Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Texto de autoria
de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei
9610/98
Em 1957, meu pai deu
início aos preparativos para deixar o ‘Pari’ dos depósitos de doces e fazer da
região norte, do outro lado do Tietê, que abandonara sua agrestidade, sua última
morada na superfície da terra. Foi um pedido de minha mãe, jovem e inexperiente, que queria sair imediatamente da casa onde morávamos para viver próximo de sua
mãe. O motivo de tal súbita e urgente mudança foi uma morte na família.
Primeiro, meu pai comprou um terreno para construir uma nova casa nos fins de
semana e que levaria um ano para ficar pronta. Ao mesmo tempo, ele alugou uma
casa na Vila Guilherme, onde nós permaneceríamos todo o ano de
1958. Dizem que várias ruas
deste bairro receberam nomes de parentes do Seu Guilherme da Silva, o dono da
antiga gleba. Sua esposa, Dona Maria Cândida, ficou com a principal via. Sua
filha, Diva da Silva, ficou com uma secundária e perpendicular à da mãe, e foi
nela que meu pai fixou nossa residência temporária, quase na esquina com a Rua
Coronel Jordão. Seu Guilherme havia loteado todas suas terras, compradas da Dona
Joaquina Ramalho Pinto de Castro, em sítios e chácaras, e estas, mais tarde, não
resistiram ao progresso e foram divididas em terrenos para a construção de
habitações. Meu pai e dois de seus
irmãos compraram um grande lote e nele construíram uma daquelas antigas vilas,
com rua sem saída e com várias casas conjugadas e simétricas, como as das
periferias de Londres, mas bem mais modestas. Hoje se dá a esses tipos de
construções o nome de condomínios. Meu pai e meus tios eram excelentes
construtores. Aprenderam o ofício com o meu avô italiano. Mas eram péssimos
negociantes e nada entendiam de economia. Venderam todas as
casas com financiamento direto de seus bolsos esvaziados e devedores, sem
intermediação de bancos, por um prazo quase a perder de vista e com prestações
fixas e sem correção monetária. Anos depois, a
inflação galopante os levou a passar as escrituras definitivas aos moradores
antes da metade do prazo. O valor das prestações já não pagava nem mesmo o
custo de confecção dos carnês. Eles saíram no prejuízo. Receberam de volta pouco mais que o custo do empreendimento. Assim, meu pai e meus dois tios deram uma grande
contribuição à Vila do Seu Guilherme, beneficiando cerca de trinta famílias com
presentes de pai para filho: o sonho da casa própria por um preço irrisório e
simbólico. Meus tios tomaram rumos diferentes do meu pai, que não baixava a
cabeça e nem olhava para trás, contanto que o que ele fizera não tivesse
prejudicado, mas, ao contrário, ajudado pessoas. Eu tinha 6 anos, um
irmão de 2 e outro de 10. Eu estava começando a tatear o mundo exterior. Nos
meses anteriores, vividos na Rua Pacheco e Silva, no Pari, eu não me lembro de
ter brincado na rua uma única vez. Estranhamente, todas as lembranças da minha
curta passagem por aquele bairro morreram junto com minha tia-mãe, Alice, que
me chamava de filhão e não saiu daquela casa viva como profetizara. As únicas
recordações que retive foram aquela grade de proteção à janela rente ao chão,
que levava luz ao porão, e era vigiada por um vespeiro aguerrido, e as melancias que começaram a brotar na superfície do nosso quintal, às vésperas de nossa partida. Antes do Pari, na Rua
Cantagalo, no Tatuapé, eu fiz apenas duas incursões fora de casa. Uma vez,
acompanhado pelo meu irmão, que me levou até um terreno baldio onde alguém havia
escondido um tesouro, um monte de bolinhas de gude coloridas. E trouxe-me de
volta com um corte e vários pontos no pé esquerdo, que pisou em falso num caco
de vidro. E outra vez com minha prima Janete, que descobriu, num vão estreito
entre dois muros, vários cones de papelão para fios têxteis, e logo fez deles
adereços de carnaval. A Rua Diva da Silva
não era longa, mas, para uma criança como eu, ela parecia não ter fim. Às vezes
eu acompanhava com os olhos meu irmão caminhando por ela até perdê-lo de vista.
Um dia, resolvi segui-lo. Meus passos eram curtos, mas rápidos. Tinha medo de
não chegar ao final da rua antes do dia acabar. Em poucos minutos, no entanto,
eu já estava junto à esquina com a Rua Desembargador Urbano Marcondes e, do lado direito, descortinava-se diante de meus olhos o palco de um teatro mágico:
crianças jogando futebol num campinho de terra. Então é assim que se pratica
aquele esporte ao qual meu pai assiste todos os domingos na televisão! Então, é
por isso que meus tios vêm frequentemente à minha casa, para assistir futebol!
Enquanto eu encantava-me com a bola e os pés descalços levantando poeira, sem
perceber eu adentrava o campo de jogo e meu irmão logo se deu conta da minha
presença:
O que é que você está
fazendo aqui?
Eu quero jogar também.
Eu quero jogar também.
Que jogar o quê,
moleque, volte já para casa antes que eu lhe de uns tabefes!
