sábado, 25 de fevereiro de 2023

A DEUSA DA ÁGUA FRIA


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


O bairro da Água Fria é uma pequena galáxia situada no quadrante norte do universo de São Paulo. Seu núcleo é denso, um mar de vida singrado pela avenida homônima, que começa lá em cima, no alto de Santana, onde também começa a Avenida Nova Cantareira, e termina, de novo, lá em cima, no Barro Branco, aonde também chega a mesma Avenida Nova Cantareira. Só mesmo as dobras da teia do espaço curvado pela massa humana, pelo asfalto e pelo concreto podem explicar os encontros, desencontros e reencontros destas duas avenidas pertencentes a bairros distintos.
 
 
De 1959 a 1975, eu morei na ponta de um dos tênues braços espiralados deste pequeno aglomerado. O sistema solar onde eu morei tem um nome peculiar: Corneteiro Jesus. Todos os seus habitantes, desde os mais antigos até os de hoje, chamam-no, erroneamente, de Corneteiro de Jesus, fazendo os sistemas vizinhos pensarem que o nome se refere a um anjo que anuncia o retorno do mitológico discípulo do João Batista com uma trombeta. Jesus era um soldado do quartel do Barro Branco que, segundo a lenda, nunca  deixou de cumprir seu dever uma única vez sequer durante o seu tempo de serviço: soar sua corneta todos os dias às 5 horas da manhã para acordar o regimento.
 
 
Um sistema vizinho, a Rua Albuquerque de Medeiros, apelidada de Mombuca, era o nosso maior rival, ou melhor, rival somente da garotada no futebol. As teimas eram tiradas num território inexplorado e desolado, além dos limites da galáxia, chamado Carne Seca, considerado um campo neutro, mas, na verdade, era mesmo um reduto distante dos Mombuqueiros e dominado por eles. Hoje, imaginem vocês, o famigerado Carne Seca deu lugar ao refinado bairro Jardim França.
 
 
Mas o meu sistema não vivia só da rivalidade com a Mombuca. Tinha muita tradição e muita história. Jogos olímpicos eram disputados todos os anos, de Janeiro a Dezembro, à maneira dos Gregos, só pelos machos, mas não desnudados, enquanto as fêmeas tinham permissão para assistir só a alguns poucos jogos e de longe. Tinha época certa para cada tipo de modalidade: o jogo de botão com tampas de relógios que o saudoso Tio Chico trazia da famosa Casa Castro na Praça da República; os rachas de futebol no asfalto, com bola de borracha que ganhava a forma perfeita quando furava; o jogo de taco que, ao contrário do baseball americano, não permitia jogadores e assistentes tirarem uma soneca enquanto o prélio de 2 contra dois transcorria; as bolinhas de gude que estecavam outras para fora do triângulo, matavam palmo a palmo e a queima-roupa e se encaçapavam nos a boxes sob a terra; o roda pião na cela que cravava a couraça de madeira com um prego; a caça aos quadrados com cortante e a humilhação do adversário com a captura de seu papagaio em pleno ar; a caça ao balão para não ficar pagão, a guerra de estilingue com munição de mamona que ardia mas não matava; o jogo do abafa com figurinhas repetidas, desgastadas e descartáveis; a corrida de carrinhos de rolimã ladeira abaixo e muita ralação nos joelhos; o passeio de patinete, movido pelos pés como no tempo dos Flintstones. Estranhamente, as artes marciais eram sempre praticadas à noite, e sem a violência dos dias atuais: a mana mula e seus castigos pictóricos ao muar sorteado: amassa tomate, um bife e um batata, cortar salaminho, levar o burrinho para beber água, bombeirinho. Finalmente, balança caixão, uma fileira curvada, apoiada dorso a dorso, que recebia um tranco de dobrar a coluna, como Zorro saltando das alturas e caindo montado em seu cavalo.  Era estranho também que somente à noite os meninos se enturmavam com as meninas, e com elas praticavam alguns esportes amadores meio efeminados: amarelinha, passa-anel, cobra-cega e queimada. No entanto, até onde sei, não foi em razão do relacionamento com estas flores que algum cravo se tornou rosa. 
 
Já era época de acasalamento para os garotos, mas para as garotas eram apenas tempos de flertes, e, para mim, flertar era enviar um bilhetinho e, com sorte, conseguir um aceno de mão delicada à distância. Isso mudou com a inesquecível Márcia, que morava noutra galáxia, chamada Jardim São Paulo, e comigo estudou noutra ainda bem maior e mais distante, chamada Jaçanã. A Márcia me ensinou a namorar, a beijar e a me fazer imaginar o que eu poderia tentar com as três beldades mais cobiçadas do meu sistema. A Tânia era a mais provável, a mais liberal, aquela que, dizia-se, gostava de mim, mas ela raramente se aventurava além dos limites de seu planeta, onde ela nunca me recebia sozinha, mas só acompanhada de outras amigas. A Maria parecia impermeabilizada pela frescura e arrogância. Sempre pensei que ela usava estes escudos como mecanismo de defesa para sua insegurança. Enganei-me. Na verdade, ela era exigente e muito autoconfiante. A Lúcia era recatada demais. Ela parecia estar se preparando para entrar num convento de freiras. Enfim, jamais consegui arrancar um simples beijo, nem do tipo selinho, de qualquer uma das três. Pensei, então, que eu só fosse encontrar outras encantadoras alienígenas como a Márcia fora de minha Galáxia nanica.
 
