sábado, 27 de maio de 2023

PÉSSIMO AGOURO


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


ESTES FORAM MEUS COMENTÁRIOS SOBRE A CRÔNICA DELÍCIAS PELO BURACO DA FECHADURA, DE HUMBERTO WERNECK, PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO EM 24/12/2019 (Leia esta crônica na íntegra abaixo do vídeo).A ilustração é uma foto que o Humberto Werneck tirou da Nossa Pietà, numa esquina da Avenida Paulista, no dia 30 de Novembro de 2019, e que foi capa da edição de dezembro de 'O Trem Itabirano', ótimo jornal mensal, segundo Humberto, criado e editado por Marcos Caldeira Mendonça na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade.

Neste dia madraceirão, largado num sofá, coçando o saco, dando tratos à cabeça e catando alguns inesperados e folgados pediculus humanus, deleitei-me com sua crônica natalina, sempre repleta de bela eloquência, e que só perde para a elegante mensagem de natal na capa do jornal O TREM. Por sorte, nossa Pietá, magnificamente fotografada por você, estava devidamente coberta. Modéstia à parte, tenho o mesmo donaire deste Marcos Caldeira Mendonça. De volta ao tema principal, quando eu tinha seis anos ganhei um trenzinho do Papai Noel, mas meu primo Garfão fez o mesmo que um espírito de porco fez com você. Também não traumatizei com o apocalipse. E de roldão, aquele tridente do diabo roubou minha pureza. Comunicou-me que não vim ao mundo pelo bico da ave pernalta da família dos ciconiídeos. Você, disse ele, saiu da barriga de sua mãe via vaginal. En passant, digo de onde vem nosso espírito de porco. Daquele demônio que ocupava o corpo de um inocente com uma legião. Diante da ameaça de expulsão por Jesus, o tinhoso pediu ao filho do homem para baixar os seis mil legionários (número de soldados daquele destacamento militar romano) numa vara de porcos que circulava no local. Tendo seu pedido atendido, precipitou os suínos no mar da Galileia, que, na verdade, era um lago. A inventora desta fantasiosa história inspirou-se no ritual de purificação dos Mistérios de Elêusis no culto das deusas Deméter e Perséfone da antiga Grécia de Sócrates e Platão: porcos lançados ao mar para banho e sacrifício para afastar demônios. Sua saudosa e sublime crônica levou-me à quinta leitura de um velho livro que guardo desde os anos oitenta: The Mysteries Of Mithra, escrito em 1902 por Franz-Valéry-Marie Cumont, arqueologista e historiador belga. Uma nota na contra capa lembra-me todos os desvelos que sua mãe tinha para os adereços natalícios, especialmente as folhas de papel grosso, com uma demão de cola, polvilhadas com especularita, manipuladas com mãos de artista. A nota do livro diz: We have made every effort to make this the best book possible. Our paper is opaque, with minimal show-through; it will not discolor or become brittle with age. Pages are bound in signatures, in the method traditionally used for the best books, and will not drop out. Books open flat for easy reference. The binding will not crack or split. This is a permanent book. E, de fato, o danado nunca solta uma folha sequer. É um livro para toda vida, assim como são suas deliciosas lembranças dos tempos de criança, eternizadas nos seus textos jornalísticos. A releitura dos citados mistérios trouxe-me à memória as ferrenhas discussões nos concílios do século 4 da era comum (e.c.), para decidir quais dos mais de trinta evangelhos fariam parte do cânon cristão e qual seria a melhor data para o nascimento de cristo. Comunidades cristãs do século 3 e.c., principalmente no Egito, comemoravam o nascimento do nazareno no dia 6 de Janeiro, em adoração aos magos, o clero oficial dos persas, a partir do qual surgiu a lenda cristã dos três reis magos. O Concílio de Niceia de 325 e.c. condenou tal data como sendo uma heresia e propôs outra. Finalmente, em 354 e.c., decidiu-se que o dia do nascimento de Jesus seria 25 de Dezembro, porque era no solstício de inverno que celebrava-se o renascimento do deus invencível, o Natalis Invicti, Deus Sol Invicto dos romanos, uma ideia tirada de Mitra, o Deus Sol da mitologia persa, que morreu e ressuscitou. Caro Humberto, não sei se é sábio dizer 'no ano felizmente passado', porque acredito que o próximo promete ser pior que o atual. Talvez, melhor seria pedir ao tempo, este majestoso senhor da eternidade e do infinito, para nos retroagir aos nossos dias de inocência. Feliz 2020!




