quinta-feira, 2 de maio de 2024
MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO
Texto de autoria de AustMathr Viking Dubliner e Inglesa Luso-Chinesa com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
Meu amigo Zen, espero
que você não se importe de chamá-lo de brother depois de seus 14 anos de
afastamento, rompendo uma amizade de 20 anos. Somente no último dia 12 de
Setembro de 2014 descobri, por acaso, na internet, que você morreu no dia 16 de
Fevereiro deste ano. Acho que não foram poucas nem simples as razões que o
levaram a se afastar, e. creio, que conheço algumas delas, mas somente você pode
dizer quais foram os verdadeiros motivos. Na última vez que tivemos um encontro
formal, na minha casa, por ocasião de minha festa de bodas de prata com minha
ex-esposa em Abril de 2000, você estava muito bem, depois de ter se curado do
alcoolismo. Estava magro, esbelto, elegante, só tomava refrigerante e vestia
roupas incrementadas, próprias do gosto que temos em comum: calça jeans,
camiseta preta e um colete descolado. Mas naquele dia eu já desconfiava que você
estava de partida, pois isolou-se no quintal da casa e mal pude conversar com
você. Talvez você não se sentisse à vontade sem a presença de meu ex-irmão, seu
amigo antes de me conhecer. Como você deve ter sabido, através da minha
ex-família que me lançou no mercado da parentela como astro do mau-caratismo,
dois anos mais tarde minha vida deu uma guinada de 360 graus. Divorciei-me e
logo em seguida casei com a Cecília. Moramos um ano em Belo Horizonte, lá
tivemos a Ana Carolina, e em Outubro de 2003 voltamos para São Paulo. No
primeiro semestre de 2004, eu passeava com a Cecília e a Ana no Shopping Center
Norte e, de repente, topei com você e a Fátima numa casa de sucos. Ao nos
abraçarmos, pela primeira vez você deixou de ser espontâneo e proferiu uma frase
rebuscada:
'Ah, o Alceu é uma
pessoa que não dá para esquecer.'
Mas você tinha me
esquecido e eu não estava chateado com isso. No entanto, você me surpreendeu com
sua resposta à minha pergunta sobre como andava sua saúde:
'Alceu, nunca imaginei
que depressão fosse assim tão terrível. Nunca imaginei que um dia ficaria
semanas deitado numa cama, sem tomar banho, sem trocar de roupa, sem escovar os
dentes, e fazendo um esforço hercúleo para poder ir ao banheiro.'
Na hora lembrei-me do
dia em que sua mãe morreu. Você estava indignado com minha falta de consideração
por não ter ido nem ao velório e nem ao enterro. Você perguntou ao meu ex-irmão:
'Por que o Alceu não
veio?'
Ocorre, fratello, que
naqueles dias minha depressão, que nasceu e vai morrer comigo, tinha atingido o
auge do sofrimento humano, a dor da alma, e como você eu estava deitado num sofá
havia muitos dias, sem chuveiro, sem creme dental, com o mesmo pijama encardido,
comendo e engordando como um porco, e me arrastando para chegar ao vaso
sanitário. Nunca te contei isso porque você não iria acreditar e, como você, eu
também não gostava de me justificar. Como sempre fiz, não por mera formalidade,
mas por afeição mesmo, anotei num papel meu novo endereço e meu novo telefone e
fiquei esperando você aparecer em casa, como nos velhos tempos. Mas eu sabia que
nunca mais o veria. Para falar a verdade, não sentia saudades de você. Só falta
de nossos encontros aos sábados, desde o meio da tarde até além da meia-noite,
vendo vídeos e ouvindo rock britânico, jogando conversa fora e bebendo todas:
vodca, uísque e cerveja, e é por isso que a maior parte dos nossos papos
acabavam na lata de lixo. Obviamente, se estou escrevendo sobre você e para você
é porque sua morte deixou-me, no mínimo, triste, e porque quero prestar-lhe uma
homenagem em agradecimento por você ter me concedido o privilégio de sua amizade
por duas décadas. Mas não espere de mim a falsidade das pessoas que costumam
elogiar à exaustão uma pessoa só quando ela morre. Sei que você teve uma
juventude traumática e que nunca gostou de falar sobre isso. Foi meu ex-irmão
quem me disse que quando você fazia nosso antigo científico do ensino médio no
GEPEF em Jaçanã, onde também estudei, você já tinha nobres ideais e se engajou
no movimento estudantil contra a ditadura militar. Você foi detido, interrogado,
liberado, mas perseguido e vigiado durante dez anos. Todas as manhãs quando você
saía para trabalhar, sempre havia um homem do outro lado da calçada te
observando. E às vezes até dentro do ônibus que você tomava. E quando voltava
para casa lá estava do outro lado calçada outro homem de olho em você. Foi
também meu ex-irmão quem me disse que você queria ser médico. Tentou o
vestibular três anos seguidos, mas não conseguiu passar. Talvez tenhamos perdido
