quinta-feira, 31 de agosto de 2023

PANIS ET CIRCENSES

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Aqui onde vivo, Flutua sobre minha cabeça, Um olho artificial, Mirando high and low, Para cima, Para baixo, Pra lá, E pra cá, E as galáxias em todos os extremos guardam sempre a mesma distância em todas as direções, Quarenta e seis bilhões de anos luz, Isso faz sentir-me o centro de tudo, Mas o que está além do que o olho enxerga pode ser trilhões de vezes maior, O insondável está para o observável, Assim como o observável está para uma das inúmeras partículas invisíveis de meus olhos, Isso me deixa pequeno, Sem saber em qual cantinho me encontro nessa bolha, Mas pouco importa, Porque aqui onde moro, Olho para todas as direções, Norte, Sul, Aqui e acolá, E as distâncias são sempre as mesmas, Quase 13 mil quilômetros, Sem ter ninguém a recorrer, Sobre minha cabeça, Pássaros de ferro voam de ponta a ponta, Em todos os sentidos, E a circunferência é sempre a mesma, Pouco mais de 40 mil quilômetros, De mais água que está para a terra, Como a terra está para tanto povo se acotovelando para sobreviver, Aqui onde vivo e me isolam, Quase nada há ao meu redor, Pouco alimento, Pouco entretenimento, Nenhum elemento, Isso faz sentir-me menos que ninguém, Aqui falta tudo, Toda a massa espacial pela qual galáxias, Buracos negros, Estrelas e planetas se digladiam, É um espetáculo, Que não vejo, Nem ouço, Mas sinto onde vivo a todo momento, Isso faz de mim menos que um nada, Não fossem as migalhas de panis e os porres de circenses que me esmolam para nascer e morrer, Sobra pouco tempo para sonhar, Sobra muita fome para comer, Pouca noite para ver a lua se divertir, Muita gente para nos ver sofrer, Nenhuma estrela que a gente possa ver parir e partir.   

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A PRESENÇA

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Tantos sóis vêm se escondendo nas minhas noites desacompanhadas, como joias nas quais se encrava uma única pedra preciosa, Sem promessas e sem respostas a preces, resplandecem raios florais no alto de minha alma em tempos rigorosos, como vasos que se sustentam sobre um único andor, Muitas estações vêm se revezando diante de meus olhos visionários, como rochedos entre os quais se engasta uma única casa, Sem ruídos e sem réplicas de imagens, anunciam ressurreições às mortes no cerne de meu espírito em momentos de desespero, como palcos que encenam um único mistério, Tantas passagens vêm ornamentando meus dias instáveis, como melodias nas quais se embute um único fragmento de escala, Sem comunicações e sem passadeiras de transições, ligam divinos portais à minha mente adormecida em sonhos reveladores, como bilhetes que dão direito a uma única viagem, Muitos espectros vêm povoando meus pensamentos inquietos, como fantasmas nos quais se insere um único toque mágico, Sem sustos e gemidos penados, emanam raios coloridos em minha aura bruxuleante em horas revoltosas, como trabalhadores que conhecem um único amor.

domingo, 27 de agosto de 2023

ANNA HOLTZ

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Aqui não vim em busca de alguém para satisfazer prazeres mundanos, mas para realizar meu grande sonho e encontrei a besta bruta, rude, suja e insultante, que a ninguém ouve e respeita, pois tem a alma surda e prefere o barulho dos ratos ao silêncio dos gatos, compara as aspirações de mulheres nas artes dos homens ao andar desengonçado do cão sobre suas quatro patas defeituosas que mal dá para crer que ele consegue andar, mas esta besta foi uma oportunidade que Deus colocou em minha vida, enviando-me a um semideus a quem, nas palavras do grande e maldito filósofo, todos deveriam ouvir, todos que conseguem perceber que sem o alimento da alma a vida seria um grande engano, e, ainda que a besta zombe dos meus primeiros ensaios, rendo-me à sua indulgência e à sua súplica de perdão e sinto-me uma privilegiada por guiar seus braços sob a vibração no ar da respiração de Deus que fala à sua alma e a Ele o aproxima mais do que todos os outros homens que não escutam Sua voz, não leem Seus lábios, não dão à luz aos Seus filhos, não cantam Suas preces e jamais entenderão que o velho tolo e demente mudou Sua língua para sempre, concedendo-me a honra de secretariar seu entendimento com o todo poderoso como dois ursos e um pote de mel, rugindo e bramindo, com garras afiadas, atacando-se pelas costas de modo que ninguém nem se atreveria a chegar tão perto, tornando-os os dois únicos adeptos de uma religião solitária onde um vive em silêncio, não vivendo a verdade, enquanto o Outro infesta a cabeça do primeiro constantemente com sons que por ele precisam ser escritos para que ele continue vivendo, ainda castigado por ser-lhe negado o prazer de ouvir o que todos ouvem, o prazer de ouvir sua obra inspirada por um Deus inimigo e desamoroso, e agora que a tempestade da manhã veio para levá-lo, alegre, formosa centelha divina, filho do Elísio, ébrio de fogo, para dentro de Seu santuário celeste, sua magia volta a unir, o que o costume rigorosamente dividiu, irmana todos os homens e teu doce voo lança-me numa grande fuga, feia e bonita, desafiando a noção de beleza, visceral, partindo do estômago para se chegar a Deus porque é lá que ele mora, não na cabeça e nem mesmo na alma, e onde Ele mora é onde as pessoas sentem a intensidade revirando suas entranhas até o céu, tão forte que causa uma iluminação no cérebro, mas não me faz perder a minha cabeça em meio às nuvens, faz meus sapatos enlamearam-se de fezes, e assim vivencio a língua inventada pela besta para falar das experiências dos homens com Deus, e foi por isso que Ele enviou-me aqui, para escrever esta língua, ser o anjo de sua alma, para ouvir a voz que fala dentro de mim, para encontrar o silêncio dentro de mim mesma, para tirá-lo da solidão, da prisão, para despertar suas notas adormecidas, para viver pela natureza, para atravessar a ponte da libertação e do lado de lá encontrar o maior tesouro, o tesouro de ser sua Elise, sua jovem mulher perdida, de rejubilar-se com Deus por ter conquistado esta besta adorável, esta única alma amiga e autêntica em todo o mundo, que jamais falhará, jamais chorará sozinha, jamais fará da solidão apenas uma religião, mas inspiração para todas as gerações.