Humberto Werneck Delícias pelo buraco da fechadura
Humberto Werneck
Como naquele dito sobre a festa, melhor ainda que o presente, muitas vezes, era esperar por ele.
Aproximando-se o Natal, a nossa mãe – pronome possessivo que chegou a abarcar onze crias, número suficiente para formar um time feminino de basquete e um masculino de vôlei – se munia de lápis, papel e paciência para ouvir os mais delirantes, os mais inexequíveis desejos da meninada.
A dona Wanda e o dr. Hugo com certeza tinham sua estratégia para, de modo indolor, nos convencer de que nem todas as nossas fantasias, quando não a maioria delas, estariam atendidas sob a árvore de Natal na manhã de 25 de dezembro. Provavelmente sabiam que também o inesperado pode ter o seu encanto, e lançavam mão de surpresas gostosas para prevenir eventuais decepções da filharada. O fato é que o expediente funcionava. Pelo menos não me lembro de ter sentido falta de alguma coisa ao desembrulhar o que o Papai Noel deixara para mim.
A única exceção, já contada aqui, foi, bem menino ainda, um par de muletas, petrecho que, para mim, passava ao largo da ortopedia para se constituir num instrumento de prazer, tão fascinante quanto as pernas de pau sobre as quais eu via se equilibrarem uns malabaristas. Não me lembro do que terá vindo em lugar delas, de modo a compor um trio de regalos que incluía um par de óculos escuros e um anel de prata, com chapinha para gravação de iniciais, adornos em cujo uso & gozo fui flagrado numa foto aos 4 anos de idade.
Não me lembro, também, de ter pedido a Papai Noel o exemplar do Missal Cotidiano que, aos 10, encontrei aos pés da árvore, junto com o meu primeiro relógio, um Lanco dourado de 15 rubis, minúsculas gemas que, no interior da máquina, providenciavam o seu bom funcionamento, desde que o usuário não se esquecesse de dar corda uma vez ao dia. Meu Lanco parou irremediavelmente em algum ponto do caminho, mas o Missal Cotidiano (“editado e impresso nas oficinas tipográficas do Mosteiro de São Bento, Bahia”, em março de 1954) segue acompanhando o infiel que perdeu bem cedo a fé religiosa, mas que ainda assim o trata como relíquia, quando menos pela razão pagã de figurar, no topo da folha de rosto, o seu nome completo e a data do presente, “25-12-1955”, na bonita letra materna. Ao longo de décadas, mais de uma vez voltei a esse livrinho, e outras tantas voltarei, não para rezar, mas para, digamos, procurar nomes e datas na extensa lista de santos do dia.
Já não sei quando foi que algum espírito de porco me comunicou que “o Papai Noel é o pai da gente”. Da revelação não me ficou o menor trauma, diferentemente do que aconteceu quando alguém me fez saber que não passava de invencionice a cegonha que por onze vezes pousara no lar de Hugo e Wanda – assim como, aliás, em igual número de ocasiões, na casa ao lado, moradia do tio João Antônio e da tia Yedda. Mesmo nas Minas Gerais daquele tempo, católicas a mais não poder, e sem televisão para ocupar os casais, bem poucos telhados terão sido tão assiduamente frequentados quanto aqueles dois pela referida ave pernalta da família dos ciconiídeos.
*
Mal entrava dezembro e a nossa mãe exumava dos armários uma árvore natalina artificial, cujos galhos, dobrados junto ao caule no restante do ano, me sugeriam um guarda-chuva verde fechado. Junto com ela e as respectivas bolas coloridas, voltavam à luz algumas folhas de papel grosso que, depois de receberem uma camada de cola, haviam sido polvilhadas com um minério de ferro que, por brilhar ao sol, se chamava especularita. (Não se impressione com a exibição de ciência: dono de uma ignorância especializada também em geologia, recorri aqui às luzes de meu irmão Rodrigo, engenheiro de minas e metalurgia).
As folhas de papel eram manipuladas com mãos de artista para que compusessem, sobre uma mesinha baixa, uma réplica doméstica da gruta onde nasceu Jesus. Espelhos com as margens recobertas de areia simulavam laguinhos. Aqui e ali, nosso presépio era adornado com tufos de musgos que, tanto quanto a especularita, íamos colher nos contrafortes da Serra do Curral, hoje em grande parte tomados por uma urbanização voraz.
A paisagem era habitada por figuras de louça colorida de Nossa Senhora e São José, além de considerável fauna à qual não podia faltar uma literal vaca de presépio. Vindos de longe, os três Reis Magos a cada dia avançavam alguns milímetros em direção à gruta, com suas oferendas de ouro, incenso e mirra, palavra esta que me fez correr ao dicionário. O berço de Jesus permanecia vazio até os primeiros minutos de 25 de dezembro; mas nós, a arraia miúda, não víamos o momento em que o recém-nascido era ali gloriosamente entronizado, com seus bracinhos abertos para nos abençoar. Sua chegada se dava altas horas da noite, quando papai & mamãe Noel, pé ante pé, vinham depositar sob a árvore os nossos presentes.
Quando acordávamos, bem mais cedo que o habitual, encontrávamos trancadas as portas da sala, e havia alguma disputa para ser o primeiro a colar o olho no buraco da fechadura, no mais inocente dos voyeurismos. Como não dava para saber quem ganhara o quê, a nossa impaciência ia acordar os pais, no quarto ao lado. Num daqueles Natais, houve a surpresa de verificar que as pilhas de presentes não estavam, como de hábito, no piso da sala, e sim no assento do vasto sofá ao fundo. Depois soubemos que uma chuvarada noturna tinha apanhado de jeito uma janela mal vedada e provocado uma inundação no soalho. Mas nenhum presente se molhou – motivo adicional para a nossa já enorme admiração pelo Papai Noel: cuidava de tudo, o danado!