 
Mas um dia, surgiu uma nova habitante nas imediações da Corneteiro. Uma garota linda, de 18 anos, dois a mais do que eu, mas com um olhar penetrante e sensual de mais de 21. Nem parecia  ser da minha espécie de tão adorável e atraente. Parecia uma deusa. Mesmo com toda aquela formosura, era humilde e discreta. Era pobre e precisava trabalhar para ajudar em casa, e logo arrumou um emprego na farmácia Santa Luzia, na movimentada Avenida Água Fria. Ela fixou residência perto da Maria e com ela fez amizade. Certa ocasião, surpreendentemente, a Maria veio ter comigo,  e me disse que aquela deusa queria conhecer o simpático turquinho que ela via passar pelo larguinho com sapatos brancos da Arco-Flex. Minha bela napa havia confundido a deusa, pois meu nariz não vinha da capital do império romano do oriente e nem mesmo da capital do império do ocidente de onde descendo por parte de pai. Ele veio do meu lado materno espanhol. Amor à primeira vista é sempre assim: nossa primeira troca de olhares selou o mais apaixonante e empolgante namoro que eu tive em toda minha vida. Por essa deusa, eu abandonei as olimpíadas diurnas e as brincadeiras noturnas, e passei a me dedicar mais à poesia e à música. Tornei-me um trovador.
 
 
Minha deusa fazia questão que eu fosse busca-la na farmácia todos os dias nos finais de tarde. De mãos dadas, começávamos a subir a Rua Altinópolis, lentamente, esperando a noite cair como um véu sobre nossa intimidade. Passávamos pela Rua Dr. Alcides Prestes e desviávamos para a Rua Gracianópolis. Para não expor nossa cumplicidade à Rua Casa Forte, muito próxima da Rua Marechal Fontoura onde a minha deusa morava, fazíamos outro desvio para a Rua Ismael Nery, e lá nos recostávamos sob uma árvore frondosa que foi testemunha das mais belas carícias e juras de amor. Voltávamos para casa sempre por caminhos separados, e nos fins de semana nos  reencontrávamos na casa da saudosa Dona Vera, que sancionou o nosso amor como uma juíza de paz, e fez de seu lar um ponto de encontro de todos os jovens do grupo local de sistemas.
 
 
Esta deusa poderia ter me ensinado outras coisas além dos beijos cinematográficos e dos abraços apertados, repletos de ternura, mas ela preferiu preservar o meu romantismo e o alimentou com palavras emblemáticas. Dizia que eu era seu 'marinheiro'. Inebriado de tanta paixão juvenil, eu não me preocupava em saber qual de nós estava empreendendo sua primeira viagem pelos complicados caminhos do coração, e retribuía sua sublime vivacidade feminina com poesias e canções. A minha deusa se encantava com meus escritos e meus cânticos e me estimulava a fazer declamações ao longo dos caminhos que trilhávamos juntos.
 
 
Num lindo sábado vespertino, com o céu rosáceo do sol poente, passeávamos pela Rua Florinéia, onde ficava o Grupo Escolar Expedicionário Brasileiro do qual recebi o meu diploma do curso primário. De repente, nos deteve uma agradável e distante melodia, vinda das cercanias, e que passou por nós como o efeito Doppler, se aproximando lenta e suavemente, depois nos arrebatando com sua estrondosa sonoridade e, finalmente, se distanciando gradativamente como os últimos raios de sol no firmamento. Eram os Beatles na voz de Paul cantando 'Você diz sim, eu digo não. Você diz pare e eu digo vá. Você diz adeus e eu digo olá'. Sempre que ouço ou apenas me lembro desta canção sou imediatamente remetido para aquele momento que nos deixou  estáticos e comovidos, pois nós não tínhamos ido ao encontro daquela canção. Ela que veio até nós. Só hoje compreendo que, embora 'Hello Goodbye' tivesse se tornado a nossa música favorita, ela nos procurou para nos dar um enigmático aviso. Naqueles dias, eu não entendia porque Paul precisava dizer a uma mulher: 'Eu não sei porque você diz adeus enquanto eu digo olá'.
 
 
Num domingo de matinê, a Maria veio ter comigo de novo, desta vez para me dizer que a deusa havia desmanchado o namoro por causa de sua mãe. Quando a Márcia mandou me dizer que nosso romance estava acabado por causa de seu irmão, eu senti um vazio enorme, mas não demorei muito para me refazer. Mas quando a minha deusa fez o mesmo comigo, o chão desabou sob os meus pés e me fez cair numa profunda fossa. Fiquei desesperado, desamparado, desorientado e sem forças para subir à superfície. Custei muito a voltar ao convívio habitual com meus amigos da Corneteiro e da Extensão do Jaçanã onde eu estudava até que, depois de muito tempo, consegui iniciar um novo namoro com a Rosa, com quem me casei, tive três filhas e de quem me divorciei depois de nossa festa de bodas de prata.
 
 
Eu tinha com a Rosa um namorico firme, mas eu não perdia um baile sequer da turma que conheci em outras galáxias. Num desses bailes, realizado nas proximidades da Rua Ismael Nery, eu saí para a sacada do sobrado para dar umas tragadas e bebericar uma cuba-libre ao ar livre (desculpem-me o trocadilho barato), e me surpreendi com a presença da minha  deusa no canto oposto do terraço. De longe, ela me viu e me acenou, e logo veio ao meu encontro. Já não me recordo quem a convidara para aquele baile ou mesmo se ela estava acompanhada. Ela me tirou para dançar e, em seguida, me chamou para um passeio. Eu lhe perguntei para onde e ela me respondeu: 'Nossa árvore está perto daqui'. Eu achei tudo aquilo muito casual, brusco e oportunista  demais. Não se coadunava com a preciosa paixão, caprichosamente lapidada, que tínhamos um pelo outro. Por isso, naquela noite, eu estava menos empolgado do que curioso. Menos emocionado do que ansioso.
 
 
No entanto,para a frondosa árvore, nada era fortuito ou inesperado. Para ela, tudo era sempre igual como as quatro estações do ano, e nós éramos uma delas que retornava com os mesmos acalorados beijos e abraços de verão aos quais ela se acostumara. O que aquela árvore jamais presenciara foram as lágrimas vertendo dos olhos meigos e sinceros da minha deusa, com uma voz embargada a suplicar-me perdão. Foi a primeira vez que eu vi aquela jovem mulher que eu endeusei chorar, dizer que sentia minha falta e que não poderia viver sem mim. Eu era ingênuo e simplório demais para minha idade e, muitas vezes, paradoxalmente, eu me comportava com uma fidelidade que se espera encontrar somente nos adultos. Eu cometi o sacrilégio de não assentir imediatamente ao pedido de minha deusa, porque eu estava comprometido  com outra garota. Ela não se conformou e levantou a voz contra mim. A última coisa que eu esperava da minha deusa era uma promessa de vingança. Eu não pude acreditar nas suas palavras e as atribui a um possível excesso de vodca no baile. Contudo, a minha deusa estava falando sério e sóbria, pois, na semana seguinte, ela bateu na casa da Rosa em plena luz do dia, chamou-a para fora e fez um grande escândalo por minha causa.
 