um grande médico, mas ganhamos um extraordinário jornalista. Eu também queria
ser jornalista como você, mas desisti por medo e covardia. Tinha receio de
enfrentar um vestibular com provas de ciências exatas, matemática, física e
química. Então, simplesmente escolhi um vestibular que tivesse ciências humanas
com maior peso nas notas. Fiz faculdade de Cultura, Língua e Literatura
Americana e Britânica e depois Administração de Empresas na PUCSP, a mesma onde
você fez jornalismo. Daí que ao final dos anos 70 estamos formados e trabalhando
e vamos nos conhecer através de meu ex-irmão. Durante nosso primeiro encontro eu
estava obcecado com minhas pesquisas sobre discos voadores e torrei seu saco por
mais de uma hora contando histórias sobre os misteriosos UFOs. Qualquer pessoa
teria evitado um chato como eu para sempre, mas você não o fez, e não sei
porquê. Talvez porque você descobriu que tínhamos algo em comum, como você tinha
com o meu ex-irmão: a música, mas não qualquer uma: o rock, mas não qualquer
um: o britânico e a Santíssima Trindade: o Pai (Beatles), o Filho (Rolling
Stones) e o Espírito Santo (The Who). Apesar da relação de parentesco entre Pai
e Filho, ninguém era cria de ninguém. Cada um inventou seu próprio estilo, e
cada um de nós tinha sua banda favorita. Cada um de nós tinha seus problemas e
suas carências. A sua percebi logo no início dos anos 80, quando você ainda
trabalhava na prefeitura de São Paulo. Na tarde de um dia de semana você ligou
da prefeitura para minha casa e eu atendi:
'Pô, Alceu, você
esqueceu de mim? Não liga mais para mim? Não quer mais me ver? Vamos nos
encontrar, pô!'
Você era solteiro e
morava com seus pais e eu não tinha seus telefones. Quem os tinha era meu
ex-irmão. Então te convidei para vir à minha casa no sábado, para a festa de
aniversário de uma de minhas ex-filhas do meu primeiro casamento. Era uma festa
só para crianças, mas você veio e juntos tomamos de tudo, menos refrigerante. Em
descompensação, te flagelei como na paixão de cristo. Quantas vezes te obriguei
a assistir ao mesmo vídeo do show do The Who de 1982? Perdi a conta. Não sei
como você me aguentava. Meu ex-irmão contrabalançava as coisas e colocava vídeos
de shows do Rolling Stones. Era divertido quando você me provocava.
'Alceu, o The Who é
bom, mas os Stones são imbatíveis.'
Minha vantagem era ter
o melhor baixista e o melhor baterista do mundo, a cozinha da banda e, para
piorar, um compositor à altura de Lennon. Em nossos encontros nunca rolou música
brasileira, mas sei que você gostava, e muito. Quando você pegava no violão,
você tocava e cantava bem, sempre bossa nova, às vezes Jorge Ben Jor, e às
vezes, radicalizava com músicas do ‘tremendão’. Você nunca se arriscava a tocar
Beatles, Stones e The Who como eu. Às vezes você tinha acessos de loucura como,
por exemplo, me dizer que a bossa nova foi a maior revolução na história da
música no mundo. Toda pessoa super culta e inteligente como você tem um pouco de
louco, embora exista por aí muita gente que é burra e doida ao mesmo tempo. Até
meu pai sabia que foram os Beatles que revolucionaram e reinventaram a música e
mudaram o mundo. Até o Pete, que ficou careta depois que criou a obra prima
Tommy, surtou ao responder a uma pergunta sobre os Beatles: ‘Eles são iguais ao
Herman Hermits’. E o repórter comentou: ‘Por favor, Pete, volte a beber e a se
drogar’. Antes dos Moptops só havia Mozart, Beethoven, Bach e outros gênios da
música clássica. E cá entre nós, bossa nova é música para boi dormir, para gente
velha que pega no sono sentado jogando dominó. E nós não somos velhos? Já
passamos dos 60! Mas este terquijo ainda tem dentro dele o mesmo jovem de 20
anos, rebelde, radical, ingênuo e cada vez que ele vai a Londres sempre traz
novidades britânicas, novas bandas de rock formadas por garotos de 18 anos. Não
sei que estado de espírito você levou consigo quando partiu, mas sei o que você
deixou: um competente trabalho editorial no jornal da TV Bandeirantes: uma
verdadeira revolução no telejornalismo esportivo quando você assumiu o comando
do programa Vitória na TV Cultura e colocou somente nosso rock como música de
fundo, algo que a Rede Globo copiou de você e usou no programa Esporte
Espetacular como se fosse ideia original dela. E não foi por isso que você
recusou um convite para trabalhar para ela, mas porque você a achava hipócrita e
manipuladora da opinião pública. Mesmo assim, quando o Serginho Grossman veio
lhe pedir um conselho sobre se deveria aceitar ou não um convite para trocar o
SBT pela Plim-Plim, você, percebendo nos olhos dele o alto salário que lhe fora
oferecido, simplesmente respondeu:
'Vá em frente, Sérgio,
faça o que lhe dá prazer!'
