sexta-feira, 3 de março de 2023

LANTERNA DE PIRILAMPOS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

O que você diz depois do olá? Esta é uma pergunta do médico e psiquiatra Eric Berne. Muitas pessoas, sem assunto, invariavelmente, falam do tempo: Nossa, hoje está tão quente! Acho que vai chover de tarde! Outras, porém, só têm um tema versado: falar mal do governo sem se engajar em nenhum movimento para derrubá-lo: O governo nos surrupiou, entre outras coisas, o assunto. O Brasil está sendo destruído diante de nós e não podemos fazer nada! Existem aquelas que, depois do olá e um pouco de canja, tagarelam sobre novelas, futebol, celebridades, reality shows e outras unanimidades burras (gostou, Nelson Rodrigues?) Há, ainda, gente pedante e mais maçante. Aquelas que gostam de que se goste delas. Aquelas que precisam ser veneradas e invejadas pelo pseudo domínio de tantos tópicos. Aquelas que sentem um prazer maior do que sexo a dois e chocolate, masturbando-se com uma pretensa genialidade de irritar e espantar todos os que elas pensam estar muito abaixo delas. Uma dessas pessoas, uma mulher, resolve contar para uma amiga a história sobre um de seus bichos de estimação que adoeceu - imagine se eu te encontro, te digo olá e, logo em seguida, ponho-me a lhe dizer como na infância eu aprisionava vaga-lumes numa garrafa para servir de lanterna. A amiga, resignada e educada, é obrigada a ouvir. É impossível não pensar que a afetada sabe que ela discorre sobre algo mais chato que o clima. Pior ainda, ela deve perceber que sua amiga não está nem um pouco empolgada. Então, para exibir erudição, resolve enxertar o monólogo com alguns termos eloquentes, daqueles explicados somente por dicionários ou numa busca burra pelo Google. Mesmo assim, o argumento continua tedioso, sem nenhuma importância, nem mesmo para o enfermo animal. Se faz, então, necessário, dar mais valor a uma redação primária: Não só minha família está preocupadaMuitos amigos e conhecidos que acompanham minha vida me ligam para saber como está meu xodó. A amiga migra do desalento ao estouro do saco inflado. A mulher talentosa apela para a prepotência: Você está atônita com minha crônica, prisioneira de minha narrativa, mas calada, talvez por falta de clímax. Então, para sua alegria, lhe digo que meu bichinho sarou e passa bem - imagine eu lhe dizendo que minha arenga terminou assim: abri a garrafa e devolvi todos os pirilampos à natureza. A amiga sente um grande alívio, mas a mulher engenhosa não se dá por satisfeita e precisa encerrar sua ladainha com chave de ouro (um pingente atrelado ao seu clitóris): Minha amiga, você assente mas, ao contrário das outras, não se afasta progressivamente de mim por causa de minha exuberânia joycena. Se me vejo diante de uma mulher que parece ter tamanha aptidão intelectual, digo olá e arrisco uma cafonice: A noite está linda hoje, com tantas estrelas ao alcance dos olhos, mas me conformo com o pouco que vejo porque o universo é grande demais para contemplações mais profundasSe estou num dia de sorte, a mulher me pergunta: Você acha que estamos sós nessa imensidão? Bingo, como exclamam os americanos! Se somos os únicos neste universo então ele é um grande desperdício de espaço. - Isto eu roubei do filme CONTATO. Mas, mesmo com sorte, a mulher pode enveredar por outro caminho: É impossível cobrir estas utópicas distâncias a não ser em sonhos. Cinquina, bella!Você assistiu ao filme A ORIGEM? Sim, é muito bom. Ficção futurista e factível. Ela está trelendo: Gosto de  filmes que não dão quase nenhuma pista sobre como irão terminar como, por exemplo, OS 12 MACACOS. Desarregaço a cara feito bicho-careta, como John Lennon depois da famosa 'turma da arquibancada bate palmas, dos camarotes chacoalha as jóias'. Ela me estende a corda: Assisti a este também. Outra boa ficção futurista, mas ainda inexequível. Ela é parca como um ovo, uma fatia de pão e uma xícara de chá na refeição. Economiza nas palavras e espera. Você não vai me perguntar se assisti a algum filme intrigante? Ela arregala os olhos por espanto, como a jovem personagem Barbara Keeley, pasma com os pais homossexuais do noivo no filme A GAIOLA DAS LOUCAS: Você é um leva e traz, como aquela voz feminina do computador no filme ELA. Caramba! Melhor virar o disco: Quer falar sobre o governo?  