 
Comentar os desdobramentos daquele incidente seria uma injustiça à coragem, firmeza e determinação da minha deusa. Basta dizer que pouco tempo depois deste triste episódio ela deixou a Água Fria e nunca mais a vi.
 
 
Em termos astronômicos, essa deusa foi como um cometa desvencilhado das gravidades solares e que, nas suas andanças pelo universo de São Paulo, precisou fazer uma breve parada na galáxia Água Fria, mas seu brilho passou desapercebido por todos os habitantes, o que não pode ser justificado só pelo fato dela ter feito uma morada transitória nos confins desse pequeno agrupamento estelar, pois ela demorou-se o suficiente no seu populoso núcleo para ser notada. Talvez ela fosse uma deusa só para mim, mas que não pertencia a mim nem à Água Fria.
 
 
Se eu pudesse voltar no tempo, eu diria a ela que eu era muito medroso e muito fraco. Receava que meu frágil coração não resistisse a mais uma desilusão como aquela que tive com a Márcia, e agora com minha própria deusa. Talvez eu me sentisse mais seguro com a Rosa, que era mais tímida do que eu, mais conservadora, incapaz de empolgar, mas também incapaz de despedaçar corações de qualquer idade. Se você pegasse no meu pé como sua mãe pegou no seu. Se você chutasse o pau da minha barraca como você chutou o da Rosa. Se você soubesse como eu me abalava emocionalmente com tanta facilidade. Se você soubesse...
 
 
Como eu não posso mais voltar no tempo, resta-me dizer que a Avenida Água Fria nasceu ao lado da Avenida Nova Cantareira, e seguiu adiante, quase sempre em linha reta, sempre fiel ao bairro que leva seu nome, recebendo inúmeras ruas perpendiculares e serpenteadas, como um rio que acolhe vários afluentes, e sempre conformada com as delimitações de sua jurisdição. Já a Nova Cantareira tomou um rumo diferente, abriu um enorme leque para o leste, fez o Jardim São Paulo e a Vila Pauliceia abrirem alas para lhe dar passagem, perscrutou todo o bairro de Tucuruvi, se impôs como fronteira entre o Jardim França e o antigo Morro do Ademar, bateu de frente com o Barro Branco sem tomar conhecimento da Avenida Água Fria que ali se contivera, e voltou a se embrenhar pelo norte, deixando para trás a Vila Albertina e o Tremembé até chegar ao pé da serra que leva seu nome e faz fronteira com o universo de Mairiporã.
 
 
Talvez eu tenha sido a Avenida Água Fria, mais resignado e com expectativas mais limitadas, enquanto a minha deusa foi a Avenida Nova Cantareira, mais atirada, como um Ulisses instigado  pelo destino a sair em busca de odisseias e contemplar outros mundos. Coincidentemente, hoje resido na base da Serra da Cantareira, com a Cecília, minha esposa, e a pequena Ana Carolina, minha quarta filha. Mas minha deusa, eu não sei onde está.
 
 

Embora tivéssemos nossos corações partidos, tínhamos que nos manter ocupados para não nos transformarmos em inconsoláveis. Havia um monte de coisas que precisavam ser feitas. E só Deus sabe com que corações partidos tivemos que faze-las. Embora tivéssemos sonhos frustrados, tínhamos que nos manter ocupados porque não podíamos viver de sonhar um com o outro. Havia muitas coisas que precisávamos realizar. E só Deus sabe com que sonhos frustrados tivemos que realiza-las. E porque tínhamos lembranças recorrentes que nos deprimiam, tivemos que beber para esquecer um do outro, pois nos diziam que isto curaria o tempo adoentado, mas só Deus sabe com que tamanha depressão acordávamos de nossas bebedeiras. E porque ficávamos chorando o tempo todo, tivemos que cobrir nossas lágrimas com sorrisos forçados e seguir em frente como se estivéssemos recuperados, mas só Deus sabe quão sofridas têm sido nossas peregrinações pela vida, distantes um do outro, e com os nossos corações machucados.


O CÍRCULO DE BACHIR - MOMENTO DAS MENINAS DA PRAIA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA OS TEXTOS AO SOM DAS MÚSICAS DOS VÍDEOS POSTADOS. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Bachir: Hoje temos gente nova no círculo. Apresente-se, Abulition!

Abuliton: Que saudade da noite em Perequê-Mirim, recostado no colchão, deitado sobre terreno chão, recebendo luz do corredor através da fresta da porta a Iluminar minhas Brumas de Avalon e atender ao meu desejo de paz podre por uma lua e o que sobrou num sol.

Bachir: Muito bom! Agora você, Maranta!

Maranta: Eu também. Sinto falta das noites de Comburiu, sentada à mesa, escrevendo, juntando letrinhas, como dizia Carlos Roberto Zen, que me trouxeram aqui hoje e me deram momentos de prazer, um presente do tempo que preciso devolver aos que amo e aos que sobrevivem.

As meninas da praia.