Como esquecer as vezes
em que você me dizia:
'Alceu, no próximo
domingo vou abrir o programa Vitória com a primeira faixa do álbum Tommy do The
Who, especialmente para você?'
Como esquecer o dia
que você fez um programa especial sobre Eric Clapton em visita ao Brasil e
enviou a equipe da Cultura à casa de meu ex-irmão para nos entrevistar na
condição de fãs deste grande músico britânico. Como esquecer a entrevista
histórica que você fez com o Pelé quando ele completou 50 anos? Quantas pessoas
sabem (ou fingem não saber) que a revista Veja, nos seus áureos tempos, lhe
concedeu o prêmio de melhor tele jornalista e produtor pelo seu trabalho
original e inteligente? E só eu conheci a sua dignidade e integridade quando
pediu demissão da ESPN Brasil porque lhe pediram para bater de porta em porta
nas empresas para encontrar patrocinadores para seu programa.
‘Olha aqui, José
Trajano, este não é meu trabalho, não é minha função, sou jornalista, por isso
estou caindo fora. Isto vai ser bom para mim e para você também’.
Nunca fui inteligente,
mas também tinha meus acessos de loucura. Certa vez, quando elogiei demais a
banda britânica Cocteau Twins, de quem tenho o repertório completo, você me
gozou:
‘Por que você não
divide uma quitinete com eles?’
Que é isso,
companheiro? Eles criaram seu próprio estilo, mesclando psicodelismo com sons
celestiais e rock áspero, nada comercial. Quer saber de uma coisa, pouquíssimos
músicos são capazes de compor uma canção como Fifty-Fifty Clown, tão complexa
para os amantes do poeta Jean Cocteau, como Strawberry Fields Forever de John
Lennon foi para os Fab Four. Há outras reprovações suas que aceitei de bom
grado. Nos anos 90 andei me envolvendo com espiritualistas e, como de costume,
te aporrinhei mais uma vez, sempre sob seu olhar de desaprovação, e acrescentei
que eles, pelo menos, faziam caridade, formando grupos todos os fins de semana
para levar alimento e roupas aos moradores de rua.
‘E daí, Alceu?’
Bem daí que ao menos
eles tinham a consciência tranquila.
‘Que consciência,
Alceu’?
Então me toquei. E
como seriam suas vidas noite adentro ao relento, e durante o dia inteiro sob sol
escaldante, frio e chuva, sem nenhuma perspectiva, sem um lar? Percebi, então,
que meu trabalho de entrar em favelas para fazer triagens de famílias que iriam
receber cesta básica durante um ano era uma tremenda cretinice. Eu não dava
peixe e nem ensinava a pescar. Era muito cômodo esperar que os pobres viessem a
mim de longe para buscar uma cesta de alimentos. Eles voltariam para seus
casebres de madeira e de chão de terra, sem banheiro, urinando e defecando nos
fedorentos esgotos a céu aberto, enquanto eu voltaria para casa de carro,
deitaria confortavelmente num sofá, e assistiria TV a cabo, petiscando e
bebericando. Só para mim você contou histórias tão íntimas.
‘Alceu, eu fiz algo
diferente há muito tempo, num pequeno convento de freiras católicas que deixavam
o hábito de lado, vestiam jeans, tênis e camiseta, pegavam ônibus e iam de
encontro aos pobres, não para lhes dar alimento e roupas, mas para ajudá-los a
construir uma vida. Alceu, você precisa conhecer mais gente.’
E precisava mesmo.
Estou falando de um Zen cristão? Não! Até onde sei você é ateu como eu e, além
de falarmos de música, tínhamos altos papos sobre política, filosofia,
sociologia, antropologia e até psicologia – sorry por meu descalabro, nunca
esqueço quando você me disse que comeu sua terapeuta em cima da mesa dela. E
você não escondia sua simpatia pelo regime socialista dos soviéticos e cubanos.
‘O povo não deveria
gastar dinheiro com saúde, educação, habitação, transporte e nem alimentação.
Isso é obrigação do governo.’
E você tinha ojeriza
aos imperadores americanos que estão a mais de um século à nossa frente, não só
em tecnologia, mas também em moralidade. Mas é claro que eles não são santos.