O Estado de S. Paulo, 24/12/2019;

quinta-feira, 25 de maio de 2023

NO LIMITE


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

A guerra das ruas invade o atendimento de emergência, Chove dor terebrante nas cabeceiras de macas, Os sangradouros despejam todos os defumados, Éteres perfumados e coágulos inodoros, Gateiros de gatos quebram o doce silêncio sepulcral e harmonioso da sesta de mortualhas, E com murmúrio marmóreo, Sem temor e nem deferência, Tiram das covas de medíocres valores, Os epitáfios, O ouro da boca e das mãos, As almas ainda não enterradas, Formam um cortejo rumo ao céu plácido e vulnerável, Rodopiam entrelaçando dedos e tornozelos, Para tapar buracos de ozônio, E dizem que isso é o mínimo que se pode fazer para o que está no limite da agonia não vá além do limite das forças do amor.


terça-feira, 23 de maio de 2023

POLITICAMENTE ERRADO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Em Washington poderia sentar-me na cadeira ensebada do presidente e nos assentos viciados dos congressistas, Mas preferi ir ao velho teatro em Viena e sentar-me nos lugares favoritos de Hitler e Freud, Para sentir um pouco a loucura de um e a cura prescrita pelo outro, Que todos assentos ergam-se acima de todos traseiros, Em Londres poderia esfregar a bunda no trono da rainha e limpar meus sapatos no capacho dos americanos na Downing Street, Mas preferi ir a Liverpool escrever meu nome no muro do orfanato Strawberry Field e ficar frente a frente com Eleanor Rigby no seu banco de jardim, Que as medalhas dos Membros do Império Britânico sejam enterradas abaixo do túmulo de John, Na França poderia deitar-me na cama do Palácio de Versalhes onde Maria Antonieta dormia e subir ao altar de Notre-Dame onde Napoleão se autocoroou, Mas preferi entrar na casa vazia onde Joana D'Arc nasceu em Domrémy e na praça do mercado em Rouen onde ela foi queimada viva, Que o altruísmo erga-se acima de suas ambições, Na Itália poderia ir ao Vaticano ouvir o papa falar hipocrisias ao povo na praça e ao berço da Cosa Nostra na Sicília, mas preferi ir a Calcutá ouvir ecos dos lamentos de Ghandi e das noites escuras de Madre Tereza, Que a igualdade entre os povos não faça uns mais iguais que os outros, Em Israel poderia visitar todos os pontos turísticos e fictícios que movimentam a indústria da fé cristã, mas preferi ir a Atenas para ver o que restou da casa subterrânea de Sócrates e da prisão onde ele foi executado, Que a verdade vos liberte de uma vez por todas, No Brasil poderia ir ao Rio para assistir ao desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e a Brasília para assistir ao desfile das escolas de ladrões nas obras de Niemeyer, mas preferi ir às periferias das grandes metrópoles industrializadas para ver o povo levantar cedo para trabalhar e carregar o país nas costas, Que o berço esplendido pare de balançar e vos acorde desse sono eterno.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

O DIVISOR DE ÁGUAS MUSICAIS

Texto de autoria de Alceu Natali. Direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

Bette Midler, americana, cantora, atriz, modelo e comediante, fazia faculdade no Havaí quando começou a ouvir os Beatles pela primeira vez. Ela se interessou pela música deles, mas não ficou muito entusiasmada. No entanto, se extasiou quando ouviu o álbum RUBBER SOUL. No verão de 66, ela estava trabalhando com um tipo de grupo itinerante de atores e o gerente de palco tocava o RUBBER SOUL dia e noite. E este álbum acabou por conquistar a Bette, liberou algo em sua imaginação que ela nunca tinha vivenciado na música popular. Ela se lembra disso como se fosse ontem. Bette confessou que se rendeu ao talento dos Beatles com este álbum, porque ele era uma avassaladora onda de entusiasmo e ideias originais. Depois desta experiência com RUBBER SOUL, Bette resolveu abandonar o teatro, começou a cantar em bares e tornou-se uma cantora e compositora. Ela  nunca foi do tipo de pessoa de se engajar em qualquer modismo passageiro. Mas os Beatles eram diferentes. Vieram para ficar para sempre. Eles tinham algo mais e a dominaram. Bette sempre ficava na defensiva, porque era cínica. Ficava à margem de tudo, só observando. Nunca se entregava ao fascínio de figuras populares. As celebridades eram sempre maquiadas com uma grossa camada de artificialismo. Mas os Beatles não. Eram autênticos. E vejam só, hoje ela é uma celebridade no mundo, por causa de RUBBER SOUL, por causa dos Beatles. Enquanto isso, um garoto de apenas 15 anos, aqui no hemisfério sul, já sacava o que a celebridade do norte não percebeu. Os Beatles eram um divisor de águas. Com o aparecimento deles a música passou a ser dividida em dois tipos: antes e depois dos Beatles. Cada vez que ele ouvia RUBBER SOUL ele não tirava os olhos da capa do álbum, procurando algum aspecto singular que a diferenciasse das demais. Será que são estes narizes alongados por entre os olhos? Eles parecem ser diferentes dos outros seres humanos! E os Beatles criaram um divisor de águas em sua própria música. Seus cinco primeiros álbuns marcaram a chegada deles à lua, com composições cativantes, românticas, de letras ingênuas que enlouqueciam as adolescentes. Mas eles queriam ir mais longe, muito mais longe, ir até a Marte. Mas como fazer esta transição sem privar a juventude feminina das cantigas de amor acostumadas ao luar? Como empreender uma viagem mais longa e arriscada sem comprometer a popularidade que conquistaram? Resolveram fazer um teste: mesclar baladas fáceis de serem lembradas e cantadas com letras e arranjos mais complexos, mais intelectuais, mais introspectivos, mais estranhos que Marte. E esse garoto aqui, menor de idade, já enxergava tudo isso. HELP é o último álbum romântico. RUBBER SOUL marca a transição do romântico para o psicodélico que começou com o insuperável REVOLVER. É por isso que o boy achava um barato John cantar a lírica e melosa GIRL e, ao mesmo tempo, a enigmática NORWEGIAN WOOD. Ele conseguia perceber a enorme diferença entre a inocente YOU WON’T SEE ME e a poderosa DRIVE MY CAR de Paul. E se todos sacaram o que o adolescente brasileiro descobriu em tenra idade sabem que os Beatles não foram só a Marte, mas deixaram o palco dos planetas internos e externos e acabaram saindo do sistema solar.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