segunda-feira, 21 de agosto de 2023

CIDADE DA MORANGA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
 

A noite tardia fica mais calada longe da agitação urbana. Ela não arfa e sua suave respiração é abafada por burburinhos do universo, remanescentes da grande explosão, uma explosão de querença. ‘Quero luz!’, gritou o negrume abissal quando só existia o nada. Quem comunga com o universo na madrugada, mesmo de olhos abertos, capta o eco de suas vibrações. De olhos fechados é possível ouvi-los e até vê-los. Matilda dirige com sua atenção visual toda voltada para a estrada, pois não é a todo instante que a caligem da noite é fosforeada pelos clarões artificiais das habitações que margeiam o caminho. Seus pensamentos se perdem nas lembranças de sua melhor amiga e se reencontram na imagem da cidade da moranga que ela guarda no seu inventário de processos e fatos psíquicos que atuam sobre sua conduta, mas que escapam ao âmbito da consciência de pessoas normais e nelas só irrompem em sonhos, em atos falhos, e em estados neuróticos ou psicóticos, quando a consciência não está vigilante. Nestes últimos vinte anos, Matilda passou por este mesmo caminho pelo menos duas vezes. Numa delas, voltando para casa, ela viu do lado direito da estrada quase o vale inteiro da moranga, mas não teve coragem de entrar na cidade. Não estava preparada ainda. Se não fosse sua necessidade de cumprir uma promessa feita à sua melhor amiga de redescobrir a cidade, ela teria ficado apenas com o registro da imagem da cidade com sua criptomnésia, que atua como uma câmera fotográfica que precisa só de uma fração de segundo de luz, e sem nenhum esforço da vontade ou da memória ela a retirou do seu patrimônio inconsciente. Ela é um cartão postal monocrômico, não muda nunca. No fundo há uma encosta, não muito acima do plano horizontal dos olhos, onde se amontoam casas acabadas que não lembram favelas ou periferias paupérrimas, e entre elas há entranhas, mas não muita vegetação. O grosso da cidade está no centro, abaixo do nível da estrada, mas os topos das edificações mais altas denunciam várias convenções de concreto. Uma igreja, a prefeitura, uma biblioteca, talvez a delegacia onde sua amiga esteve, talvez um dos vários hotéis, uma cidade destas deve ter pelo menos uns três, fora os motéis, ou talvez algumas pousadas. No primeiro plano, a cidade se esconde por baixo da estrada. Deve estar ali o matagal por onde sua amiga fugiu. Não será difícil traçar o percurso da última grande corrida da via dolorosa de sua amiga, quando voltava para casa sem um ponto de partida, ganhando a estrada numa noite caída, parou no acostamento sem motivo aparente, foi abordada por homens na escuridão num repente, embrenhou-se no matagal sem rumo confiável, foi seguida por dois numa perseguição implacável, avistou luzes com sinais de vida, deixou para trás ladrões na noite vencida, andou pelas ruas sem encontrar uma delegacia, decidiu descansar e refletir numa hospedaria, lendo um jornal com uma manchete da antiguidade, que a seduziu pela morte na clandestinidade, acordou-a na manhã sem resposta ao seu quesito, tendo repreendida sua curiosidade num distrito, e voltou para casa com um enigma sonhado, e lembrou-se da cidade com nome transliterado, para onde hoje Matilda retorna vinte anos depois sem a escrita de Zeus, para desvendar o mistério da moranga nas linhas tortas de Deus.


