Eis aqui duas autênticas e originais crônicas escritas por Alceu Natali enquanto ele fazia quimioterapia em 2019 depois de ter sido submetido a duas cirurgias para retirar um tumor maligno no cólon, em estado avançado e com 8cm, em 2018. O Alceu pediu-me para fazer algumas alterações: 1) Reunir O RISCO DA FÊNIX e MOSTRUOSIDADES numa única postagem, mantendo a ilustração original das duas crônicas, encabeçadas pela foto de uma Dina, uma personagem do seriado que estou planejando escrever em parceria com AustMathr, meu marido; 2) Na crônica O RISCO DA FÊNIX, o Alceu pediu-me para substituir a música que lá estivera por PLEASE, PLEASE, PLEASE, LET ME GET WHAT I WANT da extinta banda inglesa THE SMITHS, na versão solo e ao vivo de Morrissey, vocalista e letrista desta que foi a melhor banda de rock alternativo dos anos 80. Esta escolha do Alceu tem duplo sentido. Ele diz que as primeiras frases da letra dizem: 'Boa hora para mudar, Veja a vida que tive, Poderia transformar um homem bom num ruim', e AustMathr comenta: 'Veja o que a bipolaridade fez com minha vida. Transformou um homem ruim num péssimo. Se eu conseguir a remissão de meu câncer em junho deste ano de 2024 como está planejado, vou procurar fixar a residência de minha demência no extremo menos ruim'. O outro sentido é irônico e diz respeito aos últimos versos que Morrissey canta de maneira resignada: 'Então, Pelo menos uma vez em minha vida, Deixa-me conseguir o que quero, Deus sabe que seria a primeira vez'. O Alceu chegou pra mim e disse: 'Perdi a conta de quantas vezes consegui o que queria sem merecer. E Deus sabe quantas vezes aporrinhei o saco dele'. Eu disse ao Alceu que no vídeo, antes de começar a cantar, Morrissey fala um pouco com o público e pede, por favor, para que lembrem que ele os ama. O Alceu me responde: 'Eu gostaria de dizer a todas as pessoas que magoei e perdi que as amo, mas não posso. Já exauri todos os tipos de sentimentos que já tive em minha vida, menos a maldade com a qual fui marcado e sigo odiado, esperando minha vez de entrar no abatedouro.' A música escolhida para a crônica MOSNTRUOSIDADES, tirada do seriado GAMES OF THRONES é perfeita, com todo seu suspense na eminência de uma vitória do REI DA NOITE na batalha final, até a eclosão de jubilo e celebração com o repentino surgimento da heroína Arya.
Inglesa Luso-Chinesa
Texto de autoria de Alceu Natali, com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
O RISCO DA FÊNIX
ESCRITO EM MAIO DE 2019
Em meados
do último mês de abril de 2019, Kuriac voltou a fazer contato. Ele é um colega
do antigo ginásio que não vejo há mais de meio século. Ele parece viver numa
das estrelas Gliese, a mais de 50 anos luz do nosso planeta, me enviando
mensagens por radiotelescópio que, de acordo com as leis da astrofísica,
demoram milênios para chegar. Tudo que ele me escreve tem cheiro de bolor do
passado, mas como o tempo é relativo, o teor de suas missivas versa sobre o
nosso presente e são recebidas em tempo real. Kuriac me pergunta qual foi meu
diagnóstico depois de uma quimioterapia de 16 semanas. Em Agosto de 2018,
quando lhe disse que estava com câncer e seria submetido a uma cirurgia para
retirar um tumor de 8 cm, ele emputeceu. 'Mas que notícia desgraçada!' Ele acompanhou
meu calvário somente à distância, de Agosto até agora, uótizapando com minha
mulher, a guerreira Cecília, como ele a chama, lembrando-me de Antígona de
Sófocles, reverenciada por Werner Jaeger em Paidéia: A Formação do Homem Grego,
um livro que recomendei a ele. Quando lhe disse que Shakespeare se inspirou em
Antígona para escrever Romeu e Julieta ele se interessou, não pela história de
amor incondicional. Ele quer e vai filosofar e dissecar questões de
desobediência civil, de desafio às autoridades. No mês do meu aniversário, a
notícia que recebi foi menos furibunda. Minha oncologista confirmou que o
nódulo no pulmão, acusado pela recente tomografia computadorizada, não é
maligno, nem mesmo requer biópsia. Apenas acompanhamento com exames de praxe de
tempos em tempos. 'Mas que notícia maravilhosa', ele exclamou, 'alegrou meu
sábado. Parabéns para você e para a Cecília que segurou com galhardia essa
barra a seu lado!' Eu já me preparava para o inevitável e fiz uma viagem do
espírito, como Gao Xingjian em A Montanha da Alma. Será que minha próxima
tomografia irá revogar minha pena de morte, como no caso de Gao que foi,
erroneamente, diagnosticado com câncer no pulmão? Espero que o carcinoma me
conceda a manumissão definitiva. Enquanto meu atestado de alforria não for
assinado, com firma reconhecida em cartório, não ouso sair por aí fogueteando.