MILAGRE


Assista ao vídeo abaixo com a tela inteira e veja o hubble escolher uma pequena área do céu, dar alguns zooms até chegar aos confins de uma parte do universo observável (que o Hubble pode alcançar - outro telescópio 10 vezes mais potente que o Hubble já foi lançado no espaço)







Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)


A vida é uma maravilha, A vida é um acidente, Porque a terra brilha, Acordo contente, Porque a terra dá voltas, E leva-me com ela, E leva escoltas, A lua que é sua vela, E seu rodopio de bailarina, Dançando a noite com o dia, Caminhando divina, Em torno de sua estrela guia, Na escuridão com Marte, E na claridade com Vênus, E meu sono me reparte, Com Fobos e Deimos, Só no nome o temor, Só na vida a morte, Até na morte o esplendor, Porque a vida é uma sorte, A vida é uma casualidade, Como todos os mundos, À mercê da eventualidade, Meros ruídos de fundos, O universo é uma maravilha, O universo é um acidente, Pequena luz que brilha, Na imensidão negra e vivente, As galáxias atracam-se, Aniquilam incontáveis sistemas, Os restos ajuntam-se, Voltam a ser as mesmas, Com todo esse barulhão, Com todo esse caos, O sol é um borbotão, Circundado por naus, Saturno anelado, Urano gigante do gelo, Netuno azulado, Júpiter grandioso apelo, A vida é breve, O universo expande, Meu sono é leve, Outro universo esconde, Continuo a bordo, Sem deus, religião e padre, Cada vez que acordo, É um novo milagre.

domingo, 14 de maio de 2023

WUTHERING HEIGHTS

Written by Alceu Natali. Copyright protected by Law # 9610/1998. 

I have no memories of that purple and fertile land, Named after the mother of a heaven´s son, No memories of that residence in a backyard garage, All I have are hearsay stories, But following the path of an armadillo, Memories go up to the burrow entrance on the surface to look around, That is when a second mother comes to teach to write at an age that still needs to grow, To discover the world, A treasure unearthed beneath open sky, And waiting for lucky pioneers, Eventually leading to a foot cut by a shiver of glass, That hurts less than it scares, Like the lonesome darkness on the second floor, Haunting in wuthering heights, And making living souls grieve, Atonements come with weeping and writhing under a table, Or the primer of a toy gun, The pedalling tin car, And the steering wheel under repair, Delaying but not failing, From this land we take away textile yarn cones improvised as carnival adornments, A belt with an unforgetable elephant buckle, And the bleeding hens´feet pierced by termites sharing the same space on a truck´s body, And when following the paths of traps made of lianas and bamboos, I can see that no fish can escape them, But they do not keep the second mother in my world, And it is sad they seem to throw all recollections in the forgetfulness river, As if we were ready to reincarnate, And in the end what is left are the wild wasps taking care of the grid very close to the ground, Drawing air and sunlight to the basement, And the watermelon trees that start to sprout in the very moment we are about to leave home, And that brings up obscure reminiscences marching on in a scorching heat to the plain of Lethe, A barren waste destitute of trees and verdure, The river of unmindfulness, Whose water no vessel can hold, Only makes one forget, Makes us sense fake breezes, And will not let your only son see you departing, A son you wanted to possess, With good intentions, Since you were only misery from a run away mother, With no hard feelings for being hated, For being loved by quite a few, And without any reason to scare anybody away in bad dreams, Not knowing anything about your lost battles, And right now your only son leaves behind those devastating dark nights with nobody to share feelings with and he calls your name, My second mother, Alice, That is me, Your only son, I am still on the other side, As lost here as you are there, I´ll be home soon, I will exorcise my first mother´s last Hail Mary, Wishing we can get together, This time with open eyes, To hold you, And maybe together we can choose our new destiny, Lachesis may elect the genius to be the guardian of our lives and the fulfiller of our choices, And this genius may lead our souls first to Clotho, And draw them within the revolution of the spindle impelled by her hand, Thus ratifying our fate, And if we are fastened to this, She may carry us to Atropos, Who spins the threads and makes them irreversible, Whence without turning round we may pass beneath the throne of Necessity, And who knows, We may start a new life, And restore our stolen time.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CONTO: DESTE LADO DA VIDA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

