Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
O Brasil masculino estava de ressaca. Eu e uma menor parcela da população feminina também. A seleção brasileira, patrocinada pela marca Topper da São Paulo Alpargatas S/A, acabara de ser deportada da Espanha por Paolo Rossi, Il Bambino d'Oro. Tele Santana, sempre sorridente e solícito, mesmo diante de uma decepção que parecia ser de proporção mundial, circulava pelas dependências do departamento de exportação da empresa, com a aura e a triunfal guirlanda de idealizador do futebol-arte, e autografava todos os pedidos. Em 1982, nenhum brasileiro imaginaria, nem nos mais dantescos pesadelos, que o verdadeiro holocausto de nosso hegemônico esporte bretão viria 32 anos depois, em nossas plenas terras de palmeiras e floresta tropical, onde cantam uirapurus e sabiás. As águias alemãs que aqui gorjeariam, entoariam nossos cantos canarinhos, bem mais melodiosos do que as aves toscanas naquele fatídico dia no Sarriá. Foi a última vez que padeci com nosso esporte mais popular, e, na esteira de minha purgação, pus fim a um sofrimento que encontrou indescritível consolo com a quebra de um jejum de muitos e angustiantes meses de emprego: eu estava de volta ao trabalho, e este seria o meu derradeiro na condição de empregado de carteira assinada. Não me deram muito tempo para me familiarizar com os produtos que eu deveria exportar, o que estava em perfeita contradição com a sucessão de meses que levaram para me contratar, desde o dia que respondi a um anúncio no velho Estadão. Em pouco mais de quatro semanas, fui despachado para nossos vizinhos do norte da America do Sul, da América Central e do Caribe, onde visitei lugares que deram arriscados e deleitosos contornos à minha primeira viagem àquelas bandas: as perigosas Bogotá e Cidade do Panamá, a medonha Zona Livre de Cólon, a sossegada Isla Margarita da Venezuela, a cordial e simpaticíssima Santo Domingo da República Dominicana, as paradisíacas Aruba, Curaçao e Barbados e, finalmente, o interessante e inesquecível Porto de Espanha, capital de Trinidad e Tobago. Este país que tinha, na época, menos de 1 milhão de habitantes, foi uma colônia britânica até 1962, e o inglês crioulo lá falado era e é, até hoje, bastante desafiador, mesmo para um nativo da Inglaterra. O drama pode ser sentido só com este exemplo: crowd (cráud)que significa multidão, soa como crow (crou) corvo. O representante comercial da empresa, um indiano, teve a cortesia de enviar seu motorista particular para me apanhar no aeroporto, e me levar ao luxuoso hotel Hilton, de cinco estrelas, quatro a mais que o meu salário. Ao entrar para fazer o check-in, setor da recepção para registrar-se e receber a chave do quarto, segundo o Sr. Aurélio, deparei-me com um mundaréu de homens falando alto, com a boca e as mãos, como os italianos. Ao aproximar-me, me dei conta que eles algazarravam em português brasileiro! Reconheci alguns rostos e identifiquei-me ao mais próximo, Adilson Monteiro Alves, sociólogo e um dos fundadores da Democracia Corintiana. Ao saber que eu trabalhava para o patrocinador do clube, foi logo me apresentando ao presidente, Waldemar Pires, ao técnico, Mario Travaglini, e convidando-me a juntar-me à comitiva do time e assistir ao amistoso contra a seleção de Trinidad e Tobago no dia seguinte, uma sexta-feira, dia 3 de Setembro de 1982. Meu primeiro encontro com o agente de vendas, completamente esquecido pela Alpargatas, foi decepcionante para ele, porque esperava que eu trouxesse a linha de calçados. Porém, eu era encarregado de vender somente produtos do setor chamado Resto: colchas de chenile e encerados. Nervoso e de nariz empinado, ele designou seu assistente para me acompanhar nas visitas a clientes, e recusou meu convite para assistir ao jogo do Corinthians à noite. Mal sabia ele, e jamais explicaria Deus, que, em pouco tempo, atingiríamos a misteriosa receita de mais de meio milhão de