Há sempre o risco de dar chabu. Kuriac virtualizou na última idade. O malledeto
não veio me visitar no hospital como prometera. Diz um ditado árabe que a primeira
pessoa que vem lhe saudar num nosocômio é sempre seu melhor amigo. Você acredita no adágio americano 'A friend in need is a friend
indeed?' Será
que o verdadeiro amigo realmente aparece quando nos encontramos em
dificuldades? Minhas experiências com esta máxima trazem mais dúvidas do que
certezas, no que diz respeito à estima entre pessoas do mesmo sexo. Aliás,
achei muito engraçado o que falou Oscar, o Mão Santa do basquete, numa
entrevista a um programa esportivo: 'Não existe amizade entre homem e mulher, a
menos que um dos dois seja feio demais.' Será? Bem, não me presto a esperar por
um Godot de Samuel Backett. Não levo jeito para a inércia de Estragon e nem
para a inquietação de Vladimir. Parafraseando Eça de Queirós, como não tenho
mania francesa e burguesa de jogar as farinhas de regiões e raças no mesmo saco
da civilização, quebrei a monotonia abominável do teto do meu quarto cancroide
relendo algumas peças de minha juventude: Five Finger Exercise de Peter
Shaffer, The Kitchen de Arnold Wesker e The Hamlet of Stepney Green de Bernard
Kops. Danem-se os provérbios! Viva a verdade firme e assegurada, de que não
pode se duvidar, princípio primeiro do cartesianismo! Ave Cogito, Ergo Sum!
Salve a dupla Napoleon Solo e Illya Kuryakin! Kuriac nunca veio à minha casa.
Cansei de convidá-lo para um papo e algumas taças de vinho. Eu entendo e
respeito sua relutância em aquiescer aos meus convites. Talvez um encontro face
to face desguarnecesse nossa solidão licomaníaca, nossas horas de entre lobo e
cão, após nossas fadigas cotidianas da luz do dia, quando começamos a
arquitetar pensamentos perversos e uivar nossos cogitos. Expor nossas velhas
carcaças poderia inibir o que os nossos inconscientes liberam nas altas horas
sem permissão. Para ciciar vícios basta esta plataforma. São tesouros
escondidos do mundo, exceto dos hackers que abundam nas redes sociais e das
grandes potencias espiãs que violam a privacidade de todos internautas. Num
rendez-vous tetê-à-tetê nossos olhares poderiam descuidar nossos segredos guardados
a medo. Melhor permanecermos os estrangeiros de Albert Camus. Somos agentes
ultrassecretos, cada um cuidando de sua rotação, um da terra, outro da lua, e o
sol é para todos, conforme Harper Lee expõe de maneira brilhante no seu livro
To Kill A Mockingbird. Kuriac considerou boas minhas novas, mas, no meu
entender, elas ainda são interinas, por isso não esperei receber alvíssaras.
Kuriac, no entanto, deu o meu caso cancerígeno por encerrado e propôs-me a
volta à normalidade, muito diferente da definição daquele beneditino
apocalítico no livro O Nome Da Rosa de Umberto Eco, segundo o qual 'normal é a
preservação do conhecimento e não a busca do mesmo, pois não existe progresso
na história do conhecimento, mas meramente uma contínua e sublime recapitulação.'