O mundo inteiro passa por aqui todos os dias. De 5 a 6 vezes. A maioria não se lembra de nada. Muitos guardam alguns fragmentos de suas visitas e logo os esquecem. Outros se entusiasmam com o que retiveram em profundidade. Esforçam-se para recapitular suas experiências, mas estas acabam sendo relativizadas, e depois de um certo tempo eles desistem. Poucos são bem sucedidos, e conseguem dominar os caminhos que os trazem para cá. Eles são bem mais felizes que o resto do mundo, aliás, devo ressaltar, eles são os únicos seres humanos felizes. Eles vêm a este lugar com muita frequência, mas ainda podem ufanarem seus átomos em contentamento infinito se aprenderem a substituir, permanentemente, a vida ilusória que levam na superfície da terra, pelo esplendor indescritível e sem limites que podem vivenciar aqui. Eles podem se tornar deuses, e sempre que faço menção a este objeto de culto e desejo ardentes, que se antepõe a todos os demais, não resisto à tentação de florear um pouco sobre o sentimento de estar onde estou: Eles podem beber perfumes, na flor silvestre que embalsam os ares. Entre a maioria desventurada deste planeta, exceção feita a uma minoria que injustamente rouba do pobre para viver melhor, embora tenha nascido igualmente já condenada pela natureza, há aqueles vãos como sombras que passam, que consomem muitos anos aventurando ao incógnito suas fragilidades, entregando-se a utopias para iludir suas desgraças do cotidiano. Um exemplo, é um astrônomo alemão que diz estar prestes a descobrir como viajar na velocidade da luz. Na verdade ele quis dizer 99% da velocidade da luz, uma vez que ela é absoluta e ninguém conseguirá atingi-la em 100% com uma máquina. Ela percorre o espaço a quase 300 mil quilômetros por segundo. Este germânico anseia por uma futura odisseia à estrela Vega, situada a cerca de 25,3 anos-luz da terra. Não esqueçam vocês que ano-luz não é uma medida de tempo, mas de distância. Um ano-luz equivale a quase 10 trilhões de quilômetros. Este cientista calcula, com sua razão e sua exatidão, que levariam 3,6 anos-luz para chegar em Vega, deslocando-se a uma velocidade constante de 99% da luz. Vejam abaixo como se calcula o tempo de viagem a Vega:
 
 

 
 