Phalaenopsis: Gostaria de fazer um aparte. Orlas da terra, em declive suave, ordinariamente cobertas de areia, e que confinam com o mar. Certa vez, um sujeito me disse que viver é tomar um bom vinho e lembrar o passado. Com a invasão carcinógena no meu aparelho digestor, onde minha degustação torna-se diluta, meus vinhos agora são dos mortos, enterrados no céu da boca. Saudoso nem sempre fui, mas das meninas não esqueço. Aqui estou, recostado no sofá, cabeça reclinada para trás, a escutar como quem presta ouvido às vozes que da cozinha me convidam para jantar, vozes longínquas às memórias que meus olhos cerrados estão a imaginar, cercados de um lado pela vastidão do oceano, no chão a maciez da areia para pés descalços, no alto o sol dourado cortado por algumas pipas coloridas que enfeitam o olhar, como os sorrisos de todas as meninas que cirandam sem parar, e riem desde a manhã até o fim do dia que elas nunca veem chegar, felicidade com as companhias que parece se eternizar. Elas não devem ter ouvido meus pensamentos prazenteiros, e não podem me despertar. Para onde foram? O que fizeram de todas aquelas lembranças? Espero que tenham ficado com a maior parte de minha alegria, e a menor de minha solidão. Espreguiço meu corpo dorido na poltrona surrada, olhos abertos ao infinito, a se perder como quem os fecha às ausências que querem se acercar, ausências desatinadas com os sentimentos que minha alma anestesiada está a preencher, cercada de um lado por lágrimas de sangue, no chão a terra dura para as mãos calejarem, no alto o sol a pino rabiscado por alguns pingos de chuva que refrescam o suor, como as obstinações das meninas, agora mulheres feitas, que trabalham sem parar, e perduram antes de o dia começar até o fim da noite que nunca as veem descansar. Uma missão com os deveres que parece predestinar. Não podem mais ficar, não podem mais ajudar, e quem tomará conta de todas aquelas crianças? Quem nos trará mais bem-aventuranças? Quem herdará a maior parte de suas devoções? E nada do que sobrou de suas desambições? Estes são pedaços da vida. Instantes momentos.

Zamioculcas: Os momentos não têm rosto. Só movimentos. Vejam a Poliça mergulhando os braços no vazio como a remar e a Pocahonta trazendo-os à tona a simular a ondulação das águas.

Beaucarnea: Momentos de entoação de quase plangentes leituras e escritas embalam o tardio despertar de uma verve literária que ainda pode vos seguir pelo pouco de vida que lhes restam. Tirem suas cartas e apostem em tudo que a saudade vos deixa no passado e invoca no presente. Escolham: arriscar e vadiar caindo aos pedaços à beira-mar de verão ou arrumar um emprego como vestidores de defuntos.

Momento



Dieffenbachia: Preciso de você um momento, Um momento de solidariedade, Para recostar-me sob as sombras das árvores que falam, gemem, farfalham e abrigam espíritos benevolentes, Preciso de você um momento, Um momento de amizade, Para soprar mais forte dentro de mim o vento pleno de palavras, visões, avisos, ruídos de forças que vagam, que atraem amigos e afastam os males, Preciso de você um momento, Um momento de fraternidade, Para me ungir com a água que se move, articula, profetiza e santifica, Preciso de você um momento, Um momento de adversidade, Para sentir frio, calor, estar na escuridão, encontrar luz e olhar para o céu todo pai que obra com a mãe terra no milagre da vida, Preciso de você um momento, Um momento de superioridade, Para comungar com o universo, sentir-me parte do todo, sentir-me deus, filho da reverência e da necessidade.

Bachir:Rudbechia,parece que você esbouçou levantar a mão. Quer dizer alguma coisa?

Rudbechia: É sobre mim, mas deixa pra lá, não é nada importante.

Bachir:Rudbechia, aqui tudo é importante. Conte sua história!

THE FLOWER, THE STAR, AND THE UNSPEAKABLE

 

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


The title of this idle talk sounds much like my play The Whore, The Junkie And The Nun. Anyway, I am sure it won’t cost any life here or somewhere else. Paul Dirac once said: ‘Pick a flower on earth and you move the farthest star’. I wished I could share that with an unspeakable. I call him so because he is sort of a fake nameless humanoid creature living within the surrounding woods in the fiction movie The Village, in which the elders used to refer to it as "Those We Don't Speak Of", to scare the youngers and the children out and keep them within the limits of the village and away from the woods inhabited by the dreaded red clad legendary monsters. I reached out to the unspeakable by phone through some of the contacts we had in common. He said: “Look, we have to meet. We cannot talk about your and my secrets by phone. Your efforts to effect disclosures are noble but they won’t be permitted. And not for the reasons you think”. Well, I thought to myself, what reasons of mine he knows I bear in my mind and which do not fit his. We met and before I could say any word he told me a long and weird story which I regarded as being a hilarious lie. But I did not say anything to him and kept listening, But then he made astonishing statements: “What nobody understands is why you haven’t killed yourself yet. My dad knew about some of this way back in the 60’s. No one would do anything about it. So he took his revolver, ate his gun, and blew his head off”. Now, this guy was a five star unspeakable. I just told him I was sorry about his dad and left. I had had enough. On my way back home I was wondering why I should kill myself. I had been caught by a congenetial desease, a lethally acquired one, three attempts of murder by criminals and finally this not less lethal virus. They all spared my life.  Therefore, instead of taking my life with my own hands, I let my love go out to the flowers and to the stars, to the prostitutes, the addicted to drugs and those dedicated to God. And why not mainly to those we wish we didn’t even have to think of?