sábado, 19 de agosto de 2023

TRADUÇÃO DA VIDA




Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 


Neste mundo material não se pode ser apenas espiritual, mas não é necessário ser sensual, olhar com sagacidade, não é necessário ter poder sobre o corpo, cobiçá-lo sem a alma, basta trazer beijos puros de volta dos lábios que os ungiram, sair da terra possuída e entrar na carne santificada, moldar existências em mãos com centelhas vestidas de crepúsculos espargindo flores das montanhas que conquistam as enchentes, maiores que pesadelos milionários e maquiavélicos que abominam o toque aveludado do pêssego, o encontro carinhoso entre a água e a calha do rio despido, deslizando por entre seios, penetrando-os, enterrando-se neles, bem fundo, tão fundo que faz calar, como se fosse tirar um momento da sanidade, e o que poderia tirar momentos de ternura poderia também tirar uma eternidade de animosidade, e pouco se pode fazer sem os dois, sem a corda da esperança a qual se pendura, que lança devaneadores do presente sobre o vão que separa o passado do futuro, deixando pedras e paus fora do caminho, revelando tudo para Deus e o mundo, entrando em sintonia como duas cordas afinadas na mesma melodia, amadurecida para aprender a chorar e amar sem se ferir, para ter desejos instintivos e quase infantis, procurando por mãos estendidas, por estrelas que explodem, pelo cosmos que abraça, por papai e mamãe, por proteção contra os tiranos, contra as danças dos demônios, contra os computadores que aprisionam em noites solitárias, entregando-se a um entendimento mais intenso, deixando o pêndulo do destino balançar entre homem e mulher, levando-os e trazendo-os para onde se deseja estar, mesmo sabendo que nenhum lugar jamais pertencerá a alguém, nem em toda dor, nem em toda felicidade, mas somente em sonhos, porque sendo eles uma tradução do despertar da vida, esta é também a tradução de um sonho, não passa de um sonho do qual acordamos morrendo.



quarta-feira, 16 de agosto de 2023

SENSIBILITATE ET SENSUALITAS SINE RATIONE CERTA ARTICLE

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche) 

Põe-se a caminho sensualidade de sensibilidade, Faz vento soprar rente a um gênero frágil deitado em solo fértil, Esparrama cabelos, Pontas de tirso de hera e pâmpanos, Carregadas de pinhas com arranjo de flores de celofane, Cingidas de tijolo e salmão, Embrenhados por mãos entre fios emaranhados, Acariciados por suaves toques de veludo, Por lagartixas deslizando em vidraças como Jesus em água, E deixam mechas pendularem sobre olhos de caleidoscópio, vidros multicoloridos refletindo milhões de sóis, Milhões de escravos carregando bastões em círculos em torno de suas escravas, Negras do mundo que atraem seus brancos em trevas de dias findos, Fazendo-se acompanhar igualmente por bacos e tíades, Levando uns a sentirem-se o que é estar morto, Como se nunca tivessem nascidos, E outras a sentirem-se o que é ser lasciva e sentimental, Como se nunca atinassem para sexo oposto, E bastam-se por sua sensibilidade, E extravasam-se por sua sensualidade, E acoplam-se por leis naturais do sexo forte, Aliado de ruim com elas, De pior sem elas, Adversário de inconcebibilidade  sem feminilidade, De previsibilidade com masculinidade, Privando vivedores de cores, Flores de odores, Provadores de sabores, Trovadores de amores.      

domingo, 13 de agosto de 2023

O SOM DAS ÁRVORES E DAS ESTRELAS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  Nietzsche)


Como profeta que pretendo ser um dia, Gostaria de restringir meu sustento aos brotos e às frutas, Que colho nos galhos altos, Longe do chão onde corro perigo para matar minha sede, Mas é nele onde encontro mais fartura, E até diversão, Onde meu quinto membro perde sua utilidade e minhas mãos ocupam-se mais que minhas pernas que me mantém de pé, Mas ainda não estou e nem estarei pronto para tão cedo afastar-me da carne crua que ganha mais sabor com as luzes estrondosas que fosforeiam os céus à noite e espalham na terra temor e devastação, E me dão uma ideia não só de como acendê-las nas horas de fome, Mas também de como aquecer meu corpo no frio e iluminar minha escuridão dentro dos paredões de rocha alcançados só por cipó, Onde minha fêmea se trancafia de sol a lua para cuidar de nossa cria e apreender só com a intuição tudo que ela deseja, E enquanto a grande bola de fogo está de pé e à mostra, Desço a céu aberto em busca de alimento, E com os riscos que assumo, Aprendo a calcular quanto preciso correr para não morrer, E nós que um dia pretendemos ser profetas, Começamos a nos entender melhor, Abandonamos nossos guinchos e chios e os substituímos por sons com significados para nosso atos, Nossos sentimentos, Nossos nomes, Nossos rudimentos, E tudo que nos cerca neste mundo, Até este instrumento de forma circular que inventamos para poupar nossos esforços e carregar o vaivém de nossa sobrevivência, Até que um dia que deixou para trás tempos longínquos, Aprimoramos sua complexão, Aumentamos seu tamanho e sua quantidade, E a apontamos para as mesmas estrelas que nos encantavam e nos intrigavam antes de nos tornarmos profetas, Mantemos nossos ouvidos voltados para elas, Esperando que elas desçam da abóbada celeste, Como descemos das árvores, Esperando que elas abandonem suas pulsações repetitivas e ritmadas, Como nós abandonamos nossos chilros e chios, Que elas nos falem com sons inteligíveis, Como nós profetas falamos uns com os outros numa quantidade de idiomas tão diversos quanto estas luminescências que salpicam o universo e que se demoram para chegar aos nossos olhos tanto quanto demoramos para realizar nossas profecias, Antes só podíamos vê-las, Agora podemos ouvi-las, Antes pensávamos que viemos das árvores, Agora sabemos que viemos das estrelas, No passado pensávamos que estávamos sós, E assim ainda pensamos no presente, Esperando encontrar novos profetas no futuro.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

ET JEANNE, LA BONNE LORRAINE QU'ANLAIS BRÛLÈRENT Á ROUEN, OÙ SONT-ILS, OÙ, VIERGE SOUVRAINE? MAIS OÙ SONT LES NEIGES D´ANTAN?




Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Há um enigmático amor, Que vem de Domremy, A mim nunca pertenceu, Nem a Neufchâteau, É sentimento que predispõe uma moça sem rosto a lutar por toda uma nação, Jovem que não se abriga em telha-vã, Nem se agacha no seu mantéu ao calor de lareira, Levanta-se, Resoluta, Contra o rechaço de Vancouleurs, Mas há pouco ela não bailava ainda pequena na relva pintada pelo artista?, E qual postulante a rei consegue enganá-la em Chinon? Tal qual uma filha de Ana Bolena, Medo de lutar não tem, Nem de morrer, Tal qual Elizabeth, Virgem será, Com a pátria se casará, Resiliente às armações onde os cerieiros católicos penduravam pavios para fazer velas a Deus e ao Diabo, E seus desafios e conluios que pensavam que ela não percebia, Mas que ela começava a adivinhar na sua intuição sutil de mulher já apaixonada pela sua terra, Lhe é testemunhada a maior veneração, Aos olhos arrebatados sempre a mirar do alto de uma colina, Entregue aos inocentes pensamentos que lhe compensam, Por instantes, Dos sofrimentos impostos pela incerteza de Poiteirs e seus mil interrogatórios, Não pelo mero prazer de duvidar, Mas por ambicionar convicções políticas, Nem sempre voltadas para o filho de deus menino em oração, Que essa donzela leva consigo de Tours a Blois, E tão cedo esse nosso mundinho perdido no universo a convocou, Para que os cuidados da ciência dos homens e a premonição de mulher de seus cuidados triunfassem em Orleans, Repartissem sua ternura com sua força, Impassível à seta que lhe atravessa a parte que ergue sua cabeça altiva, Para os sois de verão realizarem as glórias prometidas em seu coração, Num mundo ainda de criança que ordenhava ovelhas, Agora com as viseiras de elmo feito diamante, Alevantando um pouco, Mais seguro, Para amortecer, Se pôs diante, Da forte e dura pedra de Jargeau lançada à sua face indefesa no chão, Enquanto  seu olhar ainda voltava-se à contemplação de águas sossegadas, E admirando seu vulto sagrado, Meung-Sur-Loire e Beaugency compreenderam seu dever, Enquanto aquelas águas davam à paisagem um encanto de conto de fadas, Para que ela cumprisse em Rheims o que as vozes do conhecimento absoluto a inspiravam, Fazendo ciranda em volta das árvores, Sorrindo nos folguedos das estações, De amor e destemor, Nos outonos e primaveras de guerra e paz, Na agitação de gente que ainda por aqui passa e deixa sinais, Como os que essa menina não pintada atrai, E quanta coisa ela tem que deixar para trás? E quanto deste enigmático amor ela guarda para a glória de seus ancestrais? E quanto mais para a indiferença dos que um dia não a desejarão mais? Hoje a menina-moça sem rosto traz esse misterioso amor, Que a Paris de futura luz resistiu-lhe com um dilúvio de sóis apagados, Um amor do qual só um é senhor, De espírito e corpo desarmados em Gien, Um senhor de tantas feições, Para as neves de inverno dificultarem sua devoção ignorada pelos seus próprios pares, Feições que resplandecem no breu sem fim, Ainda estremecem St. Pierre de Moustier, Vastidão que amedronta os olhos que aqui embaixo observam, As derradeiras e árduas batalhas pelas vidas em La Charitê-sur Loire e Lagny, Onde o filho de deus menino sempre amou, Foi traído, Como em Compiéngne, Onde a menina-moça perdeu a liberdade, Com as mesmas moedas que os judeus pagaram aos de sua raça e os franceses aos ingleses, Uma via cruxis que começa em Arras, E tão tarde para essa terra nos prometeram devolver este menino, Mas ele a acompanha em Beaulieu e Beaurevoir, Perpetuando nossa esperança de amor, Até seu fim em Roeun, Quando este inexplicável amor ainda é de gente pequena que pastoreia ovelhas meninas, Que se entregam ao frescor de águas espraiadas, Dão ao vinho um sabor de festa de bodas, Cantam para os homens dançando em quadrilhas, Se embalam à luz do sol e à leveza da neve, Em tempos de amizade sem rancor, De flores no alto e no chão, na trégua e na regeneração, De lembranças de pessoas que por aqui nunca mais passarão, Como esse filho de deus menino desfigurado de igual veneração, E que coisas mais ele reserva para o futuro? E quanta dissidência ele evita para a vergonha de seus descendentes? E quantas mais para os que se arrependem tardiamente? Ontem o menino sem face concedeu o perdão, Que a vida mundana lhe negou, A mesma vida que esta menina sacrificou, Para que eu hoje pudesse falar deste seu misterioso amor, Que a mim jamais pertencerá, Mas que dele hoje falo para fazer companhia à nossa dor, E para conhecer La Pucelle de Lorena, Seus contemporâneos e pósteros teriam dado Versalhes, Paris e São Denis, As torres de Notre Dome, E o campanário de sua sua Gália, E os estrangeiros dariam Taj Mahal, Roma e Santiago de Compostela e a Basílica de São Pedro, Enfim, Os santuários de todo o mundo.


