segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

ANO 2446

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

A paisagem não era um esplendor, e a terra parecia um pouco desolada, com pouca vegetação, solo pedregoso e arenoso, como um sertão de pedras. Nosso guia turístico nos escoltava numa caminhada por lugares históricos e ecológicos. A ideia era praticar trekking com espírito de aventura, mas alguns lugares por onde passamos tinham aspecto inóspito. Eu deveria ser o único brasileiro num grupo de estrangeiros de diferentes países. Nossa excursão incluía escaladas. Logo surgiu uma colina, um tanto íngreme, e nosso guia gritou:
- Vamos lá, pessoal, força nas pernas!
A trilha era de chão batido, espaçosa, da largura de uma ruela. Uns caminhavam mais rápidos que os outros, mas o grupo não se dispersava. Subitamente, ouvi um alvoroço vindo de baixo. Olhei para trás e vi um urso subindo a ladeira a largas passadas, abrindo alas entre os humanos, esbravejando, ameaçando com patadas no ar e bramidos nervosos. Ao passar por mim, tive que sair de lado rapidamente para que ele não me arranhasse. O urso era jovem, esbelto, andava como um ser humano, e logo chegou ao alto do monte e sumiu. Poucos minutos depois todos nós chegamos ao cume e nos deparamos com uma visão magnífica: um antigo templo em ruínas que lembrava um pouco o santuário egípcio de Debod localizado no centro de Madri, sustentado e coberto por pesadas lajes de pedras semelhantes às encontradas em Stonehenge na Inglaterra. Todos estavam deslumbrados, mas ninguém fez qualquer comentário sobre o estranho urso que passou por nós. Imaginei que ele estivesse escondido dentro daquele monumento. O guia nos convidou a entrar. O interior era pouco iluminado e afigurava um salão central ladeado por várias reentrâncias em forma de labirintos. Enquanto admirávamos aquelas majestosas e rústicas paredes de rocha, começaram a surgir enormes ursos de todos os cantos, vindo para cima de nós, formando um círculo à nossa volta e fechando o cerco. Abraçados uns aos outros à espera da morte, ouvimos um urso gritar:
- Surpresa, humanos! Fechem os olhos!
Nunca imaginei que morreria assim, devorado por ursos que falam como gente. E o mesmo urso tornou a gritar:
- Agora já podem abrir os olhos!
Para nossa surpresa, surgiu, como num passe de mágica, uma enorme mesa cheia de comes e bebes, um verdadeiro banquete.
- Aproximem-se, humanos! Vamos nos confraternizar. Fiquem à vontade!
Incrédulo, vi homens e ursos bebericando, comendo e conversando! O guia juntou-se a mim e antes que eu pudesse indagá-lo um urso adolescente veio até nós. Ele tinha pendurado no pescoço uma corrente com a estrela de David. Amistoso e sorridente, ele solenizou:
- Espero que vocês estejam gostando da recepção. Não se acanhem. Comam e bebam à vontade. Embora todos nós pareçamos iguais, temos ideologias diferentes. Sintam-se em casa!
O urso foi cumprimentar outros humanos e eu, estupefato, fui puxado pela mão do nosso guia. Ele me levou a um canto do labirinto, apertou o dedo contra uma parede e portas abriram-se. Era um elevador. Ele entrou e me trouxe para dentro. As portas fecharam-se e o elevador começou a descer rapidamente. O guia nada falava e eu não sabia nem mesmo o que falar de tão pasmado. O elevador parecia estar em queda livre. Com a voz embargada, perguntei ao guia:
- Demora muito ainda para chegarmos à superfície?
- Já chegamos a ela. Agora estamos descendo ao subterrâneo.
Pela velocidade e o tempo decorrido imaginei que já tivéssemos descido mais de 200 andares. Finalmente o elevador parou. As portas se abriram, e surgiram diante de nós duas moças gêmeas, muito bonitas, com sorrisos simpáticos, olhando-nos com ternura. Elas tinham a pele mais branca que leite, cabelos lisos e negros, aparados na altura da nuca, a la chanel, e olhos negros e cintilantes. Vestiam um tipo de macacão, dos pés ao pescoço, um colante bem justo e apertado no corpo, aderente como se fosse a mesma pele da face clara e translúcida. E elas permaneciam diante de nós, sem falar nada, apenas sorrindo. Detive-me por vários segundos, hesitei e, então, arrisquei:
- Podemos entrar?