Kuriac quer o retorno à vida na sua plenitude, às ironias, e ainda aconselha:
'Sorria muito, sorria sempre, mesmo que seja com sarcasmo, com desdém. Cultue a
disposição sombria do espírito ao escárnio. A misantropia se enternece.' Sobre
quais aversões podemos falar? Não podemos ter uma conversa menos filosófica do
que humana do tipo Xenophon: Conversations With Socrates: Socrates’ Defence,
Memoirs Of Socrates, The Dinner-Party, The Estate Manager? Não, ainda não
podemos. Kuriac tem na mão e na alma o retorno ao ordenamento moral: 'A
excitação pela luxúria não deve ser tratada com amor, e sim com toda a volúpia
e despudor, num frenesi animalesco da carne uivante no cio doentio.' E, em
seguida, retoma a fraternidade: 'Vou tomar um vinho branco em homenagem à sua
saúde!' Não devo te agradecer, Kuriac, em respeito à parrésia dos gregos,
lembra-se? Para, pelo menos, celebrar a sua solicitude e o meu euangélion
provisório, esforço-me por alegrar-me com esta pilhéria: 'O que faço com o
caixão que minha sogra me enviou de presente?' A resposta veio em segundos:
'Mete ela dentro e joga no incinerador, depois espalhe as cinzas ao vento. Mas
sempre há o risco da Fênix!
Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
MONSTRUOSIDADES
TEXTO ESCRITO EM JULHO DE 2019
Minha oncologista é comedida e não oscila entre extremos, não obstante sua propensão leibniziana de maximizar o bem e minimizar o mal – Nietzsche transcendeu a razão dos dois. Tão competente profissional como ela é, tachá-la de contemporizadora e otimista é leiguice. Ela não merece minha desconfiança de que ainda estou em guerra com meu câncer. Diga-se, a propósito, que ela rejeita as palavras 'meu câncer', e aceita melhor um carcinoma que passou pela minha vida, precisamente como asseverou uma leitora de tarô na Maifest no Brooklin em Maio. Já ouvi alguém me dizer que a única guerra é da vida contra a morte e aqui a ponderação e a precaução não são mutuamente excludentes. No último sábado, fiz mais uma tomografia que deve computadorizar a estratégia do nódulo no meu pulmão, se é que ele tem alguma. Torço para que ele seja apenas um velho e aposentado carrapato, acomodado e enjoado de sangue. O VAR medicinal, não hesitante e meio cego como o do futebol, me pediu 20 dias para checar se é penalidade máxima ou simulação de meu adversário. Espera pungente! É isso que sempre sinto com lancinante estertor na obra de tão curto tempo sem-fim. 'Valar morghulis', sentencia Melisandre, uma de minhas convidadas para esta preguiçosa prosa lafarguiana avessa aos costumes hodiernos. Isso todos nós já sabemos, feiticeira! Estaria, então, a senhora escatologiando a chegada de minha hora? 'Valar dohaeris', retruca o Verme Cinzento, acompanhante de Melisandre. Ele deve ter pressentido desrespeito na minha arguição. Todo homem deve servir e morrer! Kuriac, que tem me acompanhado na sua prisão domiciliar com a chave da tornozeleira, sente cheiro de hostilidade neste aranzel de lugares-incomuns, e para ele certos inimigos não devem apenas serem vencidos e conhecerem o rigor da mandaçaia: 'devem ser abatidos, exterminados!' Numa guerra como essa que travo, Kuriac não faz prisioneiros: 'a clemência e a magnanimidade são admissão de impotência'. Melisandre, fazendo ouvidos moucos a estes cogitos que contrariam a emergência de antigas civilizações escravagistas como Grécia e Roma, mostra-se mais aliada do que apocalíptica, e ora por todos nós ao seu Senhor da Luz nestes dias sombrios: 'Āeksios Ōño, aōhos ōñoso īlōn jehikās! Āeksios Ōño, īlōn mīsās! Kesrio syt bantis zōbrie issa se ossȳngnoti lēdys!' Será que Kuriac leu o livro Escravidão Antiga E Ideologia Moderna de Moses I. Finley? Provavelmente não. Kuriac planeja empreender uma odisseia nas redes de poder que abrange desde a base de operações de Portugal em Macau até a grande recessão de 2008/9. As