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

QUARTA PARADA



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Eu nunca acreditei em assombrações. Doravante, por via das dúvidas, não vou mais duvidar. Aconteceu algo inusitado comigo e para o qual não encontro explicação. Fui ao funeral de um amigo no Cemitério da Quarta Parada. Passei a noite inteira no velório. O enterro estava marcado para às 10:00 horas da manhã. Naquela hora chovia torrencialmente e o enterro teve um atraso de mais de uma hora. Era um sábado e às 14:00 horas eu já estava em casa. Quando cheguei, tudo o que eu queria era tirar uma soneca depois de uma noite inteira sem dormir, mas, de repente, me deu um estalo e resolvi, antes, ligar para um amigo de Araraquara para comentar o acontecimento e saber se ele se lembrava do Valter. O telefone dele estava gravado no meu celular que deveria estar no bolso de minha camisa, mas não estava. Fui ao carro, vasculhei tudo e não o encontrei. Estranho. Eu tinha certeza que eu tinha levado meu celular comigo quando fui ao enterro. Eu nunca saio sem ele. Perguntei a minha mulher se ela sabia onde estava:
- Eu não sei, querido, mas é muito fácil saber. Ligue para o número de seu celular e assim que você ouvir aquela música que dói nos ouvidos você logo o terá de volta.
O meu celular tocava com uma das minhas músicas favoritas, o mundialmente famoso movimento chamado Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven. Minha mulher o odeia. Para ela soa como aquela antiga e irritante música do caminhão de gás, Para Elise do mesmo Beethoven. Liguei para meu celular do meu telefone fixo e nada. Peguei o celular de minha esposa e fui até o carro e nada. Não é possível, pensei, será que perdi meu celular no velório. Pode ser. Eu passei a noite inteira lá. Andei dando uns cochilos e ele pode ter caído do meu bolso. Resolvi voltar ao Quarta Parada para dar uma olhada enquanto era tempo. Peguei o celular de minha esposa e a avisei.
- Você deve estar brincando, amor, você vai voltar lá por causa de seu celular? Se você o perdeu, basta você ligar para a operadora e cancelar o número.
- Querida, aquilo não é apenas um celular! É uma agenda! Ele contém os números de telefones e endereços de amigos, conhecidos, prestadores de serviços e de todos os meus clientes. Aquele celular é minha vida, dá para entender?
- Eu acho é que você não quer perder os números de telefones das mulheres que tem lá, isso sim!
Nervoso com a observação da minha esposa, bati a porta e saí. Estava tão irritado que cheguei ao cemitério em menos de meia hora, do Grajaú até o Brás. A sala onde meu amigo tinha sido velado já estava ocupada por um novo defunto e cheia de gente. Eu entrei, parei diante da cabeceira do caixão e me detive por alguns segundos, tempo suficiente para apertar o botão ‘redial’ do celular de minha esposa dentro do bolso da minha calça. E nada do Beethoven. Fiz o sinal da cruz e sai. Logo em seguida, comecei a rir de mim mesmo. Sou um idiota mesmo, se o celular estivesse perdido na sala do velório já era. Hoje em dia não perdoam nada. Já vi gente se debruçar sobre o morto em prantos por mais de um minuto e, quando se levanta e vai embora, vai embora também o anel de ouro que estava no dedo do falecido. Vocês sabem como é, quando a gente fica invocado com a perda de alguma coisa e não sossega até encontrá-la. Fiquei perambulando pelo local e olhando para o chão e, de repente, outro estalo. Espera aí, eu ajudei a carregar o caixão e me debrucei sobre ele para jogar um pouco de terra enquanto ele descia à cova, e se meu celular caiu do meu bolso na cova naquele momento e não percebi? Fui a passos apressados até o túmulo do meu amigo. Chegando lá, peguei o celular e minhas mãos tremiam. Senti aquele frio na barriga. Disquei meu número e, então, ouvi Beethoven bem de longe, como se estive no céu. Olhei em volta para ver se não estava sendo observado, subi no túmulo, deitei sobre ele, encostei o ouvido na lápide e disquei de novo. Era minha Ode à Alegria de Beethoven, meu celular, enterrado com meu amigo! Incrível! No carro de volta para casa pensei: ‘Quem teria coragem de pedir à família de um amigo falecido para abrir o túmulo só para pegar um celular?’ Eu não tinha. Já fiz coisa pior, mas isto eu não tinha coragem de fazer. O problema é que eu tinha pela frente um enorme e cansativo trabalho. Refazer toda minha agenda. Pelo menos, meu celular não caiu em mãos alheias com todas aquelas informações armazenadas nele. Resolvi não contar nada para minha esposa.
- E aí, recuperou os telefones da mulherada?
- Para com isso, Célia! Isso não é brincadeira. Devo ter perdido o celular no velório e nestas alturas já deve estar sob nova direção.
- Já ligou para operadora para cancelar o número?
- Já liguei, mas isso é o de menos. O difícil é recuperar todos aqueles dados armazenados durante anos e anos. E se meu celular caiu na mão de alguém de má-fé? Já pensou?
- Está com medo que alguém vá ligar para sua mulherada?
