quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

IN CAELUM FERO

 Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 


Quatro trêmulos de estridência abafada. Um tico de eco em cada. Menos susto que salva de armas. Homenagem. Pomposos e solenes metais retumbam com suas tessituras. Redobres de tímpanos e tambores asfixiam a saraiva aturdindo telhas de asbestos. Vozes cheias, femininas acriançadas, entoam:




Ma-we ka-ya-ma-na
Ma-we ka-ya-ma
Ma-we
Ka-ya-ma--ta-na
A-ma ka-ya-ma-na 
  A-ne-a 

O rei da cocada preta na barriga leva embora consigo a vida de nababo. Sem lei. Sem grei. São duas suas únicas súditas. Urubuas e carpideiras. Fazem as vezes de carregadoras de caixão e coveiras. As misseiras de sétimo dia, romeiras dos finados de Novembro. Nos gastos agora marcham. Nada resta. Nem para acender uma bituca de vela. Nem pálida oferenda de luz bruxuleante para o arqui-inimigo do Diabo. Este as tem de sobra. Rubro-negras. E as doa. Praza a ele que a morte não sequestre, ao seu zelo, seu acordo com o defunto. Cacifa-se à sucessão de Deus. Aposta tudo no guardamento da alma vendida. Satura a sentinela com muitas camirangas. Presentes que um potentado manda a outro. Mimos soberanos. A música escolhida pelo falecido ecoa nos ouvidos longínquos. Como numa concha acústica de teatro grego. Rimbomba. Angustia as duas mulheres. É calada. Dá lugar ao som do silêncio. Estanca todas os ruídos da natureza. Feito disco voador aterrissado. Na sua solidão que desconhecemos. Como nesta noite de inverno nortehemisferiano. Curta. Apressa o enterro. Por conta de cambaleantes sonolências e desavisadas ausências. Exceto por um intruso. O real que não é visto. Do tinhoso recebe uma olhadela de soslaio de indiferença. O metediço em vida não atinava para a falência múltipla de um falto de juízo. E em termo, respondendo a preces, nunca foi ouvido, Resta, Então, Às resignadas choramingas, Improvisar um dueto gregoriano de despedida, Que emociona até o coisa à toa, E em sinal de cínico respeito, Deita seus lábios sobre a testa do moribundo, E espalha pelo ambiente uma catinga de carniça podre, Enxofrada, Tal qual o fedor da decomposição de um corpo sob a terra, Um a menos que já nem fazia mais parte de qualquer estatística, Quantos cidadãos comuns do antigo império romano morreram sem nome? Todos! Quantos escravos da gloriosa Atenas fazem parte dos anais da história? Nenhum! Quantos servidores e usurpadores dos dias atuais continuarão a existir para a posteridade?

ALGO ASSIM

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Véspera de Natal de 2008, Ruth deixa o apartamento, Como quem deixa por enquanto uma tragédia, E pega o elevador, Como quem já sabe que não pegará cadeia perpétua, Terá tudo confiscado, Até suas roupas íntimas, E quase nada sobrará para pagar um advogado, Ela vai ao cabeleireiro, Uma persistência caturra numa rotina estúpida, O salão não leva em conta sua inocência, E ela paga pela contagiosa trapaça do marido Bernie, Um dos melhores American Hustles,

Na mesma noite, Eu, minha esposa e minha filha de 5 anos estamos dirigindo pela New York State Thruway 90, Já passamos por Erie, Buffalo e Rochester, Estamos indo em direção a Syracuse, Antes da solenidade e do júbilo que nos espera no Brasil em Janeiro, Na estrada reina precipitação que não cria caso com a perfeição, Porque o rigoroso inverno do hemisfério norte, Abaixo de zero, Apressa a noite que cai com a tempestade de neve, Extrema alvura que embaça e, Ao mesmo tempo, Estatela a escuridão,

Ruth volta para casa resmungando queixas ao companheiro, Enxotada pelos amigos, Sem nada, Sem nunca ter trabalhado, Desenganada por tantas mentiras, Ela prefere a morte, Sem esperar por Deus, Sugestão a qual o homem aquiesce sem hesitar, Eles têm dois tipos de metanfetamínicos em quantidade suficiente para prover uma farmácia, A cama é aconchegante, O filme na TV é antigo e traz boas lembranças, Levaram uma vida das melhores impossível, Agora é só esperar o sono vir e dormir,

Syracuse está próxima, Decidimos entrar na cidade junto à rodovia, A pequena Liverpool, Onde já estivemos, Tão pequena que nem aparece no mapa, O Homewood Suites que nos acolherá parece estar perdido, Escondido no meio de coisa alguma, Nada de suas habitações e suas gentes que parecem terem saído para passar as festas de fim de ano no calor da Flórida e da Califórnia, Lá dentro, Como lá fora, Só há uma alma viva, Lá fora, Um guarda fantasmagórico sob luzes de neon neblinadas como lampiões com gás no fim, Lá dentro, Aquele que recebe hóspedes e cobra deslumbrantes US$ 150 a diária, Por uma câmara-ardente no sepulcrário, Onde se houve o som do silêncio, Amanhã é dia 25, Será que haverá café da manhã?, Isso é tão certo quanto o aparecimento de uma alma feminina desacompanhada, Embutida em calça, blusa de moletom e tênis, Pronta para o Cooper matinal,

O sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria americana no dia seguinte, Dia de abrir presentes e reunir a grande família, Mas a providência interrompeu o sonho de sono eterno do casal, Ao amanhecer, Dormiram uma inércia quieta e acordaram surpresos, Nunca se imaginou que uma boa mulher e um mau homem pudessem despertar ainda casados com a vida, Meio atordoados, Menos ressacados que um grande porre, E agora enfrentam o resto da dura realidade, A maldição da legião dos que foram lesados, A prisão eterna de um, A pobre liberdade de outra, O trágico suicídio de um filho envergonhado,

Sentados à mesa de um dos cômodos do enorme hotel residência, Tão grande quanto a solidão de um menino num internato, Nós três ceamos comida congelada do freezer e requentada, Regada a sucos, E fazemos planos, Deixar que tudo se perca, Os sacrifícios de tantos anos foram inúteis, Nem mesmo recebemos qualquer gesto de reconhecimento e gratidão de tantos beneficiados, Já naquele tão esperado evento no mês que inicia um novo ano, Fomos homenageados com um primor de indiferença e ojeriza, Que só perdem para uma execução de fundamentalistas, Que decepam suas vítimas ao vivo e postam os vídeos nas redes sociais.

Não temos nenhuma importância, Nossas vidas não fazem diferença nenhuma no mundo, Somos apenas um pouco excêntricos, Como num filme cult, Uma desunanimidade deseinteligente, Aqueles que os alienígenas marcaram por engano, Porque ligamos para algo ao qual possamos recorrer, Alguém que possamos tocar e abraçar, Algo com o qual possamos se importar, Alguém de quem possamos sentir falta, Beijar e amar, Algo assim, Quatorze anos depois, O padrão de solidão ganhou nova roupagem e uma verdade que promete um dia nos reintegrar à vida.



sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

SUBLIME

Texto  com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

A beleza está sempre à mostra, Neste mundo de coração insensível, Nos olhos de quem a vê, De quem quer se comover, Nos olhos negros que brilham na noite cerrada, Que ofuscam o brilho das estrelas e fazem-nas recolherem-se mais cedo, Dividem com o sol o céu lápis-lazúli escondendo os corpos celestes que não pregam os olhos para espreitar os contornos graciosos esculpidos pela natureza, Dessa criatura de olhar sincero, Que não se incomoda do glamour esmeralda querer fazer-lhe companhia, De seus cabelos lisos serem encaracolados e receberem reflexos de cobre para agradar o astro rei, Não se incomoda destas palavras terem sido escritas para alguém que ainda estava por vir, E que me foi negada na vida apenas para me entristecer, E que agora são para você, Para quando você chegar, Toda minha rua te pressentir, Te cheirar no ar, Ouvir os ventos assobiarem em tom diferente para todos alertar, Ver as saias e os chapéus elegantes das senhoritas tremularem com a brisa que está a anunciar, As floreiras nas janelas exalarem perfume para exaltar nosso esprit de corps, Os toldos coloridos dos edifícios descerem e amalgamarem-se com os guarda-sois sobre as mesas nos calçadões, E lá estarei sentado junto a uma delas, Esperando você me convidar para namorar, Moça de pele de porcelana, De lábios moderados e amparados por mão delicada a expressar menos sensualidade do que ingenuidade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SUBINDO AO CÉU PELO SÓTÃO



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

DEDICADO AO MEU PRIMO JOSÉ URBANO FELTRAN - 1951 - 2019

As nuvens noctilucentes descem, Inoportunas aos mais lindos veranicos de maio, Para sorver os docinhos, E os derramam sobre a água-furtada, Unindo-se ao silêncio e à doçura da noite, Rezando suas ave-marias, E redescobrindo sua alma humana, De sua infinita mansarda, E seus escuros e sinuosos meandros, Como os recortes da costa de um mar faiscante, Abrangido por um vasto horizonte, Lá fora, O jardim tapetado com uma camada de pétalas, Uma última folha de paineira que deu lugar a uma flor, É levada pela brisa de encontro à sua porta, Murmura como onda solitária lavando a praia, Ainda não tem seu sono imorredouro perturbado, Deitada sob o recanto esconso, O desvão do telhado, Infindo para andorinhas e corujas, Altivo e inconquistável pelas enchentes, Sonha como um rio eterno em direção à imensidão dos oceanos, Resplandece o rosto sob o olhar de um anjo que te assiste do alto, Sente seu amor nele manifestado, Desperta sua esperança, Faz jorrar sua alegria, Vem te ensinar a voar, E subir ao céu.   



domingo, 18 de fevereiro de 2024

INVEJA


Texto com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.

Homenagem a Daniel Piza, o melhor jornalista do Brasil, morto em 30 de Dezembro de 2011, com apenas 41 anos.