- Você perguntou se podem entrar e te respondo que sim, vocês podem entrar.
Saí do elevador e adentrei um vasto salão todo branco, tão estranho quanto às duas moças que se mantinham ao meu lado. Percorri o ambiente com os olhos rapidamente e tudo o que via era uma imensidão branca. Não atinava para nada e decidi, então, fazer uma pergunta mais arriscada:
- Que planeta é este?
- Você perguntou que planeta é este e eu te respondo que este é o planeta terra.
- Mas isso aqui não se parece com a terra! Vi ursos na superfície falando e se comportando como humanos e este ambiente em nada se parece com qualquer coisa que conheço. Este não é meu tempo, é?
- Você perguntou se este não é seu tempo e eu te respondo que este não é seu tempo.
- Em que ano estamos?
- Você perguntou em que ano estamos e eu te respondo que estamos no ano de 2446.
Fiquei completamente sem ação, sem saber o que fazer e o que mais perguntar. As duas moças mantinham seus olhos fixos nos meus, sem hesitar, sem piscar. Sentindo-me meio perdido, mas com um sensação de bem-estar incomum, resolvi fazer a primeira pergunta que me veio à mente:
- Posso dar uma volta por aí, para conhecer o lugar?
- Você perguntou se pode dar uma volta por aí para conhecer o lugar e eu te respondo que você pode.
Qualquer pessoa se sentiria incomodada com a maneira da moça sempre repetir minha pergunta antes de respondê-la, no entanto, estranhamente, eu achava isso natural. A moça tinha uma voz humana suave, falava com extrema delicadeza, sempre solícita e educada, e cada vez que respondia seus olhos denunciavam um notório e sincero interesse por mim e minhas perguntas. Pedi licença às duas moças e comecei a caminhar pelo ambiente. Logo percebi que havia várias moças idênticas transitando através daquele imenso recinto. Ele tinha assoalho, paredes, portas, janelas, teto, e móveis, mas não era possível vê-los à distância, no entanto eu sentia que tudo estava lá. Não era possível divisar contornos como cantos de paredes ou a altura do teto, mas, de uma maneira que não sei explicar, eu conseguia perceber as delimitações dos espaços. Tinha uma perfeita noção espacial da área que certamente se dividia em muitos ambientes separados. Depois de muito andar finalmente me deparei com algo sólido, uma parede com uma porta. Tudo branco. Só era possível enxergá-las estando bem próximo delas. Decidi abrir a porta e, no exato momento que eu ia colocar a mão numa especie de maçaneta, outra moça idêntica às outras gentilmente se colocou entre mim e a porta e abriu um irradiante e cativante sorriso.
- Me desculpe, não tive intenção de me intrometer. Só queria conhecer outros cômodos. Posso abrir esta porta?
- Você perguntou se pode abrir esta porta e eu te repondo que hoje você não pode, mas um dia  poderá.
- Então eu vou ser trazido de volta a este lugar, quero dizer, a este tempo?
- Você perguntou se será trazido de volta a este lugar, querendo dizer, a este tempo e eu te respondo que sim, você um dia aqui voltará, porém por livre e espontânea vontade,  da mesma maneira como aqui chegou hoje.
Agradeci a moça e achei que o melhor a fazer era voltar. Só neste momento me dei conta que meu guia não estava comigo. Olhei em todas as direções e lá num fundo indistinto vi meu guia recostado em alguma coisa sólida, talvez uma parede, com uma perna dobrada e a sola do pé escorada contra esta coisa sólida. Fui em direção a ele e quando me aproximei percebi que ele estava recostado na porta do elevador. Ele me olhou com um ar de motorista apoiado em seu táxi esperando seu cliente voltar. As portas do elevador se abriram, o guia entrou e com apenas uma olhadela pediu-me para entrar. O elevador começou a subir rapidamente. Olhei para o guia e perguntei:
- Me diga uma coisa. Essas pessoas daqui são todas assim? Lindas, branquelas, de cabelos e olhos negros?
