consumo do mundo. Na verdade, eles não levavam os Beatles a sério. Para eles, tudo não passava de uma grande aventura. Eles deviam estar pensando: Já que estão nos pagando, por que não aproveitar e divertir-se? Ringo era o mais hilário. Ele insistiu em colocar um colete salva-vidas antes de aterrissar e queria, a todo custo, ver da janela do avião algum tubarão no mar. Paul era a prova cabal de que os Beatles não esperavam tornar-se famosos nos EUA. Ele perguntou à Carol:Será que vai ter alguém nos esperando no aeroporto? Ao descer do avião, milhares de pessoas enlouquecidas os aguardavam do lado de fora. Elas, na maioria mulheres, pularam a grade e invadiram a pista. Os 4 membros dos Beatles foram logo colocados em limousines e partiram, seguidos a pé por uma multidão ensandecida. O público queria dar a eles as honras de heróis, como se fossem astronautas voltando da primeira viagem tripulada à Lua. Algumas das celebridades americanas, com uma pontinha de inveja, diziam que eles entregaram a América de bandeja para os Beatles. É verdade que eles não precisaram conquistar nada; o mundo todo prostrou-se aos seus pés como súditos reconhecendo a majestade de seus reis.



domingo, 2 de abril de 2023

IRINEIA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

 
Deus te levou a salvo, Mulher de César, Amistosa e conciliadora, Por entre nuvens pacíficas, Soprou-lhe brandas aragens, E para você avermelhou a bonança de céus de rosa, Toda azul e tranquila como um lago suíço, E apagou as velas que ardiam espalhando sua livor mortis marmórea, Deixando-lhe na justa companhia de seu nome, Mas não me deixe, Não me deixe sair correndo do mundo, Não me deixe sair correndo para me salvar, Traga-me de volta em segurança só com seu olhar, O Deus cego te feriu, Mulher de rua, Humorada e zombeteira, Nos seios de tanto aroma, Roubou-me beijos de fogo de tanta vida, E para mim plumbeou um tempo de afogar a terra, Todo cinzento e vazio como a rua de um cemitério, E acendeu as velas que ardem espalhando tremulamente um azul desmaiado e funéreo, Deixando-me na justa companhia de meu pesar, Corra, Corra  para se afastar do perigo, Corra para a morte não te pegar, Ou ensina-me a não ter medo e ficar, Peça a seu Deus para te ajudar, A me convencer, A confiar e não evadir-me, A virar-me e arrastar-me, Resignadamente, Como um boi desfilando na passarela de um matadouro, Com o corpo meio robótico, Meio hipnotizado, Como um rato encantado pela sua flauta Hamelinista, Mas com a mente lúcida e a meditar, Se corro e não paro, Morro, E com medo sigo disparando e sustando, Sem saber para onde vou quando a existência cessar, Para a morte ou um sumiço, Que é pior que morrer para quem fica e procura, Como vivo te procurando, E me pergunto o que acontece, Para quem desaparece, Só perde você e nunca mais te verá? Fica sumido até morrer? Ou também procura como os que ficam? E se você só despareceu e um dia resolve voltar? Como quando durmo, Sonho, E sumo, E vou para lugares que não conheço, Onde posso te encontrar, E retorno ao meu mundo ao acordar?