resenhas que li do livro The Square and The Tower, de Niall Fergunson, no New York Times e no The Wall Street Journal sancionam minha admiração por Kuriac, pelo seu bom gosto e sua glutonaria intelectual. Uma viagem pela antiguidade até nossos dias através da leitura é não apenas prazerosa, mas obrigatória também. Quem não conhece a história da humanidade não conhece o mundo onde vive. Adotei este provérbio depois de ler Mankind And Mother Earth, de Arnold Toynbee, e que agora terá a companhia desta ótima recomendação de Kuriac, disponível em português com a tradução correta: A Praça E A Torre. Enquanto aguarda esta obra que, entre outros temas, versa até sobre os misteriosos Iluminatti, creio que Kuriac está fazendo a digestão de um livro de Max Stirner, um filósofo alemão anarquista, individualista, contemporâneo e amigo de Engels e, no momento que escrevo, recebo de Kuriac uma citação do desordeiro: 'A escrita só será livre quando for a minha escrita, uma escrita que não seja ditada por nenhum poder ou autoridade, por nenhuma crença ou temor.' Somos dois, Ergo! Alias, três! E sobre o amigo de Stirner, Kuriac me oferece um embolote literário: 'Veja o que é jogar de volante no meio campo da filosofia política, antes de Mao.' Ele está se referindo ao livro Joseph Goebbels - Uma Biografia, de Peter Longerich, logo após ter lido Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang, autora de Os Cisnes Selvagens, e pouco depois ele arremata: 'acabei de ler Stálin – Nova Biografia De Um Ditador, de Oleg V. Khlevniuk.' Caramba, enquanto Kuriac lê livros de grosso calibre, que alguns de nossos críticos e jornalistas obsoletos e ufanistas poderiam chamar de monstruosidades, desde minha segunda cirurgia em Setembro, continuo lendo amenidades. Além das peças já citadas no texto O RISCO DA FÊNIX, reli clássicos do romanceiro universitário: as peças Our Town, The Skin Of Our Teeth e The Matchmaker, de Throrton Wilder, e alguns romances, The Go-Between, de L. P. Hartley, Women in Love, de D. H. Lawrence, To Kill A Mocking Bird, de Harper Lee, e outros. Parafraseando meu xará, Alceu Amoroso Lima, minhas uótizapações com Kuriac sobe a centenas de palavras por semana, e já conheço menos minhas limitações do calor de imaginação que me anima como aprendiz de escritor que Kuriac a profusão de seus conhecimentos políticos, filosóficos e históricos. Por isso, creio, Kuriac jamais leria algumas de minhas ficções. Mas, certamente, leu os curriculares do tipo A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água na juventude. E depois de 50 anos? Estava José Saramago correto ao escrever: 'as graves leituras da adultidade, chegando a uma certa altura da vida já todos (nós), mais ou menos, lemos as mesmas coisas.' Acho que não. Anyway, convenho, Kuriac é modesto, não se considera inteligente, mas é, e se define como um leitor voraz, um grande metido, a jurista, a filósofo e a corredor de esteiras. Tenho certeza que se, por razões quiméricas, caísse-lhe às mãos e ele volvesse as primeiras folhas de qualquer escrito de Virgínia Woolf ele seria bem mais condescendente do que o Ted do filme Lembranças De Um Verão, e que diz a uma criança que ganhou um cartão de biblioteca da mãe: 'Dê ao autor uma hora para fisgá-lo, se não o fizer, procure outro.' Contrariando o personagem paranormal, Kuriac diz: 'não tenho qualquer restrição a leitura, entretanto isso não implica em que aceite tudo que leio, assim como não desisto de qualquer obra por qualquer motivo, dou ao autor o direito de lê-lo até o final, mesmo que não concorde com nada, como aconteceu, por exemplo, com Reflexões sobre a revolução francesa do filósofo Edmund Burkle! O conteúdo não conjuminava com meus entendimentos, mas a forma, a escrita era maravilhosa! O principal é respeitar o autor, o que não explica o assentimento do conteúdo. O fato de eu ser