quinta-feira, 20 de outubro de 2022

ENFIM, SEU GUILHERME, SOMOS CAMPEÕES DO MUNDO



 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Em 1957, meu pai deu início aos preparativos para deixar o ‘Pari’ dos depósitos de doces e fazer da região norte, do outro lado do Tietê, que abandonara sua agrestidade, sua última morada na superfície da terra. Foi um pedido de minha mãe, jovem e inexperiente, que queria sair imediatamente da casa onde morávamos para viver próximo de sua mãe. O motivo de tal súbita e urgente mudança foi uma morte na família. Primeiro, meu pai comprou um terreno para construir uma nova casa nos fins de semana e que levaria um ano para ficar pronta. Ao mesmo tempo, ele alugou uma casa na Vila Guilherme, onde nós permaneceríamos todo o ano de 1958. Dizem que várias ruas deste bairro receberam nomes de parentes do Seu Guilherme da Silva, o dono da antiga gleba. Sua esposa, Dona Maria Cândida, ficou com a principal via. Sua filha, Diva da Silva, ficou com uma secundária e perpendicular à da mãe, e foi nela que meu pai fixou nossa residência temporária, quase na esquina com a Rua Coronel Jordão. Seu Guilherme havia loteado todas suas terras, compradas da Dona Joaquina Ramalho Pinto de Castro, em sítios e chácaras, e estas, mais tarde, não resistiram ao progresso e foram divididas em terrenos para a construção de habitações. Meu pai e dois de seus irmãos compraram um grande lote e nele construíram uma daquelas antigas vilas, com rua sem saída e com várias casas conjugadas e simétricas, como as das periferias de Londres, mas bem mais modestas. Hoje se dá a esses tipos de construções o nome de condomínios. Meu pai e meus tios eram excelentes construtores. Aprenderam o ofício com o meu avô italiano. Mas eram péssimos negociantes e nada entendiam de economia. Venderam todas as casas com financiamento direto de seus bolsos esvaziados e devedores, sem intermediação de bancos, por um prazo quase a perder de vista e com prestações fixas e sem correção monetária. Anos depois, a inflação galopante os levou a passar as escrituras definitivas aos moradores antes da metade do prazo. O valor das prestações já não pagava nem mesmo o  custo de confecção dos carnês. Eles saíram no prejuízo. Receberam de volta pouco mais que o custo do empreendimento. Assim, meu pai e meus dois tios deram uma grande contribuição à Vila do Seu Guilherme, beneficiando cerca de trinta famílias com presentes de pai para filho: o sonho da casa própria por um preço irrisório e simbólico. Meus tios tomaram rumos diferentes do meu pai, que não baixava a cabeça e nem olhava para trás, contanto que o que ele fizera não tivesse prejudicado, mas, ao contrário, ajudado pessoas. Eu tinha 6 anos, um irmão de 2 e outro de 10. Eu estava começando a tatear o mundo exterior. Nos meses anteriores, vividos na Rua Pacheco e Silva, no Pari, eu não me lembro de ter brincado na rua uma única vez. Estranhamente, todas as lembranças da minha curta passagem por aquele bairro morreram junto com minha tia-mãe, Alice, que me chamava de filhão e não saiu daquela casa viva como profetizara. As únicas recordações que retive foram aquela grade de proteção à janela rente ao chão, que levava luz ao porão, e era vigiada por um vespeiro aguerrido, e as melancias que começaram a brotar na superfície do nosso quintal, às vésperas de nossa partida. Antes do Pari, na Rua Cantagalo, no Tatuapé, eu fiz apenas duas incursões fora de casa. Uma vez, acompanhado pelo meu irmão, que me levou até um terreno baldio onde alguém havia escondido um tesouro, um monte de bolinhas de gude coloridas. E trouxe-me de volta com um corte e vários pontos no pé esquerdo, que pisou em falso num caco de vidro. E outra vez com minha prima Janete, que descobriu, num vão estreito entre dois muros, vários cones de papelão para fios têxteis, e logo fez deles adereços de carnaval. A Rua Diva da Silva não era longa, mas, para uma criança como eu, ela parecia não ter fim. Às vezes eu acompanhava com os olhos meu irmão caminhando por ela até perdê-lo de vista. Um dia, resolvi segui-lo. Meus passos eram curtos, mas rápidos. Tinha medo de não chegar ao final da rua antes do dia acabar. Em poucos minutos, no entanto, eu já estava junto à esquina com a Rua Desembargador Urbano Marcondes e, do lado direito, descortinava-se diante de meus olhos o palco de um teatro mágico: crianças jogando futebol num campinho de terra. Então é assim que se pratica aquele esporte ao qual meu pai assiste todos os domingos na televisão! Então, é por isso que meus tios vêm frequentemente à minha casa, para assistir futebol! Enquanto eu encantava-me com a bola e os pés descalços levantando poeira, sem perceber eu adentrava o campo de jogo e meu irmão logo se deu conta da minha presença:
O que é que você está fazendo aqui?
Eu quero jogar também.
Que jogar o quê, moleque, volte já para casa antes que eu lhe de uns tabefes!
Meu pai foi o primeiro da família a comprar uma televisão. Por isso, muitos parentes vinham à minha casa nos finais de semana. Meu pai era especial. Logo que ele percebeu meu gosto pelo futebol, comprou-me uma pequena bola de ‘capotão’, que eu batia no quintal até ralar. Um garoto de minha idade, que morava quase em frente à minha casa, via-me com aquela bola todos os dias e chamou-me até sua casa para mostrar-me algo diferente: um jogo de botões.
Você não tem um?
Não, mas posso pedir ao meu pai para me comprar.
Tem com cores e distintivos de futebol.
É mesmo? Então, vou pedir ao meu pai para comprar um do Palmeiras.
Do Palmeiras, não! Compre do São Paulo que é o melhor de todos.
Meu pai era especial mesmo. A família Corintiana de minha mãe queria converter-me e, agora, meu pai resignadamente, e a contragosto, comprou-me um jogo de botão do São Paulo. Mas, no dia seguinte, ele me presenteou com uma camisa do Palmeiras e num domingo de 1959 levou-me ao Palestra Itália pela primeira vez, para assistir Palmeiras 6 X 1 Comercial (de Ribeirão Preto). Embora eu estivesse completamente fascinado pelo futebol que, um ano mais tarde, eu iria ver ao vivo, da arquibancada, eu ainda mantinha alguns estranhos vícios que começaram lá na Vila Guilherme. Eu costumava pegar um macacãozinho de meu irmão caçula, enche-lo de retalhos, improvisando-lhe uma cabeça de pano e balança-lo nos meus braços como um bebê, como uma boneca. Eu chamava-o de menino. Na idade adulta, quando fazia psicoterapia, perguntei se este costume não era indicativo de homossexualidade. Para minha surpresa, a psicóloga respondeu-me que era um fato insignificante da infância e de nenhuma relevância para minha análise. Mas, minha vizinha do lado esquerdo, uma mulher que adorava minha família, preocupava-se. Um dia ela surpreendeu-me com um  boneco de pano de verdade: um palhaço, como o torresmo. Isso aconteceu quando estávamos de mudança para o novo bairro. Definitivamente, meu pai esteve muito acima da média. Ele vinha almoçar em casa todos os dias. Certa vez, chegou todo feliz e orgulhoso com seu primeiro carro: um Bel-Air 54. Durante o almoço, ele prometeu que antes de voltar ao trabalho ia nos levar para dar uma volta. Meu irmão mais velho estava na escola. Eu sentei no meio, entre meu pai e meu irmãozinho, junto à porta. O carro mal rodou alguns metros e a porta do passageiro abriu-se e meu irmão de dois anos voou de cabeça para fora. O lamaçal que cobria a sarjeta amorteceu sua queda e ele não sofreu nenhum ferimento. Só tomou um banho e meu pai, empolgado com o carro, agora se penitenciava com tamanho descuido.
Certa vez, meu pai estava agitado, com o som do rádio às alturas. Ele havia gritado gol' três vezes.
É o Palmeiras?
Não, é o Brasil!
Quando ele gritou gol pela quarta vez, pegou-me pela mão e levou-me até a Praça Oscar Silva, na esquina da Maria Cândida com a Coronel Jordão. Ali se aglomerava um mundaréu de gente frenética debaixo das árvores frondosas. No alto de um dos galhos, pendurava-se um alto-falante, ligado a um rádio que irradiava para toda a Vila o Brasil jogando contra a Suécia. Antes do jogo acabar, gritaram gol de Pelé. O radialista, com a voz rouca de emoção, distorcida pela transmissão, e meio fanha com os ecos do alto-falante, mal conseguia falar. O público, eufórico, ainda mantinha-se atento às palavras que saiam daquela pequena caixa mágica. De repente, o locutor gritou: Termina a partida, somos campeões do mundo. Aquele povo, como se tivesse ensaiado, bradou uníssono: somos campeões do mundo! Todos se abraçavam e lançavam seus chapéus para o alto. Aquele foi um momento em que eu vi o tempo parar. Os chapéus pareciam estar suspensos no céu, quando a energia potencial estava prestes a dar lugar à cinética e tudo pairava no ar alguns segundos. E os chapéus pareciam descer em câmera lenta, contrariando as leis da física, que determinam subida e queda na mesma velocidade. Eram as leis humanas que ali imperavam. Nunca tinha visto tanta gente feliz em minha vida. Até mesmo os balões e fogos de artifícios que se alçavam aos céus, pareciam estar sorrindo. Nos dias que se seguiram, ouvia-se no rádio o dia inteiro: A taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa. Eh eta esquadrão de ouro, é bom no samba, é bom no couro. A próxima surpresa que meu pai me fez foi presentear-me com o uniforme da seleção, camisa amarela, calção e meias brancas, que eu levei, com muito orgulho, para o novo bairro onde fui morar. E de lá, da Vila Guilherme, eu trouxe comigo algo que eu nunca vira nos rostos dos adultos: felicidade.