 
antes de prosseguir, aqui vão algumas observações: a) Vega está a cerca de 25,3 anos-luz da terra, mas como se considera 99% da velocidade da luz, a distância aumenta para 25,6 anos-luz; b) As letras yrs são uma abreviação da palavra anos em inglês; c) O tempo real de viagem resultante desta equação é de 3,555, mas foi arredondado para 3,6 somente para facilitar o raciocínio. Se alguém chegasse a Vega, talvez descobrisse pouca coisa além do que já se conhece por meio de geringonças como o hubble. Por outro lado, o viajante poderia colher amostras do disco de poeira que circunda Vega. Isso ajudaria a comunidade científica a definir se este anel de poeira é um protótipo de planeta em formação ou apenas destroços de um possível planeta-anão que se chocou com a estrela. Uma vez terminada a missão Vega, o astronauta teria que viajar mais 3,6 anos-luz para retornar ao nosso planeta. De acordo com a comprovada Lei da Relatividade de Einstein, o tempo anda muito mais devagar para quem está em movimento constante na velocidade da luz em relação a uma pessoa  estática no solo. O cosmonauta passaria 7,2 anos viajando pelo espaço, mas, para quem está na terra, o tempo decorrido seria exatamente aquele calculado para uma viagem de ida e volta a Vega: 50,6 anos. Quando chegasse à terra, o astronauta teria envelhecido apenas 4 anos, mas nosso planeta teria avançado 50  anos no futuro. Os colegas de profissão do astronauta já teriam, possivelmente, morrido, e seria possível, também, que seus substitutos o surpreendessem com novas informações sobre Vega obtidas com super telescópios de última geração, muito superiores ao hubble, desenvolvidos nos últimos 50 anos, e que perderiam pouco para as observações de Vega feitas in loco. Conclui-se, portanto, que o cosmonauta gastaria mais de sete anos de sua vida trancado dentro de uma nave, sem ter o que fazer, a não  ser esperar, esperar e esperar, tendo como compensações apenas o fato de ter envelhecido somente 4 anos nos últimos 50, e poder desfrutar de um estilo de vida e de vantagens tecnológicas muito mais avançadas e emocionantes em seu lar antes dele ter partido para Vega. O retorno poderia ser considerado uma viagem no tempo, uma viagem à terra a 50 anos no futuro. No entanto, o conceito de viagem no tempo não seria muito adequado neste caso, porque não se trataria de uma viagem da terra para a terra, mas de uma viagem à terra a partir de outro sistema solar. Este cientista alemão poderia considerar uma viagem espacial muita mais útil para a ciência e justificar o altíssimo custo de uma odisseia interestelar. Por exemplo: visitar a estrela anã vermelha Gliese 1132, localizada a 39 anos-luz da terra, em torno da qual orbita um planeta rochoso, de tamanho similar ao nosso, descoberto por via indireta e batizado com o nome GJ 1132b. O cientista passaria pelo mesmo tédio capaz de levar à loucura: ficar  mais de 10 anos enclausurado numa espaçonave, sem nada para fazer, a não ser esperar, esperar e esperar, a menos que conseguissem coloca-lo em hibernação artificial comum até o seu destino final. Ao chegar em GJ 1132b, ele poderia se deparar com um planeta semelhante a Marte, sem vida, com muitas montanhas, rochas e com o que poderia ser antigos leitos de rios e bacias de oceanos. O cientista colheria rochas deste planeta e as traria de volta à terra. Daria melhores contribuições à ciência: novas evidências sobre como os planetas são formados e porque a vida não vinga em muitos deles, e a constatação de que qualquer tipo de estrela pode ter planetas à sua volta: anãs e gigantes vermelhas, anãs brancas (como será nosso sol daqui a 5 bilhões de anos), estrelas de nêutrons, sistemas estelares binários e até quaternários. Como no caso de uma viagem a Vega, o cientista envelheceria pouco e a terra muito, e ele seguiria vivendo num mundo muito diferente e, com certeza,  bem melhor que o mundo que ele conheceu, com  gente, atributos e tecnologias humanas que ele jamais imaginou. Um outro cientista, este americano, disse que está prestes a descobrir como viajar no tempo. Ele propõe um avanço de 500 anos no futuro da terra. Para realizar esta empreitada, ele terá que viajar na velocidade próxima da luz durante 7 anos. Todo este tempo preso numa nave espacial valerá a pena. Imagem o mundo que ele encontrará! Simplesmente fantástico! Tudo mudado! Ele verá coisas que nenhum sonho poderá lhe dar. Ele se sentirá como um dinossauro comparado aos novos seres humanos. Ele pode querer ficar, ao custo de um enorme esforço de adaptação. Mas eis o paradoxo: se ele voltar, ele terá envelhecido 7 anos e a terra 500 anos! Ele encontrará o mesmo mundo do futuro que ele levou 3,5 anos para conhecer. Portanto, a opção de ficar ou de voltar é a mesma: ele estará confinado ao nosso planeta 500 anos depois de ter empreendido esta viagem. Uma  viagem ao futuro não tem volta. Ele só poderia reverter esta situação se sua máquina viajasse para o passado também, mas isso parece improvável, por enquanto, porque, segundo a chamada teoria da Flecha do Tempo, este se movimenta sempre para frente, do passado para o futuro, não havendo possibilidade de regresso. A Lei da Relatividade de Einstein nos possibilita manter a questão em aberto, tanto para viagem ao futuro, quanto ao passado. Volto ao cientista americano. Não importa o que ele decida fazer, ficar no futuro de 500 anos à frente ou voltar para este mesmo futuro na viagem de retorno à terra. A experiência e as consequências serão inacreditáveis, pura magia. Existe algo mais fantástico que isso? Sim, existe! algo extraordinário, muito além da imaginação de deus, que torna a utopia realizável, algo corriqueiro. Vocês não precisam de nenhuma máquina. Não precisam passar pelas agruras de anos enclausurados dentro de qualquer aparato, sem ter o que fazer. Basta entrar em estado de Hibernação Consciente, a HC, diferente da Hibernação Artificial, a HA, que bloqueia e congela tudo, as funções vitais e a consciência, de tal forma que cessam os pensamentos e não é possível nem mesmo sonhar. No caso da HC, o corpo é congelado e anestesiado, mas a consciência permanece em funcionamento. Vocês continuam pensando o tempo todo. E como vocês devem saber, os pensamentos e tudo que eles vislumbram tornam-se muito mais aguçados quando a consciência se desvencilha do corpo, projetando-se para fora do cérebro. A clareza dos pensamentos pode ser comparada à diferença entre uma antiga TV de tubo em preto e branco e uma TV HD de LED. E o que acontece enquanto vocês estão em HC? Primeiro vou dar uma explicação do ponto de vista temporal. Estar em HC não vai torná-los imortais. Todos nós morreremos um dia, por enquanto. O que o HC proporciona é uma vida até 10 vezes mais longa que a normal. Em HC, o tempo também anda mais devagar, como na Teoria da Relatividade de Einstein, mas pode lhes parecer paradoxal: o corpo físico em HC vive muito menos que os pensamentos separados da massa encefálica, e para quem não sabe, o pensamento viaja a um velocidade infinitamente superior à velocidade da luz. Eis alguns exemplos bem simples. No nível mais baixo, o Nível 1, vocês permanecem em HC por apenas 14 minutos, mas seus pensamentos criam uma vida real em outra dimensão durante 1 semana. No Nível 2, vocês hibernam durante 15 dias, e vivem em pensamento por seis meses. O nível 3 é bem mais audacioso: vocês são colocados em HC durante quase um ano, 304 dias para ser mais preciso, e suas mentes criam vidas reais paralelas que duram 10 anos. O nível 4 não pode ser aplicado a humanos, por enquanto. Vocês teriam que ficar inertes durante 167 anos para viverem em pensamento por mais de 2 mil anos. Então vocês devem procurar um nível intermediário entre o 3 e o 4. Supondo que aquele cientista alemão do projeto Vega