Meu pai foi o primeiro
da família a comprar uma televisão. Por isso, muitos parentes vinham à minha
casa nos finais de semana. Meu pai era especial. Logo que ele percebeu meu gosto
pelo futebol, comprou-me uma pequena bola de ‘capotão’, que eu batia no quintal
até ralar. Um garoto de minha idade, que morava quase em frente à minha casa,
via-me com aquela bola todos os dias e chamou-me até sua casa para mostrar-me
algo diferente: um jogo de botões.
Você não tem
um?
Não, mas posso pedir
ao meu pai para me comprar.
Tem com cores e
distintivos de futebol.
É mesmo? Então, vou
pedir ao meu pai para comprar um do Palmeiras.
Do Palmeiras, não!
Compre do São Paulo que é o melhor de todos.
Meu pai era especial
mesmo. A família Corintiana de minha mãe queria converter-me e, agora, meu pai
resignadamente, e a contragosto, comprou-me um jogo de botão do São Paulo. Mas,
no dia seguinte, ele me presenteou com uma camisa do Palmeiras e num domingo de
1959 levou-me ao Palestra Itália pela primeira vez, para assistir Palmeiras 6 X
1 Comercial (de Ribeirão Preto). Embora eu estivesse
completamente fascinado pelo futebol que, um ano mais tarde, eu iria ver ao
vivo, da arquibancada, eu ainda mantinha alguns estranhos vícios que começaram
lá na Vila Guilherme. Eu costumava pegar um macacãozinho de meu irmão caçula,
enche-lo de retalhos, improvisando-lhe uma cabeça de pano e balança-lo nos meus
braços como um bebê, como uma boneca. Eu chamava-o de menino. Na idade adulta,
quando fazia psicoterapia, perguntei se este costume não era indicativo de
homossexualidade. Para minha surpresa, a psicóloga respondeu-me que era um fato
insignificante da infância e de nenhuma relevância para minha análise. Mas,
minha vizinha do lado esquerdo, uma mulher que adorava minha família,
preocupava-se. Um dia ela surpreendeu-me com um boneco de pano de verdade: um
palhaço, como o torresmo. Isso aconteceu quando estávamos de mudança para o novo
bairro. Definitivamente, meu pai esteve muito acima da média.
Ele vinha almoçar em casa todos os dias. Certa vez, chegou todo feliz e
orgulhoso com seu primeiro carro: um Bel-Air 54. Durante o almoço, ele prometeu
que antes de voltar ao trabalho ia nos levar para dar uma volta. Meu irmão mais
velho estava na escola. Eu sentei no meio, entre meu pai e meu irmãozinho, junto
à porta. O carro mal rodou alguns metros e a porta do passageiro abriu-se e meu
irmão de dois anos voou de cabeça para fora. O lamaçal que cobria a sarjeta
amorteceu sua queda e ele não sofreu nenhum ferimento. Só tomou um banho e meu
pai, empolgado com o carro, agora se penitenciava com tamanho
descuido.
Certa vez, meu pai
estava agitado, com o som do rádio às alturas. Ele havia gritado gol' três
vezes.
É o
Palmeiras?
Não, é o
Brasil!
Quando ele gritou gol
pela quarta vez, pegou-me pela mão e levou-me até a Praça Oscar Silva, na
esquina da Maria Cândida com a Coronel Jordão. Ali se aglomerava um mundaréu de gente frenética debaixo das árvores frondosas. No alto de um dos galhos,
pendurava-se um alto-falante, ligado a um rádio que irradiava para toda a Vila o
Brasil jogando contra a Suécia. Antes do jogo acabar, gritaram gol de Pelé. O radialista, com a voz rouca de emoção, distorcida pela transmissão, e meio fanha com os ecos do alto-falante, mal
conseguia falar. O público, eufórico, ainda mantinha-se atento às palavras que
saiam daquela pequena caixa mágica. De repente, o locutor gritou: Termina a
partida, somos campeões do mundo. Aquele povo, como se
tivesse ensaiado, bradou uníssono: somos campeões do mundo! Todos se abraçavam
e lançavam seus chapéus para o alto. Aquele foi um momento em que eu vi o tempo
parar. Os chapéus pareciam estar suspensos no céu, quando a energia potencial
estava prestes a dar lugar à cinética e tudo pairava no ar alguns segundos. E os
chapéus pareciam descer em câmera lenta, contrariando as leis da física, que
determinam subida e queda na mesma velocidade. Eram as leis humanas que ali
imperavam. Nunca tinha visto tanta gente feliz em minha vida. Até mesmo os
balões e fogos de artifícios que se alçavam aos céus, pareciam estar
sorrindo. Nos dias que se
seguiram, ouvia-se no rádio o dia inteiro: A taça do mundo é nossa, com
brasileiro, não há quem possa. Eh eta esquadrão de ouro, é bom no samba, é bom
no couro. A próxima surpresa que meu pai me fez foi presentear-me com o
uniforme da seleção, camisa amarela, calção e meias brancas, que eu levei, com
muito orgulho, para o novo bairro onde fui morar. E de lá, da Vila Guilherme, eu
trouxe comigo algo que eu nunca vira nos rostos dos adultos:
felicidade.
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