dólares anuais só com as antigas colchas Madrigal, num mercado menor que o bairro de Santo Amaro em São Paulo. Voltei ao hotel antes do pôr do sol. O calor era escaldante, como no verão carioca. Tirei o terno e a gravata, isso mesmo, você entendeu direito, esta indumentária me era imposta pelos meus superiores até nos desertos do Oriente Médio onde estive muitas vezes. De chinelo, camiseta e bermuda, fui para a área de lazer. Lá toda a delegação do Corinthians se concentrava. A maioria dos jogadores se divertia na piscina. Casagrande, com apenas 19 anos, era o brincalhão da turma. Adorava empurrar os companheiros na água. Sócrates não se misturava. Ficava na companhia dos dirigentes e da comissão técnica. Tirei um cigarro do maço de Hollywood e acheguei-me dele, recostado numa espreguiçadeira, segurando um livro, provavelmente de filosofia sobre seu xará. Mal puxei conversa e ele me pediu um cancerígeno. Perguntei:Você voltou a fumar? – para se preparar para a copa do mundo na Espanha, Sócrates absteve-se do tabaco por seis meses. Constatei, então, uma de suas marcas registradas: sua fama de arrogante. E o que você tem a ver com isso? Entornei o caldo de nosso quase monólogo ao pedir a ele para me falar sobre aquela partida contra a Itália. Não quero falar mais sobre isso. Ele me pediu para acender o cigarro e continuou lendo. Mais tarde, naquela noite, eu teria um verdadeiro diálogo com ele, mais amistoso, digamos, mas, para ser sincero mesmo, em circunstância anômala, na qual se inseria mais um de seus logotipos fora da cancha. Chegara a hora de ir para o estádio. Todos foram para seus quartos e desceram de calça e blusão de moletom da Topper. Três micro-ônibus nos aguardavam na saída do hotel. Embarquei num deles. No trajeto até o campo, os jogadores que estavam comigo vociferaram, alucinadamente, contra todos os transeuntes. Se todos eles fossem submetidos ao exame antidoping, seriam reprovados, e se naqueles tempos já vigorassem as atuais leis disciplinares impostas pelos mafiosos STJD, CONMEBOL, CONCACAF e FIFA, eles pegariam um gancho pesado. Não tive permissão para entrar no vestiário. A preleção do técnico aos jogadores era segredo democrático, mas pude adentrar o gramado com o time formado por Solito, Sócrates, Ataliba, Casagrande, Zenon, Biro Biro, Mauro, Daniel González, Alfinete, Paulinho e Wladimir, uma grande equipe que fez época no futebol. Quando eu me encaminhava para o banco de reservas, um homem, elegantemente vestido, veio ter comigo, falando um bom cockney do East End de Londres. Eu era o único que falava inglês, e fui, imediatamente, confundido com o chefe da delegação. O cavalheiro era o Presidente da Federação de Futebol de Trinidad e Tobago. Suas efusivas saudações e paparicos fizeram me sentir um cartola. Tal qual um político brasileiro em campanha à reeleição, ele me levou para dar uma volta em torno do campo, construído em 1980, e fez questão de me explicar, em detalhes, outras melhorias que ainda planejava fazer: a ampliação das arquibancadas, a troca do gramado e a construção de uma pista de atletismo. O Estádio Hasely Crawford era um pouco acanhado. Não me recordo do seu tamanho. Minha memória de 67 anos já não se refresca com tanta facilidade, e já manifesta lampejos de Alzheimer. Acredito que fosse muito parecido com o antigo Parque Antártica do Palmeiras, com capacidade para 27 mil pessoas. O presidente trinitino-tobaguiano massageou meu ego, ainda em busca de autoafirmação, ao me oferecer a tribuna de honra. Encabulada e educadamente recusei, explicando que, por ser o único a falar a língua da terra, precisava estar junto aos ‘meus’ comandados para eventuais traduções, especialmente junto ao trio de arbitragem e nas entrevistas para a imprensa local. Ele entendeu e até se desculpou. Sentei-me no banco ao lado do lateral Zé Maria, às vésperas de pendurar as chuteiras. O jogo foi apenas um treino para o Corinthians, que venceu por 