seja novo, com uns 20 anos no máximo, e imaginando que ele pudesse viver  até os 90 anos, uma idade bem factível no  estado de hibernação, ele poderia permanecer em HC durante 70 anos e gozar de um vida em pensamento, tão real quanto à que vivemos no estado físico, por 844 anos! E o que ocorre do ponto de vista existencial? Vocês tornam verdadeira uma frase encontrada na mitologia cristã: VÓS SOIS DEUSES. Vocês criam seus próprios mundos, suas estrelas, planetas, flora e fauna, rios, lagos, montanhas, mares e praias paradisíacas, cidades, edificações, logradouros públicos e qualquer coisa que lhes venham à mente. Imaginem tudo que existe de belo em nosso planeta e multiplique isso por quatrilhões de vezes. Vocês podem povoar suas cidades com pessoas conhecidas e desconhecidas, vivas ou mortas, parentes, amigos e inimigos. É claro que eles são apenas projeções de vossas mentes, mas em vossos mundos todos eles têm corpos físicos, conversam com vocês, interagem da maneira que vocês desejarem. Vocês os comandam, comandam tudo, assim como podem também conceder livre arbítrio para todos eles, dar a eles veículos, habitações, roupas, empregos, coisas mundanas e inimagináveis. Ninguém pode machucar vocês, a menos que vocês queiram. Tudo é criado apenas com vossos pensamentos, mas vocês têm corpos, podem se tocar, sentir fome e sede Se vocês estão com vontade de comer massa, num instante vocês criam um restaurante italiano que serve um vinho do tempo dos Beneditinos. Podem criar supermercados com todos alimentos que existem na terra e em outros planetas habitados. Nada pode atingir vocês. Nunca terão doenças, nunca precisarão trabalhar ou ter dinheiro. Para que se tudo que vos apraz pode ser criado só com a mente? Vocês podem se acidentar e sentirem dor somente se vocês se descuidarem de propósito só para relembrarem o que é o sofrimento esquecido na terra. Exemplo: vocês pisam em falso, ou tropeçam, escorregam, caem e quebram as pernas. Num instante vocês criam um hospital de primeiro mundo que troca suas pernas em frações de segundos. Aliás, vocês nem precisam de hospitais. Podem trocar as pernas quebradas por novas apenas com o pensamento. Ninguém consegue agredir ou matar vocês, a menos que vocês queiram e induzam pessoas a vos violentar. Se vocês morrem deste lado da vida, seus corpos físicos em HC despertam, como acordar de uma sonho. Para voltar para cá basta entrar em HC novamente. Se seus corpos físicos em HC morrem, algo muito difícil, seus pensamentos cessam, suas vidas aqui acabam. Em outras palavras, vocês morrem como todo nós morremos, por enquanto. Se qualquer coisa que vocês criaram tornarem-se monótonas, vocês podem modificá-las como e quando quiserem. Podem transformar um mar em deserto, um jardim numa floresta, rios em chuvas torrenciais, altos prédios em choupanas, pessoas em animas e vice-versa. Quando digo que vocês podem fazer de Deus uma simples marionete, não estou querendo ofender vossas crenças religiosas. Vocês podem romper todas as leis da física e do universo como as conhecemos. Podem eliminar a gravidade e por tudo a flutuar.  Com ou sem gravidade, vocês podem voar como pássaros, podem fazer o teto do céu noturno descer a 1 km da superfície de modo que as estrelas iluminem os poros de  suas peles sem cegá-los, podem fazer chover de baixo para cima, fazer animais falarem como humanos, dobrar ruas e avenidas no sentido vertical e mais um vez  no sentido horizontal para caminhar de ponta cabeça, podem iluminar os recintos de todas as habitações com arco-íris e auroras boreais. Se a salinidade dos mares não vos agrada, vocês podem fazer o sal desparecer, a densidade da água continua a mesma, vocês não afundam, e mesmo que afundassem, podem nadar por horas e dias debaixo da água como peixes, sem equipamentos de mergulho e tubos de oxigênio. Não existem limites para nada, e estou falando aqui somente das possibilidades que vocês possam conceber, mesmo que lhes parecem utópicas. Há outros milagres aqui que nem posso vos descrever, porque estão astronomicamente além de vossa compreensão. Há pessoas que descobriram este lado da vida e aqui criam seus mundos e vivem até cerca de 900 anos. Mesmo jovens casais, com filhos pequenos, estão vindo para cá. Isso mesmo, vocês não precisam vir sozinhos. Podem trazer suas famílias colocadas no estado HC. Pensem bem: todos nós vamos morrer. Chegar aos 90 anos ou mais na terra é um privilégio de poucos. Em estado HC, chegar aos 100 anos de idade é algo quase 100% certo. Vocês só morrem em estado HC se tiverem nascido com alguma doença congênita. Enquanto vocês estão no estado HC vocês não adoecem nunca. Se vamos morrer de um jeito ou de outro, por que dar duro no trabalho para sustentar uma família, se estafar, ser escravo do dinheiro, pagar contas, ser roubado por criminosos e governos, sofrer com as mazelas de nosso mundo, ver dois terços da população mundial vivendo na miséria, enfim, levar uma vida árdua e estressante que pode vos levar a uma morte prematura, um AVC ou enfarto, um câncer de mama ou de próstata. Deste lado da vida vocês são os senhorios e as pessoas que vocês criam não são, necessariamente, vossos escravos, mas ao contrário, complementações de vossa felicidade. E antes que eu esqueça, vocês podem fazer amor com homens e mulheres criados por vocês e ter orgasmos. Vocês podem engravidar e ter bebês, e se vocês não quiserem as crianças vocês podem simplesmente eliminá-las. Não se preocupem, vocês não estão matando seres humanos, mas apenas apagando projeções de vossas mentes. E então, o que vos parece? O que é melhor: viver no máximo uns 100 anos no  sofrimento e na dor ou quase mil anos num paraíso? Tudo o que estou lhes dizendo já vem acontecendo faz um bom tempo. A vida do lado de cá evoluiu muito. O estado HC foi aprimorado e passou a ser chamado VCC (Vida Congelada Consciente). Certamente todos vocês sabem que há muitas pessoas que pedem para congelar seus corpos quando elas morrerem, na esperança de serem ressuscitadas quando no futuro forem descobertas curas para as doenças que as levaram à morte, soluções para tudo o que levem os seres humanos à imortalidade. Elas fazem isso não para conhecer o futuro, mas apenas para tornarem-se imortais. A VCC já faz isso, mas com pessoas vivas. Elas podem permanecer em estado VCC por milhares de anos e, consequentemente, viver em pensamento por bilhões de anos. Ainda não foi possível conquistar a imortalidade do corpo físico, mas já se alcançou a imortalidade do pensamento. Vocês dirão que isto é contraditório, porque uma vez que a VCC não garante a imortalidade do corpo, então não se pode alcançar a imortalidade dos pensamentos, porque eles só podem emanar de corpos vivos, de consciências desprendidas de cérebros vivos. Além disso, vocês diriam, é impossível manter seres vivos eternamente no estado VCC, porque seria o mesmo que vencer a morte. Mas este é um segredo revelado somente àqueles que conseguem chegar a este lado da vida. nós já derrotamos a morte! Estão completamente enganados aqueles que possam pensar que escrevi este texto inspirada no filme A ORIGEM. Fui eu quem produziu este filme, inspirada na vida que levo aqui, e o meu filme limita-se a reproduzir nossas imaginações antes de eu conhecer este lado da vida. Agora, enquanto espero por vocês, tamanha é minha alegria por anunciar essas boas novas que não resisto à tentação de recorrer, mais uma vez, aos nossos antigos floreios: calo a paz como um sigilo pelo que sinto aqui, De suprema felicidade, ele é o silêncio e a prece que a alma pede durante meus eternos dias, enquanto aí onde vocês se encontram, numa vida ainda sofrível, à noite, lírio branco, os astros guardam segredos, dos beijos dados pelos namorados a medo e efêmero contentamento.