Deus trouxe-o ao mundo com todo este talento, toda esta precocidade, e bem que poderia ser por pura sorte, sem mérito, no máximo por mera obstinação para encontrar as oportunidades e aproveita-las, não sem antes receber uma pequena ajuda decisiva que lhe permitiu por em prática seu intelecto com uma modéstia que chega a pedir desculpas pelo saber que você adquiriu. Você não me conhece e eu só conheço um pouco de suas ideias que me causam tanta inveja. Deveriam ser os mesmos os anjos que soaram suas trombetas aos nossos nascimentos, mas eles continuam trombeteando só para você e arrancando de seus admiradores elogios rasgados pelo seu brilhantismo e a serenidade que você mantém diante de seu sucesso. Sempre procurei encontrar um defeito, por menor que fosse, um mau gosto, por mais unânime que fosse, em tudo que você diz e faz. Mas, confesso, esta sua inesperada partida chocou-me e levou-me a cobrar de Deus uma explicação. Fui instigado a olhar para seu rosto de homem com sorriso de menino. Fui impelido a descobrir o resto de você que eu não conhecia e minha inveja tornou-se maior que o seu sonho que nunca se realizou. Era eu quem deveria partir primeiro, mas Deus mantém-me neste mundo no seu lugar, no seu papel que não tenho capacidade de desempenhar. Resta-me apenas prestar-lhe uma homenagem que se tornará insignificante sob tantas outras manifestadas por gente tão grande como você, não sem antes minha inveja voltar a assumir o controle das minhas emoções quando alguém, inadvertidamente, lembra de sua simplicidade apesar de sua riqueza material. Eu já tinha encontrado uma desculpa para justificar meu retardamento, mas ainda tenho dentro de mim um daimon que pede-me para seguir seu exemplo, partindo do degrau mais baixo que você galgou há tanto tempo, e para pedir-lhe desculpas pela minha inveja que, se chagasse ao seu conhecimento, teria, no máximo, feito você se entristecer com minha pequenez.


sábado, 10 de fevereiro de 2024

CHUVA




Texto de autoria de AUSTMATHR VIKING DUBLINENSE com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Sombra, Sombra, Sombra, Tomba, Tomba, Tomba, No sol, Neste aréu e na sua areia, Ele ao léu e você na sua esteira, Com aroma de bronzeado seio, Sob olhares cobiçosos de corpo inteiro, Nas nuvens em formação, Escuridão, Escuridão, Escuridão, Trovão, Trovão, Trovão, Correndo atrás do relâmpago, Fosforeia a caligem do baixo teto do firmamento, O susto vem-lhe do âmago, O poente escurecerá a qualquer momento, Carece apressar o sutiã e a canga, Afã e miçanga, Uva, Uva, Uva, Chuva, Chuva, Chuva, Derrama água na praia, Se molha no mar, Ela ouve seu coração e resolve não fugir da raia, Quer ficar para se maravilhar, Descobrir que é o amor que faz chover, Como o suor de amantes ao deitar, Ela já não tem o que temer, Os olhos antes marejados de amarguras, Agora choram de alegria alvissareira, De ver a chuva cair como lágrimas das alturas, O sol voltará amanhã, Mas somente uma precipitação de amor pode reinar a vida inteira.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

ONDE AS ESTRELAS DORMEM


Texto de autoria de AUSTMATHR VIKING DUBLINENSE com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



A felicidade amordaçada e raptada, Nos encoraja a sair pelo mundo e encontrá-la, Somos tardios nestes tempos modernos, Expiamos nos cárceres, E saudamos do exílio, Estivemos lá em cima na colina, Onde as árvores noiteiras, Tão altivas, Frondosas e majestosas, Farfalhavam ao vento que se detinha e fazia uma curva para se fazer ouvido como mulheres rugindo as longas caudas de seus vestidos e saias num grande salão, E os notívagos permaneciam em silêncio enquanto as copas e as folhas vergavam com a ventania, Agitavam-se como borboletas multicoloridas pousadas, Revoluteavam em sussurro, Agarrando-se frementes, Contorciam-se em voltas sobremaneira extensas, Sacudiam de nossos olhos a quietude do universo, Assoviando acima de nossas cabeças, Até às estrelas cochilando de pé, Tínhamos que ter a determinação para deixar a terra do amor fraternal, Rumar incansáveis quatorze horas, Para a madrugada de lugares quase perdidos, Onde as ruas não têm nomes, Onde gente parece desafiar nossa fé, Porém, nossas firmíssimas esperanças alentam e fortalecem nosso ânimo, Nossa alma percorre outros caminhos para não chegar à descrença total, Sob um céu de sol igual para todos, Sempre viajamos em todas as nossas recordações, Sempre relembramos bocados de jornadas fracassadas e outras bem-aventuradas, Em terras estrangeiras, Pois cá tens mais um, Mulher, Um crianço, Que tirei de seu ventre, Para ver as estrelas em sono profundo, Cá tens mais um, Mulher, Um sonhador, Que dorme pensando onde fica o cativeiro de nossa sequestrada.