UM MÁGICO TOQUE FEMININO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Alienado e mortificado, Com este marasmo, De agravar meu tédio, A atiçar-me pecados mortais, De gula, Preguiça e lascívia, Assalta-me o fastio desta vida, Seguida por invisíveis passos de despotismo, Invisibilidade embutida em habilidade, Que toma tudo que vê e não vejo, Como quem toma armas em defesa de sua soberania, Seu toque é oculto, Usa do maior recurso do poder, Diante de um único homem, A dependência, E sua criadora imaginação, Mas não tem coração de ver-me tão só, Sei seu nome, Mas não sei quem é, O espaço aqui é quase infinito, Mas sua sombra sempre justapõe-se à minha, Qual de nós dois aqui é o mais fingido? Você com sua inacessível divindade? Ou eu com minha carência de um toque humano? Vamos deixar nossos propósitos escapulirem? Quisera ver outros rostos estranhos mesmo sem bondade, Quisera ver milagres de cera, de ouro e de prata, Velas e painéis votivos, Trazidos por outras gentes como eu, Faltos nessas redondezas, Dispenso suas bênçãos tomadas a cachorro, Sua piedade de execrados como Judas, Seu insincero louvor que exclui a crítica, Ninguém come do pão de seus paraísos celestiais, Ninguém bebe do sangue que jorra de seu único filho, Isso mesmo, Vingue-se de minha insolência, Colocando ao meu lado outra de minha espécie, Que não te obedece, Que subverte seus planos, Provoca sua ira animal que sempre escondeu, E nos expulsa para um mundo mundano, Que sempre vislumbrei através do passado recente, Não querendo ver minha existência tão desperdiçada, Sempre procurando por uma pista, De como chegar a você, Mulher, Rogue a mim a mesma praga que você rogou a ele, Jogue em mim mais de uma vez este seu feitiço, Jogue em mim este toque mágico e feminino de fêmea, Sal da terra que este deus não consegue saborear, Luz deste mundo que o todo-poderoso não consegue apagar, Mágico toque feminino tirado de minha costela, Mulher embutida no homem, Sem o qual o homem e sua humanidade seriam insípidos, E deus um frustrado homossexual masculino.

SOLDADOS SINTÉTICOS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

De vez em quando, Ainda vejo no espelho, A alma de menino em meus olhos, E quase sempre o reflexo de cabeça branca, Carquilhas demarcando as fronteiras do rosto, Os ombros um pouco retacos, Como negro acostumado a bolear o fardo da vida, As sacas de café e batatas nos ombros portuários, E aos poucos, As madeixas vão lentamente se perdendo, Preparando-se para setenta e uma primaveras, Mas ainda não para serem assentadas, Meu coração ainda fervente, Mantém membro e bagos em elevada temperatura, Com poucos cabelos na mão, De meu amor a paixão em latente ardência de verão de Fevereiro, De sol, Praia e suores, Penetra-lhe com suave calor suas carnes, Como de braceletes o ouro em brilho quente, Morde-lhe com volúpia seus lisos braços, Domina-lhe os nervos, Entra-lhe como vento por uma janela largada aberta, Sacode-lhe frouxamente as cortinas, Até que um dilúvio de luz cai do alto de sua fronte como pano sobre o palco do teatro de nossas existências e cega-me, E às vezes me perco, Como me perdi com menos de trinta e perguntava se, Quando tivesse meia quatro, Você ainda precisaria de mim, Cuidaria de mim, E me via como um homem útil, Capaz de trocar uma lâmpada, Você tricotando junto à lareira, Fazendo piquenique e jardinando aos domingos, Com netos sentados no colo à tarde, Mas continuo o mesmo soldado desde o dia que nasci, Seu aliado em guerra contra a aversão do mundo mais de seis décadas afora, Desalojado das trincheiras, Mantido no front modorrento, Nublado de fumaça asfixiante, Tresandando corpos putrefatos, Um inferno sufocante, Numa batalha desigual e solitária, E por saber ainda como manter o nariz fora d´água, Inalar ares finos e puros que adentram a alma, E nela espalhar obstinação e força, Por ser árvore que se verga ao peso de mágoas excruciantes, Sem ter um único galho quebrado, Por não me defender com armas convencionais e letais, Que mutilam e matam, Sou cunhado como uma incômoda e sintética moeda desumana, Que insiste em manter-se em circulação. 


A RODA DE CATARINA


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 
O dia começa com o homem poderoso debochado, Respondendo à carta do amigo preocupado, Ele compara o inimigo ao homossexual eunuco e amante, O chama de inseguro e vacilante, Pálida e doentia coalhada de leite de asno de sua dieta, Que tece como o bicho da seda ao estilo do péssimo poeta, E pergunta quem quebra uma borboleta numa roda, Linda borboleta de maravilhosa fragilidade que não amola, Que o homem poderoso ridiculariza comparando-a àquele que usa ruge vergonhoso, Que fede, Ferroa, Zumbe e aporrinha o justo e o espirituoso, E o dia termina com a bonança perturbada, Desbotadas as cores do arco-íris, Um tudo-nada afoga o sorriso, A borboleta abre os olhos na manhã seguinte inquietada, Faz esvoaçarem no céu todos os íbis, Transforma o amanhã num paraíso, A borboleta é aquebrantada sobre uma roda, A maldade encontra seu bode expiatório, Os tudos-nadas festejam o precipitado juízo, A borboleta fecha os olhos na noite que se incomoda, Faz suas orações ultrapassarem o purgatório, Transforma todo escárnio e tortura em paraíso, A tempestade volta a cair, A carga torna-se mais pesada, E o tudo-nada mais incisivo, A borboleta se desnuda toda para sair, E voltar com a alma lavada, Transforma as intempéries num paraíso, O mundo está fora de alcance, A vida mais carregada, E o tudo-nada mais preciso, A borboleta embala o berço para que o tudo descanse, E o nada tenha sua esperança alimentada, Transforma toda mazela num paraíso.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

CHUVA DE VERÃO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Chuva de verão pingando no seu rosto, Boca aberta sentindo seu gosto, Beijo de abelha lambendo mel, Montada numa bicicleta pedalando o céu, Olhos azuis levando o mundo de vento em popa, Deitado à esquerda e sacudindo tua roupa, Vestida de sorriso borrifando o chão, Peito de capacho acompanhando a multidão, Mentes distantes resfriando o suor, Pingos de alegria cantando de cor, Chuva de verão suspendendo o espaço, Corpo leve sentindo o teu abraço, Alma descoberta puxando a respiração, Sopro de Deus levitando tua emoção, Flechada de cupido viajando à deriva, Casal de namorados procurando-a viva, Coração feminino dando uma carona, Pernas abertas voando nos ombros de madona, Mãos espalmadas esperando receber amor, Águas de luz abençoada esterilizando estes ares de calor.