ateu me afasta de um filósofo como Immanuel Kant devido à sua religiosidade, e ao seu imperativo categórico, que no meu entender obsta a perquirição tão fundamental à evolução da mente humana.' Melisandre, de olhos flamejantes, rumoreja algo ao pé do ouvido do Verme Cinzento. Ela é uma carocha premonitória e já fez coisas ruins, mas, ultimamente, prometendo se aposentar da vida em breve, ela se presta a ajudar qualquer abominável, até aquele que quer apressar sua morte. Mal bem falei de Kuriac, e ele entorna o caldo, citando mais uma de Max Stirner: 'Para mim, ninguém é pessoa a respeitar, nem mesmo o meu semelhante, é apenas, como outros seres, um objeto pelo qual tenho, ou não, simpatia, um objeto mais ou menos interessante, um sujeito mais ou menos utilizável.' No entanto, Melisandre faz ouvidos de mercador à ojeriza e à execração do homem como objeto a ser explorado. Ela enxerga em Kuriac uma alma revolta, precisando de prece e silêncio para ser conduzida longe da escuridão. E roga ao seu Mestre para iluminá-lo: 'Zyhys oñoso jehikagon Aeksiot epi, se gis hen syndrorro jemagon.' Kuriac entendeu o que Melisandre disse em sua língua. Ele parece ter percepção extra-sensorial. 'Concordo com você “verbo ad verbum” tenho uma extrassensorialidade desenvolvida, não no sentido de transcendência, mas no sentido de junção dos sentidos num acontecimento futuro breve, esse é o meu grande diferencial,' e, em seguida, ele desafia Melisandre: 'Não me limito a um sentimento para com os humanos, contudo dou livre curso a todos aqueles que sou capaz, dentre eles o amor, tanto quanto ao ódio em igualdade de intensidade necessária.' Melisandre lamenta que o amor equiparado ao ódio resulte em ódio. É matemático: dois positivos são iguais a um positivo, porque eles se unem; dois negativos são iguais a um positivo porque os dois se anulam, mas um positivo e um negativo são sempre iguais a um negativo porque o mal predomina e o bem é apenas a ausência temporária do mal. Essa equiparação equivale a dizer que uma única luz foi extinta no umbral. Melisandre vai, mais uma vez, recorrer ao seu mestre, implorar a ele para que libere sua chama e acenda uma vela que foi apagada: 'Zyhys perzys stepagon Aeksio Oño jorepi, se morghultas lys qelitsos sikagon.' Kuriac, com sua mediunidade, termo com o qual ele não concorda, deve ter sacado o idioma valariano e pensado na paradoxalidade e hilaridade de uma bruxa devota, como uma cristã. Melisandre tem lá suas crendices, como todos seres humanos, bruxos ou não, mas ela não é cristã. Mas para Kuriac tudo não passa de crenças no sobrenatural por meio de doutrinas e rituais que envolvem preceitos dogmáticos e levam à fé e à beatitude cegas. Ele desce a lenha sobre todo tipo de religião: 'Ela é um veneno. A maior maldição da humanidade, criada por homens poderosos para doutrinar e escravizar os fracos e humildes, transformando-os num bando de muares cabisbaixos, espírito cativos e doentios, manipuláveis em sua essência ignara, com ameaças perenes da expiação tormentosa, para aplacar a cólera do onipotente fictício.' Concordo com Kuriac em gênero, número e caso, mais particularmente em relação ao cristianismo, a religião dominante que causou um atraso de mais de mil anos no avanço da produção do conhecimento e da tecnologia da humanidade, além das atrocidades e monstruosidades - as torturas e as fogueiras da Santa Inquisição. O que estaremos fazendo daqui a mil anos? No mínimo já teremos colonizado a lua, Marte, Titan, Europa, Encélados e, muito provavelmente, descoberto a viagem no tempo e começando a empreender odisseias interestelares. Tudo isso poderia já estar acontecendo em nossos dias não fosse o aprisionamento do saber imposto pelo cristianismo. Eu e Kuriac somos agnósticos de carteirinha remida, fazemos parte de uma seleta minoria privilegiada que sabe que a Bíblia é