domingo, 23 de junho de 2024

TRANSLITERAÇÃO DO SENTIMENTO

Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Não me engano com palavras a não ser em sonhos, por isso quando me falaram de Valedana Moreira eu sabia que não existe um município com este nome, mas ele é muito parecido com outro de uma cidade verdadeira e foi relativamente fácil para eu identificá-la, auxiliado pelo conhecimento que tenho da mania de se cometer frequentes lapsos de leitura, fala e audição em sonhos. No entanto, em mim, esta mania não se fixou como uma perturbação permanente da memória em que as mesmas palavras são sempre lembradas fora do seu significado exato. Eu cometo estes enganos involuntários em situações únicas que nunca se repetem, e eu mesmo os reconheço e os corrijo. Muito peculiar é o fato de eu cometer tais erros inconscientes não apenas por simples transliteração, mas por acréscimos de letras a uma palavra, mudando-lhe o sentido, mas sem subtrair suas letras originais e sem alterar a ordem das mesmas. Certa vez, enquanto conversava com uma freira, subitamente chamei-a de enfermeira por engano. Eu havia acrescentado as letras e, n, e , m à palavra freira, sem alterar a ordem de seus vocábulos. Freira é um substantivo que cabe dentro de outro, enfermeira, sem alterar a ordem das letras de ambas: enfermeira. No caso da cidade em questão que tinha um nome composto, foi acrescentada apenas a letra n à primeira palavra e a ela também se agregou a preposição e a primeira letra da segunda palavra. Assim, o verdadeiro nome da cidade, Vale da Amoreira, foi transliterado para Valedana Moreira. O incidente com a freira ocorreu durante minha passagem pela Inglaterra medieval. Eu estava perdidamente apaixonado por uma jovem de 18 anos, e queria casar-me com ela. A moça de olhos meigos também gostava de mim, mas ela já tinha decidido tornar-se uma freira antes de me conhecer. Tentei várias vezes demove-la desta ideia, sempre em vão. Ela entrou para um convento e me foi permitido visitá-la uma última vez para me despedir e nunca mais vê-la. A madre superiora, de cara fechada, abriu os enormes portões do castelo onde se abrigava o mosteiro, e foi ela quem me advertiu que seria a última vez que eu adentrava aquele majestoso palácio rodeado de frondosos e imensos jardins. Fui conduzido a uma antessala ainda no piso térreo. Aguardei alguns minutos e logo ela apareceu já vestida de freira. Seu rosto com cabelos cobertos continuava lindo, e seu olhar plácido e comovido com minha desesperação. Nosso diálogo foi curto, sofrido e inesquecível. Ela disse-me que também me amava, mas que naquela vida ela tinha escolhido servir a Deus. Repeti várias vezes a ela que havia várias maneiras de servir a Deus. E ela se limitava apenas a me olhar com compaixão. Nossa conversa transcorreu em português o tempo todo. No momento em que me preparava para esbravejar mas você não precisa ser uma freira para servir a Deus, eis que, sem perceber, falei em inglês but you don’t have to be a nurse to serve God. Em seguida, a madre superiora interrompeu nosso diálogo dando-o por terminado. Vi minha amada saindo, olhando para mim com um sorriso feliz e dizendo adeus. Fui escoltado para fora do castelo e a madre superiora reiterou: não quero vê-lo aqui nunca mais. No dia seguinte, pela manhã, me dei conta do erro que cometi. Ao invés de dizer you don’t have to be a nun to serve God (você não precisa ser uma freira para servir a Deus), eu disse you don’t have to be a nurse to serve God. (você não precisa ser uma enfermeira para servir a Deus). Isso me pareceu incrível porque tenho completo domínio da língua inglesa e falar inglês para mim é o mesmo que falar português. Portanto, eu jamais confundiria a palavra nun (freira) com nurse (enfermeira). No estado onírico, eu cometi uma verdadeira transliteração que se define como a representação dos caracteres de um vocábulo por vocábulos diferentes no correspondente vocábulo de outra língua. Comparada com a relação entre as palavras freira e enfermeira descrita acima, minha transliteração em inglês suprimiu uma letra, o n de nun, e acrescentou outras três,rse de nurse. Na pronúncia não houve um aumento porque as duas palavras em inglês são monossilábicas, mas na escrita houve um aumento de três para cinco letras. Mesmo sabendo que tudo é possível num sonho, continuei intrigado com a transliteração. Lembrei-me, também, que na noite anterior eu assistira ao filme Lady Jane, a jovem rainha inglesa que reinou por apenas onze dias e foi decapitada. Talvez, pensei, tenha sido esse filme que me remeteu para a Inglaterra medieval num sonho. O mais estranho ainda estava por vir. Na semana seguinte ao sonho não consegui trabalhar. Todas as manhãs quando me levantava e me lembrava do sonho passava mal. Faltei ao trabalho a semana inteira. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo comigo. Por isso não queria nem mesmo ir a um médico porque não saberia dizer a ele o que eu tinha. Minha ex-esposa, ex-católica convertida ao espiritismo, recomendou-me tomar um passe num conhecido centro espírita onde eu fiz um grande amigo. E na sexta-feira lá fui eu falar com meu saudoso amigo espírita que partiu há mais de uma década. Envergonhado, contei-lhe tudo: o sonho, o filme, o mal estar, minhas faltas no emprego. Serenamente, ele disse-me que eu havia voltado a uma vida passada que me causou um enorme sofrimento e acrescentou: este sofrimento termina hoje, agora mesmo. Ele me deu um passe e, fazendo um trocadilho, meu mal estar despareceu como num passe de mágica. Voltando ao trabalho na outra semana, eu ria de mim mesmo, sentindo-me ridículo com o mal estar que me fez faltar ao trabalho na semana anterior. Este episódio levou-me a fazer muitas reflexões. Lembrei-me que há muito tempo atrás, minha filha mais velha teve muitos problemas entre os sete e os dez anos. Por respeito a ela, não vou revelar que problemas ela teve na infância. Sua mãe, minha ex-esposa, recorreu a todos os possíveis tratamentos. Mãe que é mãe vai até o inferno se for preciso para ajudar um filho. Ela ainda não era espírita, mas por recomendação de um parente, foi feita uma sessão espírita dentro de minha casa. A médium ‘recebeu’ vários espíritos, todas mães italianas reclamando da morte de seus filhos na guerra. Ao final da sessão, a médium explicou que havia em minha casa um espírito perturbando minha filha e que ele já havia sido encaminhado e que minha filha iria melhorar. E, de fato, minha filha melhorou, como num passe de mágica. Naquela noite, o que mais me impressionou foi o que a médium falou a meu respeito. Disse ela que me viu todo estropiado esperando atendimento numa tenda no meio do campo de batalha numa guerra. Disse ainda que minha filha lá estava trabalhando como enfermeira e que eu lá morri antes de receber atendimento. A médium estranhou o fato de que dentro daquela tenda os feridos não estavam sendo apenas tratados. Os médicos pareciam estar fazendo algo além de um simples atendimento, algo parecido com um tipo de experiência. Esta reflexão levou-me a fazer uma experiência por conta própria: uma viagem astral. O quê? Viagem astral? Podem rir se quiserem, mas tenham em mente que quem aqui escreve não tem religião, é ateu de carteirinha e não acredita na vida após a morte, mas acredita na energia do pensamento, no inconsciente coletivo, na projeção da consciência para fora do cérebro durante o sono. Eu consigo, quando quero, projetar minha consciência para fora do meu corpo, sair por ai à noite, viajar para o passado e o futuro, conhecer pessoas novas, cidades e países onde nunca estive. Nem sempre consigo ir onde e quando quero, mas, às vezes, consigo. Então certa noite, saí de meu corpo, voando pela janela do segundo andar e resolvi ir à casa de meus pais num bairro vizinho. Lá chegando, notei que todos estavam acordados e preocupados. Minha filha mais velha aparecia como uma criança de colo que estava doente, e o pessoal na casa se alvoroçava à procura de um médico. Eu via todos na casa, mas eles não me viam andar no meio deles. Porém, para minha surpresa, divisei duas freiras, duas jovens morenas lindas de morrer, com túnicas roxas e uma enorme cruz branca estampada na frente. Elas lá estavam fazendo vigília, invisíveis aos olhos do pessoal da casa, mas me enxergavam, e olhavam-me com ar de reprovação como se estivessem me dizendo: sua pequena filha está doente e, ao invés de ajudar, você vem aqui para passear. E eu estava passeando mesmo, passeando num tempo passado quando minha filha ainda era um bebê. Fiquei encabulado, como alguém que foi pego em flagrante, então saí de fininho e voltei para minha casa. Eu sempre tive uma relação muito difícil com minha filha, principalmente depois de sua adolescência. Uma relação de medo que virou revolta e, finalmente, ódio e inimizade. Uma relação que translitera os sentimentos, que faz com que a fé tenha uma  expressão de fome em seu rosto. Foi com base nestas experiências e numa pintura retratando Lady Jane no momento que ela está sendo preparada para ser decapitada, que eu escrevi, como desfecho desses sentimentos transliterados as palavras: Minha querida donzela, Que zomba da realeza, Que lê Platão, Prometo que falarei com Deus, Quando você partir, Farás um pacto com Ele, Para salvar almas, E eu sacrificarei a minha, Prometo que voltarei a te ver, Mas não me reconhecerás, Farás um pacto com tua nação, Para salvar corpos, E eu sacrificarei o meu, Prometo que trarei você para junto de mim, Mas não me lembrarás, Faremos um pacto de sangue, Para salvar nossos tempos perdidos, Mas acabaremos inimigos.