Eu odeio estas tiradas da Célia e odeio também mentir para ela. O correto era mesmo cancelar o número imediatamente. Já pensou quando o pessoal começasse a me procurar e meu celular tocasse lá no cemitério sem parar? Ficava, sarcasticamente, imaginando: Já pensou se alguém passando pelo túmulo de meu amigo, além da música, pudesse ouvir a mensagem gravada ‘Aqui é o Bernardo. Não posso atender neste momento. Deixe um recado após o sinal. Retornarei sua ligação o mais breve possível’? Na verdade, o mais óbvio e mais sério a fazer era, simplesmente, comprar outro celular para o mesmo número, justamente para receber ligações, pois muita gente tinha o meu número e, ao receber ligações, eu começaria a refazer minha agenda. Mas eu dei uma de moleque mesmo. Ser humano é assim mesmo, sórdido às vezes. Eu queria voltar ao cemitério para ouvir meu celular tocando lá no fundo da tumba de meu saudoso amigo. Era só curiosidade, com todo respeito e irresponsabilidade. Liguei para a operadora e pedi para que o endereço da conta do meu celular fosse transferido para a empresa onde trabalho no Jabaquara.
Na segunda-feira, comprei outro celular com um novo número e, para desespero da Célia, instalei nele a Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven. Comecei a ligar para as pessoas. Uma delas me perguntou:
- Perdeu seu celular?
- Não, é que já faz algum tempo que venho recebendo trotes no meio da noite. Perdi a paciência e minha operadora sugeriu que eu trocasse de número.
Odeio mentir para os outros, mas menti. E fui matar minha curiosidade. Duas semanas depois, numa tarde de quinta-feira, sai mais cedo do trabalho e fui ao Quarta Parada. Depositei flores no túmulo e falei com meu amigo:
‘Querido amigo Valter, perdoa-me se estou perturbando o seu descanso’.
Disquei meu número e ouvi de novo, vindo lá do fundo, o meu Beethoven. É muito chato dizer isto, mas, na verdade, fiquei feliz ao ouvir meu celular tocando. Não sou técnico em nada e fiquei pensando quanto tempo leva para descarregar a bateria de um celular num ambiente fechado, sem oxigênio. Nunca procurei saber. Era cedo para voltar para casa. A Célia ia desconfiar. Sentei no túmulo, esperando o tempo passar, vendo gente passar. Depois de meia hora, passou um sujeito baixinho, com o corpo arqueado, com cara de coveiro. Eu interpelei-o:
- O senhor trabalha aqui?
- Sim sinhô.
- É coveiro?
- Sim sinhô.
- Eu queria te fazer uma pergunta.
- Sim sinhô.
- O senhor já viu ou ouviu coisas estranhas aqui no cemitério?
-Sim sinhô.
- Por acaso, ao passar em frente deste túmulo, já ouviu música tocando?
- Não sinhô.
- Que tipo de coisa o senhor já ouviu, então?
- Muita coisa.
- Vozes de pessoas mortas?
- Sim sinhô.
- Já ouviu vozes de mortos perto deste túmulo?
- Sim sinhô.
- Onde mais o senhor ouviu vozes dos mortos?
- Aqui, no Cemitério da Vila Formosa e no Cemitério do Carmo.
- O senhor trabalhou nestes três cemitérios?
- Sim sinhô.
- Não tem medo das vozes?
- Não sinhô.
- Há quanto tempo o senhor é coveiro?
- 40 anos.
- Qual foi a coisa mais estranha que o senhor já ouviu aqui no Quarta Parada?
- Foi alguns índio pedindo prá pará de enterrá gente no cemitério deles.
- Como o senhor sabe que eram índios?
- Porque eles diz que se não pará eles vão metê flechada na gente.
- Ouviu uma vez só?
- Escuto eles reclamá todos os dias.
- Música o senhor nunca ouviu?
- Não sinhô.
- Nem telefone tocando ou gente falando como se estivesse telefonando?
- Não sinhô.
Fiquei com dó do humilde e paciente coveiro. Resolvi não perturbá-lo mais com perguntas e fui embora. No carro de volta para casa, fiquei pensando na história dos índios reclamando e tive outro estalo. No dia seguinte, na hora do almoço na empresa, liguei para o Departamento de Arqueologia da USP:
- Boa tarde, por acaso vocês têm algum tipo de registro arqueológico no Cemitério da Quarta Parada no Brás?
- Temos, sim. O que o senhor gostaria de saber?
- O que foi encontrado lá?
- Urnas funerárias utilizadas por índios ceramistas.
- Então lá era um cemitério de índios?
- Sim.
- Qual é data do achado?
- É de aproximadamente 8 séculos.
- Onde posso ver essas urnas?
- No Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
Fiquei assombrado com a informação que recebi. É claro que eu não acreditava no que o coveiro disse, mas também não acreditava que ele tivesse conhecimento daquele achado arqueológico. Eu não sabia disso. Acho que pouca gente sabe. Certamente, o coveiro deve ter ouvido alguém dizer que ali fora um cemitério indígena.
Sete meses depois, eu já estava com minha agenda quase totalmente refeita. Nunca mais voltei ao túmulo de meu amigo, nem no dia dos finados. Mas confesso que algumas vezes liguei para meu celular para ouvi-lo tocar e cantar:
Alegre, formosa centelha divina, Filha do Elísio, Ébrios de fogo entramos, Em teu santuário celeste! Tua magia volta a unir, O que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam. Ali onde teu doce voo se detém.
Cada vez que eu ouvia aquele coro maravilhoso vindo da cova de meu amigo eu ficava todo arrepiado. Mas já fazia cinco meses que não ouvia meu celular tocar quando ligava. Acho que a bateria descarregou de vez.
Há um mês atrás, num sábado à noite, eu e a Célia estávamos sentados na poltrona vendo televisão. Tínhamos programado assistir a um filme antigo que marcou muito nossa fase de namoro. Passavam das onze e, de repente, o meu celular tocou. A Célia, irritada com o meu Beethoven e com a interrupção, bufou e resmungou:
- Quem pode ser numa hora destas?
Eu tinha deixado meu celular no meu quarto no segundo andar. Corri para atender, mas não deu tempo. Quando atendi já tinham desligado. Desci com ele para a sala no caso de ele voltar a tocar, mas não tocou mais.
No meio da semana seguinte, na empresa, estava verificando as ligações recebidas no meu celular e quase tive um infarto. Estava lá registrada uma ligação, vinda do número do meu celular cujo aparelho ficou enterrado na cova de meu amigo, no sábado, dia 14 de Novembro de 2009. Quase desmaiei. Meus colegas de trabalho perceberam que eu estava pálido e trataram de me acudir. Eu não estava sentindo-me bem e resolvi ir embora para casa. No dia seguinte, na empresa, liguei para minha operadora e perguntei:
- A senhora poderia verificar se houve alguma chamada feita a partir do meu celular número xxxxxxxx no sábado, dia 14 de Novembro?
- Claro, um momento, por favor. Sim, há uma chamada feita do seu celular número xxxxxxxx, no dia 14 de Novembro de 2009, às 23:27, com duração de 9 segundos. Algo mais?
Eu estava trêmulo e gaguejando.
- Algum problema, senhor?
- Não. A senhora pode dizer-me de onde foi feita esta chamada?
- De São Paulo, senhor. Por acaso o senhor perdeu o seu celular?
- Não, não perdi.
- O senhor acha que não foi o senhor que fez esta chamada?
- Não, não fui eu.
- Tem certeza que alguém da sua família não usou o seu celular?
- Não, o celular está sempre comigo.
- Pode ser que seu número foi clonado. Quer abrir um protocolo de investigação?
- Não, não é preciso. A senhora pode dizer-me exatamente de onde partiu esta ligação, quero dizer, de qual bairro de São Paulo?
- Não tenho como informar, senhor. Entre em contato com nossa central no número 0800xxxxxxxx ou então com nossa Ouvidoria no número xxxxxxxx. Talvez eles possam ajudá-lo. Eu estava assustado, com insônia e a Célia estava preocupada:
- Algum problema no trabalho, amor?
Menti mais uma vez para a Célia:
- Um colega de trabalho morreu assassinado e eu fiquei um pouco abalado. Isso vai passar.
Depois de falar com muitos departamentos e funcionários da minha operadora, finalmente encontrei a pessoa certa que poderia me ajudar:
- Para que o senhor quer esta informação?
- Por favor, acredite-me, é importante para mim. Não se trata do aspecto financeiro. É algo sigiloso. Só posso falar pessoalmente.
Após insistir muito, consegui um encontro pessoal com um diretor da operadora.
- Sr. Bernardo, o senhor está envolvido com algum problema com a polícia ou coisa parecida?
- Não, de forma nenhuma.
- Normalmente, só a polícia federal nos pede este tipo de informação. Qual é o seu verdadeiro problema?
Menti. Inventei outra história.
- Por favor, mantenha sigilo absoluto. É um problema com minha ex amante que quer acabar com meu casamento. Esta tentativa de ligação de apenas 9 segundos pode ter sido uma provocação dela. Tudo o que eu preciso saber é de onde partiu a ligação. Não precisa dar-me endereço ou número de casa. Só preciso saber o bairro.
- Sr. Bernardo, sua história é muito estranha. Este seu celular não faz ligações há mais de 7 meses. Só tem esta ligação do dia 14 de Novembro de 9 segundos. O celular está em seu nome e a fatura vai para a empresa onde o senhor trabalha. Agora o senhor está dizendo-me que deu seu celular para sua ex amante. O senhor não está se metendo em alguma confusão?
- Não, não, por favor, não entenda-me mal. Eu só preciso saber de onde veio esta ligação, nada mais. Eu não quero o endereço de ninguém. Não quero encontrar-me com minha ex amante. Só quero saber de onde partiu a ligação. Pode ser que o meu celular nem mais esteja com ela. Pode estar nas mãos de outra pessoa.
- Sr. Bernardo, Sr. Bernardo. Por mais estranha que seja sua história, eu confio no senhor. O senhor me parece ser uma pessoa honesta, com boas intenções, e está sofrendo com isso. Só me diga uma coisa. Depois que o senhor souber de onde veio a ligação o que o senhor pretende fazer, honestamente?
- Agora mesmo assino um pedido de cancelamento desta linha. Antes mesmo de saber o lugar da ligação.
- Está bem, Sr. Bernardo, mas não vá se meter em confusão, está bem?
- Sim, prometo.
- Sr. Bernardo, a ligação partiu de dentro do Cemitério da Quarta Parada.
Eu quase caí da cadeira. Tentei ficar calmo, mas o diretor olhou-me desconfiado.
- O que é que foi, Sr. Bernardo?
Esforcei-me para recompor-me e consegui controlar-me e relaxar. Esbocei um ar de quem tem bom senso de humor e perguntei sem gaguejar:
- Dentro de um cemitério? Não acredito!
- Por que não?
- Por que alguém, seja lá quem for, minha ex amante ou outra pessoa qualquer, iria entrar num cemitério às 11 horas da noite para fazer uma ligação para minha casa e ainda desligar na minha cara na hora que eu atendo e depois não ligar mais. Não dá para entender, não dá para acreditar.
- Sr. Bernardo, sinceramente, eu não sei qual é o seu problema, mas acho que o senhor é bem esperto para saber que muita coisa acontece num cemitério à noite. Ladrões roubam lápides de mármore e metais, abrem túmulos, abrem caixões para roubar joias e objetos de valor dos cadáveres, até dentes. Muitos ladrões se reúnem em cemitérios à noite para planejar assaltos, para fazer ligações de celulares para presídios. Não me venha dizer que não sabe destas coisas.
Depois dessa conversa com o diretor da minha operadora, cancelei aquela linha de telefone celular, contei toda a verdade para a Célia, parei de mentir para ela e para os outros, tirei a minha gloriosa Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven do meu atual telefone celular e só regravei a mensagem: 'Aqui é o Bernardo. Não posso atender neste momento. Deixe um recado após o sinal. Retornarei sua ligação o mais breve possível. Minhas saudações para o ano que começa:
Quem já conseguiu o maior tesouro, De ser o amigo de um amigo, Quem já conquistou uma mulher amável, Rejubile-se comigo! Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma, Uma única em todo o mundo. Mas aquele que falhou nisso. Que fique chorando sozinho! Mas não perturbe o descanso dos mortos.