8x2. O futebol de Trinidad era embrionário, amador, e somente em 2006 conseguiria vaga para participar de sua primeira copa do mundo. Os dois gols do anfitrião foram facilitados para retribuir a calorosa recepção que os corintianos receberam das autoridades e do público. Ataliba, recém-contratado junto ao Juventus da Rua Javari, foi cumprimentado por todos os jogadores ao fazer seu primeiro gol com o uniforme alvinegro depois de várias atuações sem sucesso. Nada como um saco de pancadas para se reabilitar. Além de dois gols e uma exibição a altura do craque que foi, com assistências inteligentes e liderança intelectual, Sócrates desfilou seu repertório de toques de calcanhar, sua marca registrada no adestramento da bola, uma marca visual da mesma maneira que as bandeirinhas se tornaram sinônimo da pintura de Volpi, como escreveu, inteligentemente, o talentoso Daniel Piza, por ocasião da morte do 'Doutor' em 2011. Havia apenas um repórter de campo brasileiro fazendo a cobertura do evento. Não me lembro se ele era da Gazeta Esportiva, do Diário da Noite ou da Revista Placar. Só sei que, a cada substituição, ele me chamava correndo junto ao mesário, para lhe explicar quem entrou no lugar de quem. Ao final da partida, o presidente da federação trinitina me abordou e me levou de volta ao hotel no seu carro. Sentado no banco de trás estava, nada mais nada menos que Juan Figger, uruguaio que se mudou para São Paulo em 1968, tornou-se rico e célebre por ser um dos maiores empresários de jogadores de futebol e promotores de jogos e torneios amistosos, e, segundo a imprensa, por praticar muitas atividades ilícitas: sonegação fiscal, evasão de divisas, falsificação de passaportes e influência na convocação de jogadores, por ele empresariados, para a seleção brasileira, com objetivo de valorizar o passe dos mesmos. Esse era o trabalho com o qual sonhei tanto: gerenciar esportistas, artistas e músicos. Em 1982, eu e um colega da Alpargatas planejamos um empreendimento que se tonaria uma realidade aqui somente nos anos 90: exportar jogadores brasileiros para a Europa e trazer bandas de rock britânico para apresentações no Brasil. Não executamos o plano, perdemos o momento, e outros ficaram com nossos sonhos. Juan, que organizou dois amistosos para o Corinthians em mares de céu azul caribenho, permaneceu calado o tempo todo. Já o presidente da federação, eufórico, delirava com ideias que ele queria deixar sob minha responsabilidade: um torneio em Trinidad, reunindo Santos, Corinthians, Palmeiras e Flamengo. De volta ao hotel, fui direto para o bar, sem nenhuma mágoa para afogar, simplesmente porque eu teria um fim de semana de folga e só voltaria a trabalhar na segunda-feira. Lá estava Sócrates, saboreando uísques, cervejas e outros baratos etílicos afins. Sentei-me ao seu lado e, desta vez, bebericamos juntos e jogamos muita conversa fora, literalmente, sobre todos os possíveis assuntos descartáveis, menos futebol. Sócrates estava, ainda, no primeiro de dez assaltos às malvadas, mas eu já estava meio grogue, tentando manter o equilíbrio, prestes a jogar a toalha. Os adversários do Corinthians tinham enorme dificuldade para acompanhar o Sócrates dentro das quatro linhas, mas era quase impossível acompanhá-lo na arte de ingerir as águas que os passarinhos não bebem. Fui salvo pelo gongo: foi anunciado o jantar que o hotel, ou a Federação Trinitina, ou não sei quem, ofereceu à delegação corintiana. Voltei ao meu apartamento, desabei na cama de sapato e tudo, e o quarto parecia enfeitiçado, girando como um carrossel. Contei poucos cavalinhos para ferrar no sono. Depois de um tempo imponderável, o telefone tocou. Passava da meia-noite. Quem era o filho da mãe que me ligou em plena madrugada de sábado, perguntaria o pai do bem sucedido corretor da bolsa de valores no filme O Lobo De Wall Street. Era tudo demais tudo de menos que outro representante comercial, outro indiano, da