VIDEOCLIPES SELECIONADOS POR INGLESA LUSO CHINESA - SIA: COURAGE TO CHANGE - SERIADO: O GÂMBITO DA RAINHA


 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

IDEIA


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98


Desfilam num repertório de noções as favoritas e as marginalizadas, E com estas últimas se dá, Inevitavelmente, De encontro na obcecada busca por imitações fraternas das mais preferidas, Muitas continuam negligenciadas, Algumas deslembradas surpreendem com seus préstimos para belas poesias, Outras com suas proficuidades para prólogos e epílogos de bons contos, No coração de apenas uma reina uma singular mistura de abrupto estanque da existência e os lamentos de costume, Sinistramente engrossados, Funesto ode que sem sentença desperta a imagística, Suscita uma elaboração intelctual tendente ao concreto, Carente do abstrato para ganhar vida, Clamante do degustar da alma de tudo que precede aquele momento mágico da concepção, As sensações emanadas do espírito que a mente interpreta, Descreve e enquadra num proscênio, Cercadas de luzes surrealistas, A inteligência que retorque a alma numa linguagem que traz o passado ao presente e incita-a a expurgar o que de resto sucede a mescla na sede dos sentimentos, E ambas embrenham-se além da linha do horizonte, Entram em alto mar e se veem cercadas de água por todos os lados, Onde se navega com mais cautela do que na boa e rápida partida, Onde se baila, Se oscila e se equilibra, Com réplicas e tréplicas, Sem estribilhos e bordões, Com enésimas contra tréplicas e revelações, Com o tempo viajando bem mais lento, Sem perder a objetividade estática do valor relativo das asseverações, Da centralização das opiniões, O embate das argumentações, A fragilidade da condição humana, Sem perder a subjetividade dinâmica das iniciativas, Das esquivas, Das manobras, Dos vacilos, Das investidas e recuos, Da individuação, Da intuição que já não atina para terra firme, Porque a magia leva o futuro de volta ao passado e eterniza o jogo de palavras e ideias que aguça a imaginação.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

MISS LIAR, SITTING PRETTY, LITTLE LIES IN A ROW

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Todo mundo emprenha pelos ouvidos, Mas eu queria você longe dos meus, O que saem de seus pequenos e grandes lábios?, Farfalhices e bazófias, Os incautos que caem em suas unhas postas fora, Antes do cruz-credo, Quia absurdum, Adoecem de saber você doente, Viram defuntos matados, Tua ideia de mentira, Representa a mola das mortes, As mães, Filhas e maridas que você sepulta, Sem mostra especial de sua frieza, Razão pela qual a esquizofrênica pseudo-intelectualidade, Congênita à falsa mulher e inseparável dela, Não pode deixar estancar o corolário de imoralidades nestes tempos que sublevaram todos seus antigos valores e temores, Dia desses você mandou assassinar seu ignoto empregado em viagem a trabalho no exterior, Pediu à sua advogada para lhe ensinar a trasladar restos mortais sem corpo de prova, E ao seu marido, Primeiro que a ninguém, Você atira a bala que quebra ossos e atravessa pernas, E a ti mesma, Última que a todos, Disparas o projétil que se aloja no ombro e urge uma prótese, Olhe, Pois, Que tuas rezas são hipocrisias das desavergonhadas que não podem, Eternamente, Levar à paciência de Jó os seus incógnitos irmãos da terra e de longínquas galáxias, Ora, Como tudo cansa, Suas grandes petas acabam por exaurir-me também, Seu vício artístico de reduzir, Pela sobrevivência, Todos os otários e cornos bravos a uma única estirpe, Torna seu mundo uma monotonia abominável, Quantos espíritos alemães de nome Fritz você já invocou? Quantas vezes mais você matará a si mesma, E enterrar seu pai, Seus filhos e seu próprio marido? 

'Oras, Meu bem, basta-me saber que sou muito triste com minhas mentiras, E já serei, Na verdade, Muito menos'.

TONS


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Na Drupa 1996 em Dusseldorf, Comprei uma paleta com todos os tons das cores infinitas do universo, Todas decompostas pelo seu olhar, Na sua cabeça, Trançada em bandós de grossas madeixas, Espalhando-se pelo céu noturno até o brilharem de estrelas gloriosas, Quando você se vestia de azul, Parecia Rígel em Órion, Quando deitava-se ao meu lado de branco, Seu corpo era um estro poético, Acalentando-me como Vega em Lira, Já fui teu Sol, Amigo de teus heróis, Aquele que te seguia sob um calor de cinco mil graus, O auriga de seus cachos enredados, Não sou mais o guardião de suas noites, O mata-borrão do batom vermelho de seus lábios carnudos, Escrevi mais de cem canções para você quando era jovem, Nenhuma à altura de Schubert, Que compôs cerca de 800, Das quais uma centena maravilhosas, Somente comparáveis a Mozart, E tive que esperar muito tempo até os Beatles chegarem para superá-los, Passo o tempo esperando pela chuva, Como nos seus dias ingleses, De mãos dadas na aurora das ruas de Viena, Para ver suas cores nascendo por toda parte quando a luz vai despertando, Quando as nuvens derramadeiras dão lugar às noctilucentes, E um arco-íris vem te procurar. 