terça-feira, 1 de agosto de 2023

NO CRÂNIO DA AMÉRICA E DO MUNDO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.  LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


Allen Ginsberg, poeta americano da contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60, ainda se lembra muito bem daquela noite, do momento exato, quando foi a um lugar em Nova Iorque chamado THE DOM, e os Beatles lá cantaram I WANT TO HOLD YOUR HAND, com aquele som contralto intenso, OOOH, que entrou direto no seu crânio e, num instante, percebeu que aquele som iria entrar direto no crânio da civilização ocidental. Allen começou a dançar em público pela primeira vez na sua vida. Ele sentiu um prazer e um relaxamento impetuoso, mandando às favas toda timidez e todas as preocupações da vida. Os Beatles tinham um ritmo alegre. Suas vozes eram generosas, francas, joviais e solidárias. Eles não eram apenas quatro caras formando uma banda. Eles se amavam, tinham muita consideração uns pelos outros. Allen lembra-se que naquela noite no THE DOM se deu conta que a dança dos negros havia sido devolvida aos brancos ocidentais, que as pessoas iriam retornar aos seus corpos, e que os americanos iriam rebolar. Os Beatles mudaram a consciência dos americanos. Inventaram uma música repleta de masculinidade aliada a ternura e vulnerabilidade cabais. E quando foi aceita na América, esta música, mais do que qualquer outra coisa e qualquer outra pessoa nos EUA, ensinou os americanos a terem uns com os outros um certo tipo de relação mais afetiva, mais sincera e de mente mais aberta. Os Beatles fizeram isso com a América e com o mundo inteiro. Na mesma época, eu tinha apenas 15 anos e já havia sentido I WANT TO HOLD YOUR HAND não apenas penetrar em meu crânio, mas também cortar meu coração, quando eu, inocentemente, brincava com o jogo de botão e pela primeira vez em minha vida senti minha alma extasiar-se, arrebatar-se e comover-se com uma música saindo do rádio ao meu lado. Eu era tímido e bipolar, mas já conseguia dançar em público nos bailinhos nas casas dos amigos nos fins de semana. A partir daquele momento, aprendi também a tocar guitarra e a cantar, cantar em inglês todas as músicas dos Beatles. Meus amigos também se apaixonaram pela música dos Beatles, mas não entendiam o que eles diziam naquela língua estrangeira. Mas entender para quê? Música é melodia e não letra. Quem gosta de palavras lê poesia. Quem gosta de música não se importa se ela é cantada em língua viva ou morta. O que importa é a melodia, o arranjo, a progressão e originalidade melódicas, a voz humana, solo ou em coro, fazendo apenas o papel de mais um instrumento no conjunto. São estes ingredientes, e não as palavras, que alimentam a alma. E almas de todo o mundo conheceram um novo alimento que não se provava desde os tempos de Beethoven, Mozart, Bach e outros gênios da música clássica, que era, predominantemente, instrumental, sem palavras. Meu pai, só com curso primário, adorava os fab four, especialmente a música Please Please Me. Quando ele ouvia o refrão Come On, Come On, ele me perguntava por que eles sempre repetiam as palavras Qua Mão, Qua Mão. Alguém reclama da falta de letra ao ouvir a belíssima Bolero de Ravel de um único movimento?