OUT OF THE BLUE



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Não sei de onde brotam tantas ideias, Inéditas, Súbitas e intrometidas, Só podem ser do conhecimento absoluto, De entrada franca, Com programação imprevisível, Ouse o terapeuta subtrair uma gota de seu conteúdo a algum sonho seu recorrente e perturbador, E ele inunda o minúsculo espaço deixado vazio com um mar que transborda seu inconsciente, Atreva-se a enxota-lo, E ele te emoldura num carrossel, Vem e Vai, E quando passa pelos seus olhos, É Sempre nada de nada do que faz sentido, E, às vezes, Com palavras simples assim vindas de uma mulher: Oh meu amor, Sou sua fada, Vindo do nada, Com todo fervor, Meu deus da sincronicidade, Que prepara misteriosos elementos psicóides na natureza para unir as partes estranhas umas às outras para me impressionar com coincidências, Por acaso você já me deu alguma ideia que não tenha sido por acaso? Porventura é você que faz um disco voador surgir e desaparecer do nada? Como se ele tivesse se perdido e entrou pela porta errada? E as ilusões? É você também quem as engendra? Como o espírito daquele homem  pelado que apareceu no banheiro de meu quarto? Será que ele apenas se esqueceu por uns instantes que está morto e resolveu tomar um bom banho de ducha que só se encontra num hotel cinco vezes estrelado? Ou tem ele consciência que faz parte do nada e, de vez em quando, passeia pelo mundo? Bem sei que o louco não sabe que é louco porque nunca conheceu a sanidade, E que o morto não sabe que está morto porque não sabe o que era antes de existir, Fico pensando nos sonhos que me levam a lugares onde nunca estive e para os quais nunca atinei, E depois eles coincidem com a realidade e me deixam, Quando nada, Atônito com as verdades que eles me revelam, Do presente, Do passado, E do futuro não tenho como provar, Para não faltar à verdade, A bordo de uma de suas casualidades, Um navio graneleiro chamado internet, Veio esta linda mulher que se senta ao meu lado, Como um mimo que um potentado manda a outro, E ela, parafraseando Graciliano Ramos e Lígia Fagundes Teles, Acende a fogueira, Mesmo cercada de ar forte demais, Meu fogo atiça, Me acolhe como uma brasa ardendo na infelicidade e na preguiça, Resolve meus problemas existenciais, e emenda:
Oh meu amor, Homem com alma de mulher, Grande intelectual filosofando sobre a existência, Quão difícil é acompanhá-lo em reflexões tão profundas, Encontrou ocasião para trocarmos impressões sobre a oportunidade da vida e sobre o potencial do espírito na transcendência possível a cada patamar evolutivo, E de minha parte, Você já sabe, Eu era uma rocha ressurgindo à flor das águas, E com gestos simples e admiráveis, Você apanhou-me como uma mosca fulgurante, Curioso de me examinar e de me amar, Sem nunca me perguntar quantos homens descarregaram suas frustrações entre minhas pernas, Entrou para minha vida factícia de 26 anos, Com todo seu ardor, Abandonando seu pequeno mundo preso a encruzilhadas, Sem medo de ter medo, Com a certeza de recomeçar onde tudo lhe era pouco conhecido, Oh meu amor, Não chame isto de sorte de bilhete de loteria, Nem de geomancia, É nada dos nadas para sua valentia, Você é meu contato imediato do terceiro grau, A minha vez na vida e noutra na morte, Meu sonho revelador, Meu encosto redentor, Come my love, With your desire, Out of the blue, And into the fire.

QUIASMO RIMADO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

A Estive no Vale da Amoreira e soube do crime proibido de se comentar
B Fui à casa da Cândida, conheci sua mãe e sua avó que gostam de conversar
C Estive na Galileia, vi Jesus e a rainha da Inglaterra
D Lady Jane levou-me ao convento na idade média onde minha amada se aferra
E Estive no consultório da Lilian para socorrer uma vida que estava por um fio
F Voei até Nimes nublada e acinzentada sobre a baixada Fluminense no Rio
G Encontrei-me com a civilização dos ursos humanos de diferentes ideologias
H Falei com meu pai pela última vez amarrado a uma cama e cheio de agonias
I Pediram-me para explicar a espada de Dâmocles que afeta dois casais
J Sai voando pela janela até a casa de meus pais
K Segui voando pelas ruas e atravessei a porta de cultos espirituais
L Voltei à Galileia e invadi a área reservada à crucificação
L Ali morri com uma lança romana cravando-me no chão
K Encontrei Dona Ana sentada trabalhando desde tempos imemoriais
J Só duas jovens freiras morenas reconheceram-me na minha invisibilidade
I Li no jornal que a insegurança do poder paira sobre nossa infidelidade
H Reencontrei meu pai num hospital na cidade de Campo de Marte que não tem mar
G Encontrei-me com os humanos do futuro que são todos gêmeos e falam bem devagar
F Visitei a Nimes romana no sul do território francês
E Trouxe de volta o rebelde e quase suicida japonês
D O amor de minha vida virou freira e trocou-me por Deus
C Fui levado ao Himalaia para ver o homem das neves lá do alto acenar adeus
B Na casa da minha amiga, o cão vivo é manso, mas o morto era bravo e ladrou
A Descobri quem matou, quem morreu e quem escapou