pura mitologia, que Deus não existe, Jesus Cristo, Paulo de Tarso e o escambau não existiram e que a famigerada moral cristã é nada mais que neoplatonismo. No meu texto PRESENTES DE AMOR E O MITO DA MULHER APANHADA EM ADULTÉRIO: trecho de palestra sobre mitologia cristã ministrada em São Paulo, procurei dar pistas sobre como os cristãos fizeram uso descarado da genialidade de Platão para inventar todas as mentiras que abundam nos 4 evangelhos canônicos aprovados (sic) no Concílio de Niceia. No quesito moralidade, parafraseio Ramalho Ortigão, atestando que não há nenhum acadêmico no mundo que possa abordar a imagem de Platão na história sem se aconselhar com Werner Jaeger e receber seu beneplácito. Eis as palavras de Jaeger em seu livro PAIDEIA – A FORMAÇÃO DO HOMEM GREGO: 'Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em que Platão ocupava o centro espiritual da Grécia e em que todos os olhares convergiam para sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo. Todos os séculos da Antiguidade que se seguiram a ele ostentam na sua fisionomia espiritual traços da filosofia platônica (por mais metamorfoseadas que estejam), até que por fim o mundo greco-romano se unifica sob a universal religião espiritual do neoplatonismo. A cultura antiga, que a religião cristã assimilou e a qual se uniu para entrar, fundida com ela, na Idade Média, era uma cultura inteiramente baseada no pensamento platônico.' Kuriac dispensa a opinião de um catedrático. Seu argumento é contundente. Ele leu e me recomendou o livro A Monstruosidade de Cristo, do filósofo esloveno Slavoj Zizek, que denomina Jesus como o sofista crucificado, e acrescenta: 'O evangelho cristão é escrita inventada e manipulada, submetida a tantas alegorias que vai para o valão comum da mitologia, da crendice popular. A religião é o maior golpe de estelionato da humanidade, no sentido de entorpecimento mental, e o ópio do povo em sentido lato.' Eu não posso deixar de retribuir o presente de Kuriac, Slavoj Zizek, recomendando-lhe a leitura de um livro que adquiri em Londres há 30 anos,intitulado Jesus and The Politics Of His Days, de Ernst Bammel e C.F.D. Moule, uma coletânea de ensaios escritos por diversos autores. Uma dissertação de E. Bammel, com o sugestivo título Jesus As A Political Agent In A Version Of The Josippon, retrata o Nazareno sofista como um agente secreto, infiltrado na Palestina, a serviço dos romanos. Uma monstruosidade sobre outra! Kuriac é de veneta. Costuma fazer constantes e bruscas mudanças de pato para ganso. De repente, ele me envia um cogito com o nome A Monstruosidade da Parrésia: A Putrefação Em Vida, assim descrita por ele: 'Tinha o semblante e a aura de um anjo, todavia comportava-se como uma vagabunda decaída, sem o menor amor próprio, despudorada, sem qualquer resquício de respeito por si, inescrupulosa por convicção, rasteira por luxuria, desclassificada por optação, de alma lúgrebe e doentia; a personificação da humilhação de caráter, ou plena ausência deste, a escória da chandala da fêmeas, navegante de um mar de chorume.' De quem você está falando Kuriac? De uma pobre criatura que vem tentando extorquir um jogador de futebol? Ele me diz que ela é uma puta, uma upgrade de outra que não teve a mesma sorte de chantagear um cara inocente e de boa índole, e virou ração de cachorro! Até a sinistra Melisandre se escadaliza. Quanta monstruosidade! 'Hen syndrorro, oños. Hen ñuqir, perzys. Hen morghot, glaeson.' Da escuridão, a luz. Das cinzas, o fogo. Da morte, a vida. E Kuriac completa: Da monstruosidade ao direito à preguiça, ao egoísmo e ao desprezo. Há monstruosidades no mundo, mas não concordo com tudo que Kuriac diz: não sou egoísta, nem preguiçoso, nem do tipo que despreza o ser humano. Aliás, na situação em que me encontro, minha humildade já assumiu, mesmo que tardiamente, o controle de tudo.