cidade de San Fernando. Nas poucas semanas que tive para me preparar para aquela longa viagem, ao triar as rumas de telexes sem respostas, encontrei dois agentes interessados nos produtos da Alpargatas. Acabei ficando com o esnobe do Port Of Spain, mas, por precaução, avisei o sanfernandino que eu estaria em seu país. Mas por que ele me procurou a esta hora? O inoportuno soube, pela televisão, que o médico Sócrates estava em Trinidad, e queria conhecê-lo Rodopiando pelos corredores, consegui chegar ao bar. E lá estava Sócrates novamente, jantado, e agora acompanhado de vários camaradas. Tive que tomar algumas doses de uísque com o pródigo de Gandhi, que era médico também, e não veio falar sobre negócios. Apresentei-o ao Sócrates, larguei os dois no balcão do bar conversando, não sei em qual língua, provavelmente em libras. Trotando em zigue-zague, rumei em direção aos elevadores. Ao passar pelo saguão, fui interpelado pelo Daniel González, caindo pelas tabelas, tentando dar uma entrevista a um canal de TV local. A jovem e bonita jornalista pediu-me para ajudar na tradução. Cada pergunta dela era respondida com impropérios aqui intraduzíveis, como, por exemplo, este belo eufemismo: quero levá-la para meu quarto para fazer amor. Sempre polido, eu dizia à moça que o Daniel e todos os corintianos estavam adorando o país. Mais jogadores, completamente embriagados, juntaram-se àquela baixaria, que eu trasladava para uma solicitude. Para me desvencilhar deles, tive que enganá-los com uma falsa e súbita indisposição estomacal, embora meu vômito implorasse para abrir a porta. Escorando-me pelas paredes, consegui chegar ao meu apartamento. Com as mãos trêmulas, coloquei o aviso de não perturbe na maçaneta do lado de fora da porta, tirei o telefone do gancho, e desmaiei na cama. Meu inconsciente cancelou todos os sonhos programados para aquela noite. Acordei depois das 15 horas, com uma retumbante dor de cabeça e, rebuscando chavões, na consciência. Lentamente, comecei a recobrar os sentidos e a rememorar o que se passara nas últimas 24 horas. Lembrei-me que, enquanto estava sóbrio, Sócrates me disse que eles teriam que levantar às 6 da manhã no Sábado para pegar um voo para Curaçao, onde jogariam um amistoso contra a seleção local no Domingo. Seleção de Curaçao? Impossível! O escrete desta ilha de encantos mil devia ser igual ao Íbis de Pernambuco, o pior time do mundo, que entrou para o Livro Guinness dos Recordes por ter conquistado a façanha de três anos e onze meses sem comemorar uma única vitória. Mas, contra um time encharcado de engasga-gato, talvez os curaçaoanos conseguissem uma vitória. Quase! O jogo foi 0x0, e o Corinthians deve ter se arrastado numa lombeira tão confusa como o papiamento, língua oficial das antigas Antilhas Holandesas, mistura de holandês, alemão, inglês, espanhol e português. Se os corintianos não se refizeram da bebedeira com um trago de bebida que cura, significado da palavra Curaçao, então eles provaram da típica bebida Curaçau (com U mesmo), feita com cascas de laranjas da ilha e cachaça de cana de açúcar da melhor qualidade da região. Lembrei-me, também, de ter explicado ao Sócrates que Cristovão Colombo batizou o país de La Isla de La Trinidad, uma óbvia referência à Santíssima Trindade Cristã. Mas os ameríndios locais chamavam a ilha de Terra do Beija Flor. Faz todo sentido. Afinal, dois humming birds adornam o brasão de armas de Trinidad. E Tobago, o que significa? Há tantas controvérsias sobre sua etimologia que prefiro não arriscar uma explicação. Melhor lembrar-me daqueles dias ouvindo a Enya cantar Caribbean Blue (Azul Caribenho): So the world goes round and round..., E o mundo gira e gira..., e eu completo: and so does my head, e assim também gira minha cabeça, while little colorful birds still hum in my mind, enquanto passarinhos coloridos ainda zumbem em minha mente, saudosa do grande Sócrates brasileiro, que partiu cedo demais.