TURNING POINT OF AN IDLE CHAT


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Ele está de malinha pronta
Ele sempre viaja
Sozinho assim?
Ele nunca apronta
O que houver que haja
Não pula a cerca até o fim?
Você é mesmo marota
Será que ele brigou com ela?
Ele não briga com ninguém
Nunca deixaria uma linda garota
E você me acha bela?
Igual a você não tem
Então por que não me leva embora?
Com pouca roupa ele não vai longe
Nem a Paris, nem a Veneza
Talvez para terra de Pandora
Ou para o Tibete e ser um monge
Fazer voto de pureza?
Pode ser um momento de indecisão
Veja o brilho em seu olhar
Então deve ser a terra de Vitória
E se forem olhos de desilusão?
Veja seu modo de andar
Não parece uma postura que sugere glória
Será que vai tomar um banho de civilização?
Pode muito bem estar feliz neste inferno
Alugar isso aqui e vender Londres?
Veja o traje dele de descontração
Faz tempo que ele abandonou o terno
Até o linho da terra de Flandres
Ele é jovem por fora e sentimental por dentro
Corpo de homem e alma feminina
Jeans, camiseta preta, flores amarelas
Nem da esquerda, nem da direita, nem do centro
Conhece alguém assim com tanta adrenalina?
Você é uma delas
Isso me dá uma vontade!
Ele tinha jeito de me vou ou perco a cabeça de vez
Alguma coisa o fez mudar de ideia
Trocando conformismo por licenciosidade
Ou idealismo por falta de honradez
Ou a França pela terra de Medeia
Não é viagem a trabalho nem a passeio
Então vai pegar aquele trem só de ida?
Deve ter sido chamado para uma emergência
Ser um substituto por falta de outro meio
Ou ajudar alguém a cicatrizar uma ferida
Mas ele parece não ter urgência
E aquela história dele escrever um script para o cinema?
Mania passageira
E aquela dele dar curso sobre o Jesus histórico?
Pregação no deserto de dar pena
É aquela dele montar uma escola para ensinar língua estrangeira?
Ressuscitação de um passado fantasmagórico
Quem ele poderá substituir?
Talvez uma tragédia recente para excomungar uma antiga
É Antígona dando continuidade ao drama do irmão?
Ou Shakespeare copiando-a para Romeu e Julieta fazer essa história se repetir
Acha que para evitar o pior devemos fazer figa?
Pressinto que desta vez não
Veja sua expressão descontraída
Bonita como a minha?
Você não toma jeito
Você já viajou nesse trem só de ida?
Estamos nele, mas não chegamos ao fim da linha
Gosto muito deste carro leito
Por que não paramos na próxima estação para ver gente?
Já falta pouco para o nosso quando e o nosso onde
Será que ele embarca e segue viagem conosco?
Acho que ele vai voar até o sol poente
Ver o onde o sol se esconde?
Ver pela última vez o último raio fosco
Tem certeza que ele nunca pulou a cerca?
Isso não é jeito de falar
Que tal um modo de te seduzir?
Está querendo que eu me perca?
E se eu me comportar?
Talvez eu possa te incluir
Olha só, o trem parou e ele embarcou ao som do sino!
Vamos sentar ao lado dele e perguntar
Desculpe-me de ser tão enxerida
Nós queríamos saber qual é seu destino
Se não quiser, não precisa falar
Vou enfiar minha cabeça na privada deste trem
Puxar a descarga 
Esvaziar minha mente
E chegar em Vênus
Onde ninguém vai ligar para minhas flatulências
Desculpe minha intromissão
Só se Vênus tivesse uma temperatura entre 100 a 150 graus
Então existiria água na superfície do planeta
Por causa de sua pressão extremamente alta
No entanto a temperatura de Vênus chega a quase 500 graus
E uma vez que o ser humano é composto predominantemente de água
Você não vai conseguir soltar gases lá
Ao contrário
Lá você se tornará um verdadeiro flato
Ajudei?
Muito
Minha mãe sempre me disse que a vida é só um gás
Peguei o trem certo
Obrigado
Nossa, ele vai se perder ainda mais na vida
Perder os amigos e a família que nunca teve
Jogar fora seu nome
Recomeçar de um novo ponto de partida
Passar mais dez anos por onde já esteve
Beirar a privação até a fome
Perdoar-se em primeiro lugar
Renascer das cinzas e do seu amor próprio
Viver à margem de todas as convenções
Jamais orar como um hipócrita vulgar
Ser feliz no seu mundo alienatório
Passar o resto de sua vida sem nossas bendições


NÉVOAS PÚRPURAS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Sou calistênico, E você minha Lucy in the Sky with Diamonds, Minha heroína, Soltaram minhas rédeas curtas, Acabaram com minha fobia social e meu acanhamento, Agora trago sua névoa púrpura, Misturo-a à minha que rechaça todo tipo de atenuação e transborda da tela onde você, Pintora, Tenta enclausurá-la com outras nuanças, E te transformo numa fera indomável, Faço você viajar, Atravessar a turba que a rodeia, Orlada de leandros floridos, Garbosa nas asas de vário caleidoscópio, Com meu amarelo coruscante, Que violenta tuas corolas brancas, Intensifica tuas carmíneas, Agudece teus vermelho-escuros tendentes ao violeta, Cega como um fluxo de metal em fusão, Teus heliotrópios de sois esvanecentes, E você vira minha doente, Para você meu nariz se alonga, Minha corcova protubera, Minha barriga cresce, Minhas roupas multicolorem, Minha fala treme e esganiça, Para você sou falso herói e fanfarrão, Tolo, Astuto e sinuoso, Sem dignidade, Teu palhaço no meio de qualquer multidão, De qualquer solidão.

VIDEOCLIPES SELECIONADOS POR INGLESA LUSO CHINESA - CARLA AZAR'S COVER OF THE BEATLES SONG : TOMORROW NEVER KNOWS - FOR THE MOVIE SUCKER PUNCH

 


IRMÃS

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

De seus pensamentos imagino que, Para que eu me torne tão bem morigerada, Nossa mãe cria juntamente a seus peitos todas as criaturas, Filhas do mesmo universo, Todas colaças, Geradas e sustentadas na resolução fraterna que depende só da vontade, E semelhança de intencionalidade consciente, Os tempos cronológicos com seus espaços tão distanciados, Perdem a razão de ser ante a intemporalidade e a transespacialidade de nossas existências, Que nos aproximam por minha intensa vibração interior, De quem se sente inferior, E que precisa que suas dores terebrantes sejam tomadas por irmãs de discreta superioridade, Guardem, Pois, Em suas casas vedadas ao meu mundo, E de vossas boas mentes, Minhas desavisadas preces, Que deveriam agradecer ao invés de suplicar, Aqui os pobres e míseros guardam seus lugares santos, E ali gente que abandonei, E mais além gente que nem sei, E acolá vossa abençoada empatia acolhe com simpatia todas as tristezas sem excessiva comiseração.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