- Sim, todas, mas algumas têm olhos coloridos, verdes, azuis, amarelos, vermelhos, cinzas, castanhos...
- E são todas gêmeas e clonadas?
- A maioria é, mas há híbridas também, não repetidoras, não questionadoras, adutoras da sua vontade de descer, entrar e ficar, de perguntar, de querer saber e aprender, de descobrir, partir, subir e compartilhar com seu tempo tudo o que você viu aqui. Elas são atemporais, não robotizadas, não controladas, humanadas na sua vontade de subir, entrar e ficar, de ouvir, de querer entender e respeitar, de confraternizar com os não humanos, como os ursos da superfície, de voltar, descer e esperar. Elas são acólitas, não anacrônicas, não icônicas, sincrônicas de seus desejos de subir, descer e igualar, de escrever, de querer transmitir e disponibilizar, de dividir, de aqui voltar um dia, descer de novo e desvendar tudo.
- Você é muito estranho. Sabe tudo sobre este mundo subterrâneo. Enquanto estivemos lá em baixo com aquelas mulheres clonadas você não demonstrou nenhuma surpresa e agora, com essa conversa estranha sobre descer, subir, ficar, voltar, está claro para mim que você é daqui, é um deles! Como você conseguiu me trazer aqui e por quê?
- Você assistiu ao filme DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS?
- Por que você responde minha pergunta com outra pergunta?
- Assistiu ou não?
- Sim, assisti. Faz muito tempo. Acho que foi em 1974. Por quê?
- No filme O PLANETA DOS MACACOS os símios dominaram a terra, escravizaram os humanos e os tratavam como animais. Na sequência, DE VOLTA AO PLANETA DOS MACACOS, os símios vivem na superfície, mas descobrem que há uma pequena população remanescente de humanos super inteligentes, que vivem debaixo da terra, e desenvolveram poderes psíquicos que aterrorizam os macacos. Eles controlam tudo e todos só com a mente.
- Já entendi. Você está querendo dizer que tudo isso não passa de um sonho. Que eu o criei a partir de imagens de um filme que ficaram retidas no meu inconsciente. É simples assim?
- E por quê não?
- E você, onde você entra nessa história?
- Você assistiu ao filme A ORIGEM? Este é bem recente, de 2010.
- Sim, assisti, e daí?
- Daí que uma pessoa pode fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas. Uma pessoa, como uma arquiteta, projeta um mundo num sonho e leva com ela várias pessoas para esse mundo. Uma delas age como seu guia e se incumbe de povoar o mundo criado pela arquiteta com pessoas de seu subconsciente. Você nunca se lembra como seu sonho começou. Você só se dá conta quando já está no meio dele. É por isso que, de repente, você surgiu no meio de um grupo de turistas guiados por mim.
- Quer dizer, então, que eu sou o arquiteto que fabricou este mundo do futuro e você é meu guia que o povoou com ursos e pessoas clonadas. Como isso é possível se eu nem te conheço na vida real. Como eu poderia compartilhar um sonho com uma pessoa que eu não conheço. Afinal de contas, quem é você?
- Depende do que você quer acreditar. Que tudo isso é um sonho ou que tudo isso é real. O elevador parou. Chegamos à superfície. Vamos descer e não nos veremos mais. Será como acordar de um sonho, nada mais. Uma última informação. As duas coisas são possíveis: fabricar seu próprio sonho e compartilhá-lo com outras pessoas e conhecer o futuro só com a mente através de um sonho espontâneo, não fabricado por você, mas pelo inconsciente coletivo que é patrimônio da humanidade. Quando você voltar aqui talvez se encontre com uma híbrida. Não se preocupe, ela estará te guiando o tempo todo!
- Então, me diga: estou sonhando ou tendo uma visão do futuro?
- Você está no futuro agora! 2446!
- E que negócio é esse de me encontrar com uma híbrida?
- Eu sou um mero servidor, dando uma de guia turístico para você e todas aquelas pessoas que mergulharam no inconsciente coletivo durante o sono e vieram parar aqui. Me pediram para levar somente você lá para baixo, não me pergunte por quê, e me disseram que da próxima vez você será guiado por alguém do topo da hierarquia deste tempo. Uma híbrida! Agora, me dá licença. Há mais turistas chegando.

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