Por que falar sobre algo que não temos? Me estrepei. Nocaute técnico, de pé. Faço um jogo de pernas para mostrar que não senti o golpe e digo-lhe que é sua vez de perguntar - e não é que ela pergunta!: Quando você era criança costumava prender vaga-lumes dentro de uma garrafa e fazer dela uma lanterna? Caralho! Esta mulher lê pensamentos!? Sim, todas as crianças de meu tempo faziam isso. Por que você me faz esta pergunta? Ela responde com outra: Você os deixava morrer na garrafa ou devolvia-os à natureza ainda vivos? Não é mera coincidência. A danada é paranormal mesmo. Não sei, às vezes deixávamos eles morrerem. Você sabe, crianças são travessas, chegadas a malvadezas, não só com vaga-lumes, mas também com outros insetos, pássaros e pequenos mamíferos. Eu, por exemplo, costumava caçar a borboleta Monarca, amarrar uma linha na sua cauda e empiná-la como uma pipa. Ela voava alto, mas logo caía com o peso da linha. Mas por que estamos falando sobre isto? Ela sorri: Não sei. Ela sabe e está me testando, mas não vou deixar o assunto acabar assim, sem a ridícula catarse daquele bicho de estimação que adoeceu e sarou: Também não sei, mas insisto: por que você me faz esta pergunta sobre vaga-lumes? Neste momento, seu olhar é meigo, doce e um tanto introspectivo: Todos nós somos vaga-lumes. Temos nossas próprias luzes e nossos dias sombrios, mas não sou da espécie Photuris, uma femme fatale, que mimetiza a luminescência de outros insetos luminosos, não para atrai-los para um acasalamento, mas para come-los. A femme fatale é predadora. Femme Fatale! Será que ela quer fazer de mim um femeado? Vou cantar o canto do pássaro para trazer esta fêmea para junto de mim de novo: Mesmo que você fosse uma femme fatale, morreria feliz ao seu lado, como morrem todos os machos de pirilampos no acasalamento de verão, enquanto as fêmeas seguem vivendo até mais que dois anos. Quanto à luz, a terra não a tem, é iluminada pelo sol, e todos os meses a lua lhe acende uma vela na escuridão. A mulher não reage. É dócil. Não está interessada em debate e confrontação de ideias. Ainda assim, amistosa, ela dá sequência ao tema. Alguém disse que somos o sal da terra e a luz do mundo. Gosto deste intercâmbio cultural, mas não quero entrar no movediço terreno religioso, e ainda mantenho-me na antiguidade: Alguém perambula pelas ruas de Atenas, carregando uma lamparina, durante o dia, alegando estar procurando por um homem honesto. Ela não hesita: Um pupilo de um dos pupilos do mais sábio daquela cidade. Ela conhece a Grécia clássica e abre as portas da minha trivialidade: Você gosta dos filósofos daqueles tempos? De todos! E dos dramaturgos? De todosE dos historiadores? De todos! Para quebrar esta monotonia DE TODOS, volto para o nosso tempo com uma pergunta que exige um nome. Algum escritor contemporâneo preferido? Ela poderia ter dito NENHUM, mas, pela primeira vez, ela faz uma escolha: James Joyce. Meu autor predileto, o maior de todos. A iniciativa é dela agora. Você está escrevendo alguma coisa? Como ela pode intuir isso? Eu sabia que ela tem percepção extrassensorial. Explico a ela que, de fato, estou tentando escrever uma crônica, mas ainda estou em dúvida em relação ao assunto. Quero fugir do lugar-comum, daquela esdrúxula história sobre o animal de estimação. Peço a ela para me sugerir um título. Ela diz que não precisa saber sobre o que quero escrever, mas tem um nome apropriado: Lanterna de Pirilampos. Ela voltou aos vaga-lumes e pergunto por quê: Porque temos luz própria aprisionada pelas maléficas e inconsequentes garrafas das convenções que nós mesmos criamos. Ela tem razão e isso me encoraja a indagá-la sobre a mulher do bicho de estimação: O que você acha de uma mulher que diz que as pessoas costumam assentir, mas progressivamente se afastam dela? Ela diz isso por arrogância ou por carência? A resposta está na ponta da língua: Porque ela tem a todos e somente a si mesma, como aquele homem que se apaixona por um sistema operacional de computador com uma encantadora voz feminina. Indago-a vacilante: Isso se aplica a mim também? Rapidamente ela desfaz minha insegurança: Não, você tem a mim. Conquistei esta mulher, mas preciso ter certeza: Você quer dizer como aquela voz feminina que leva o internauta a divagar, 'ela é minha, mas não é só minha'? E você? Onde entraria numa crônica com um nome desses, Lanterna de Pirilampos? Ela finaliza: Eu não entro. Você me deixa livre na natureza, e saio por aí voando, e se você quer ir para onde vou, me procure. Estarei te esperando, antes do acasalamento de verão.