VOCÊ É LINDA DEMAIS


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Minha vida é nova e ordinária. Meu coração é robusto e impuro desde a primeira comunhão. Meu destino é incerto e meu anjo da guarda anda inseguro com minha volubilidade. Ele evita palavras contundentes como rebeldia. Meu tempo estende-se por décadas. O de meu avô terminou, mas este velório parece infindável. Estive junto ao caixão, varei a noite improvisada em beira de cama e espalhado pelo chão. Levantei mal dormido e aquebrantado, desesperado por não ver nenhum sinal desse funeral chegar ao fim. Ruminei palavras vergonhosas e deixei escapá-las algumas vezes aos ouvidos de outros temperamentos jovens. Não ouvi admoestação, nem ecos de minha maldade. Há gente demais dentro da casa e fora dela. É difícil conter os bocejos e a irritação. O sol que se aproxima do meio-dia oferece-se para aliviar a monotonia das longas horas à meia-luz das velas, mas exaspera o desconforto com a delonga do ritual. Mas, afinal, que horas será este bendito enterro! Não paro de esfregar os olhos sonolentos. Vejo aumentar o número de pessoas do lado de fora, encaminhando-se para os seus carros. Finalmente, fecharam o esquife de meu avô. Meu pai está no comando de tudo, como sempre. Sem ele não há enterro nem morte. Que desgosto ele teria se pudesse ler meus pensamentos! Não tem olhos marejados, nem peito apertado, porque sua vida é dura, mas linda. Sofreu calado nas mãos de meu avô desde os doze anos, subindo e descendo escadas de altos prédios em construção, carregando pesadas latas d’água e de cimento sobre os ombros que renderam-lhe um reumatismo de seis meses de cama com apenas vinte e um anos. Sem ajuda de ninguém, sem os estudos que lhe foram negados, ele conquistou sua independência financeira cedo e muitos precisaram dele. Mais do que todos, meu avô, que depois da meia-idade, depois de ter perdido tudo que ganhou com amantes e jogatinas, caiu derrotado e enfermo e foi abandonado por todos. Menos pelo meu pai que o acolheu e passou a cuidar dele como um filho incapacitado. Sobre meu avô ouvia-se apenas uma frase de meu pai: ‘Devo minha  profissão a ele’. A existência difícil que teve foi celebrada com generosidade. No cemitério todos querem estar junto à cova. Ninguém arreda o pé até o sepulto ser completamente cimentado. Meu tio desgarra-se da aglomeração e caminha solitário e lentamente pelas ruas delgadas, mãos cruzadas para trás, perscrutando os dois lados, sem ignorar nenhum bem-amado. Eu o sigo à distância até chegar à próxima quadra e ali me detenho. Lá está ela, cândida adolescente a caminho da puberdade, imersa, de corpo e alma, nos cuidados do túmulo. Nada desvia sua atenção. Nenhuma palavra vozeirada nas proximidades, nenhum vulto na sua visão periférica abstraída, nenhum transeunte caminhando a passos apressados e pesados pela sua alameda estreita, nenhum pássaro curioso pousado sobre a cruz sinalizando o mirante da sepultura. Gestos delicados deitam, gentilmente, flores na cobertura e aos pés da tumba. Ela agacha-se e levanta-se e cada movimento seu dita o ritmo de paz e quietude que flui no cemitério. Se há fantasmas em volta, hoje eles estão espantados. Uma última vistoria em torno da campa alinha seu rosto com o meu por fração de segundos. Cabelos negros, lisos e armados, realçam a alvura da face de feições harmônicas, que começa com uma testa graciosamente convexa, chega às sobrancelhas volumosas e bem aparadas, encimando olhos verdes, esmeraldas que reluzem solitárias no meio de um amontoado acinzentado. Abaixo deles, o pequeno nariz arrebitado, rodeado por maçãs levemente protuberantes que se curvam até o queixo esculpido à mão. Acima dele os lábios, moderadamente carnudos, estão fechados, sugerindo respeito, mas descontraídos, por trás dos quais parece haver a ligeira contração dos músculos faciais de Monalisa, como se houvesse um anjo com um sorriso sobreposto sobre seu semblante sem torná-lo facilmente perceptível. Ela prepara-se para partir. Meu tio passa por mim e alerta-me que todos estão indo embora. No carro a caminho de casa, a moça continua na minha retina. Não espero vê-la novamente e nem desejo. Ainda não consegui ir além da admiração e da paixão platônica. Mas quero preservar aquele precioso fragmento de segundo para sempre. Resolvi que ela dará origem ao meu décimo álbum, cuja faixa título falará da garota mais linda do mundo que eu vi num cemitério. O álbum está quase completo. Só falta a música principal que não consigo escrever e nunca escreverei, porque aquele breve momento foi concebido só para os olhos. Foi feito para ser visto e esquecido no reino dos mortos, como são esquecidas a maioria das pessoas comuns que sustentam o mundo, como meu avô, que dentro de poucas gerações será mais um dos muitos seres passageiros e esquecíveis e cuja existência na terra passou completamente despercebida, um nome que nunca existiu para a posteridade. Aquela moça seguiu propiciando muitos instantes semelhantes, em circunstâncias diversas e, se quem os presenciou não experimentou igual êxtase, é porque, de fato, a beleza está somente nos olhos de quem a vê. Meus olhos a viram e morrerão com ela. Foi um instante de felicidade da qual a vida é feita e que não pôde ser ofuscado pela morte, nem de meu avô, nem de meu pai. Platão disse que sofrimento e felicidade andam sempre juntos. O  prazer nada mais é do que a supressão da dor. A visão daquela moça no cemitério  concedeu-me alívio para um pesar imaturo e desrespeitoso. Ensinou Lennon que a  vida é momentânea, sem tempo para fofocar e brigar, e não é nada mais do que um instante de prazer, e a morte nada mais do que o desfecho deste momento. Ensinou Sêneca que quem sente medo na hora da morte não foi feliz. A vida é linda demais para preocuparmo-nos com seu fim. E aquela moça era linda demais para eu imaginá-la só para mim.