Ninguém é santo neste planeta, nem o papa, nem o rabino que afanava gravatas de
grife em Miami, nem o Dalai Lama e nem Madre Tereza. Você chegou a ouvir falar
de suas ‘noites escuras’ quando, já na velhice, ela colocou em dúvida a
existência de Deus? Oras, dirá você, ser ateia não a transforma numa pessoa
menos caridosa. E você sempre teve razão: um ateu é muito mais útil que um
religioso. Seu talento é proporcional à sua modéstia. Você nunca falou de si
mesmo para ninguém. E quando descobri, por acaso, que você tem uma página no
Facebook, ao contrário de muita gente de TV, jornal e revista que se acha uma
celebridade, você jamais postou o que você fez, o que faz e o que vai fazer,
jamais escreveu sobre tudo que você realizou na sua carreira de grande sucesso,
jamais postou onde você esteve e onde estará, jamais disse quem você é. Você
nunca foi aparecido, nem materialista, nem ambicioso. Nunca se vendeu por
dinheiro. E deixou o estrelismo contagioso das grandes emissoras para ganhar
menos e trabalhar em emissoras desconhecidas, como a TVT, seu penúltimo emprego
e, antes de morrer, o SESC onde você estava realizando um projeto de música
instrumental brasileira. Lembra-se quando, numa de nossas bebedeiras, lhe
perguntei: ‘Vamos escrever um livro em parceria?’ E você, com aquele sorriso de
um canto da boca, retrucou:
‘Alceu, você precisa
parar de beber.’
Não sei se você
referia-se somente à minha presunção ou à sua humildade também. Escrever um
livro é tão fácil como juntar letrinhas, como você dizia. Difícil é ter uma
grande ideia como Ulisses de James Joyce, A Clockwork Orange de Anthony
Burguess, 2001: A Space Odyssey de Arthur Clarke, 12 Monkeys, filme inspirado
no curta-metragem francês La jetée, de Chris Marker. Enfim, o fato é que já
escrevi alguns livros que serão condensados num só chamado EM ALGUM LUGAR NA ESPÓRA DE ÓRION. Um deles, chamado Vale Da Amoreira, é promissor. Inspirei-me numa de minhas experiências extrassensoriais, e reservei um lugar
nele para você. O narrador diz que Tilly, personagem coadjuvante, conheceu você
e ele lhe pôs o apelido de Mensageiro da Enganação. Isto não é uma crítica ou
uma ofensa a você, mas apenas uma gozação, porque continuo sendo um gozador como
você. Eu (e outras pessoas de meu convívio que você conheceu) achava engraçado o
hábito que você adquiriu de marcar encontros, não comparecer e nem se
justificar. Nunca fiquei chateado com isso, apenas lamentava ter perdido mais
uma oportunidade de desfrutar de sua boa companhia. A ideia para este apelido
veio de um livro que li em inglês, chamado MESSENGERS OF DECEPTION, do cientista
francês Jacques Vallée, com quem conversei na NASA nos EUA. Este livro foi mais
tarde traduzido no Brasil com sua alcunha, MENSAGEIROS DA ENGANAÇÃO, e o achei
apropriado para nós dois, porque somos todos ‘Deception Messengers’, ‘Midnight
Ramblers’, mas não daqueles serial killers como os famosos ‘Boston Stranglers.’.
Em todos os textos que escrevo sempre incluo uma música, porque, como você sabe,
aquele grande filósofo que nós dois tanto admiramos escreveu que sem música a
vida seria um erro. Por isso até hoje não entendo como os gregos da época
clássica, do século de Péricles, escreviam coisas tão inteligentes sem poderem
se inspirar nas músicas que temos hoje. Não é à toa que eles são considerados os
mais inteligentes deste planeta, o berço de nossa civilização ocidental.
Portanto, estou incluindo um vídeo de sua banda favorita, os Rolling Stones. A
música que escolhi é de um show ao vivo quando eles estavam no auge no final de
nossos gloriosos anos 60. Tenho certeza que você venderia sua alma ao diabo se
ele pudesse te levar para assistir àquele show. Resolvi incluir uma outra música
que você vai achar um pé no saco como a bossa nova é para mim. Ela não é muito
boa, mas, enigmaticamente, ela traduziu meu estado de espírito enquanto escrevia
este texto e me lembrava de nossos tempos juntos. Talvez ela seja apenas mais
uma de minhas muitas carências. Mande um abraço aos nossos ídolos: os seus:
Brian Jones e Jimi Hendrix; os meus Keith Moon e John Entwistle; e nossos
unânimes: John Lennon e George Harrison. Até breve, se você ainda quiser voltar
a ser meu amigo.
São Paulo, Setembro de
2014.
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