ALICE



Texto com direito autoral protegido pela Lei 9610/98

Pequena mãe órfã de um grande filho, De coração deportado, Você precisa saber que no meu mundo tornei-me apenas um maltrapilho, Com espírito aquebrantado, Minha indignação foi não ter vivenciado à plenitude todos os seus dias, Não só este estranho esquecimento é imperdoável, Mas até pode ser providencial e premeditado, Se Deus padeceu-me da moléstia que oblitera a memória, Então dê-me seus pequenos pés para calçá-los, Dê-me seus pequenos pés para beijá-los, Minha pequena tia engrandecida por uma nobre alma, De espírito inconformado, Na encruzilhada de nossos mundos só pude bater-lhe palma, Com contentamento deslembrado, Seu silêncio que parece ser eterno deve ter sido votado em prol de minha liberdade, Seu paradeiro, Revelai-me, Se quiser e puder, A seu tempo, Seu hospedeiro, Deixai-o ao seu discernimento, Você pode ter perdido a direção, Mas não se arrepende desta inexplicável danação, Agora tenho novos cadernos para você ensinar-me a escrever meu nome, Tenho novos cadernos para você gravar a lembrança que não some, Minha pequena avó órfã de um grande neto, De humildade sem igual, Perdi para o seu mundo nosso melhor e único afeto, De entrega incondicional,  Minha redenção só pode ser alcançada com suas deficiências de nascença, Com sua repentina e sinistra premonição, Consequência oportuna de um destino encoberto, Que foi, Em suma, A razão pela qual sua prostração ao chão em agradecimento, Congênita à grandeza de uma mulher corajosa e inseparável dela, Não podia querer estancar a morte no momento em que traga-se a dor, Degrada-se o temor, E subleva-se o amor, Então dê-me seu pequeno colo para me recostar porque ainda não passei de uma criança, Dê-me seu pequeno colo para cochilar porque ainda preciso sonhar com minha infância, Minha pequena irmã, Você precisa saber que ainda tenho dentro de mim sua última bênção, Tenho dentro de mim toda sua solidão.





quinta-feira, 11 de maio de 2023

DEUS


Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Faria de tudo para deixar de ser ladrão, Deixar de ser mentiroso, Multiplicaria meus pedidos de perdão, E cometeria os mesmos erros de novo,
 
Esquecer-me-ia de você nos bons tempos, Riria dos crentes, Atrairia para mim outros tormentos, Choraria, tremeria e rangeria os dentes,
 
Então à noite me apegaria a você, Até as estrelas pararem de brilhar, Vararia a madrugada clamando por você, Até minha última lágrima secar,
 
Faria de tudo para deixar de ser odiado, Deixar de ser maldoso, Imploraria ao mundo para ser perdoado, E me revoltaria com seu amor silencioso,
 
Lembrar-me-ia de você nos maus tempos, Faria mais promessa, Provocaria no próximo outros lamentos, Arrepender-me-ia sem pressa,
 
Então à noite me entregaria a você, Até a terra parar de girar, Ficaria ajoelhado diante de você, Até meu último soluço cessar,
 
Faria de tudo para voltar no tempo, Recomeçar a vida, Passaria pelo mesmo sofrimento, E não sairia do ponto de partida,
 
Inventaria você para lustrar meu ego, Pronunciaria seu nome em vão, Desvirtuaria o aleijado e o cego, Esquecer-me-ia da minha devoção,
 
Então à noite eu jogaria praga em você, Até a lua da meia noite minguar, Sonharia o tempo todo reclamando de você, Até minha última cólera se saciar,
 
Faria de tudo para provar sua inexistência, Lançar minha teoria, Proclamaria a infalibilidade da ciência, Orgulhar-me-ia de minha sabedoria,
 
Anunciaria ao mundo sua morte, Atribuiria tudo ao acaso, Abandonaria tudo à sua própria sorte, Sentiria muita dor pelo meu descaso,
 
Então à noite desejaria ser você, Até o universo morrer e renascer, Recriar-te-ia novamente à minha imagem, Até um dia te conhecer.

terça-feira, 9 de maio de 2023

MAGIA EGÍPCIA

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

mais de um século tornou-se bê-á-bá, nos meios acadêmicos, e mais velho do que andar para frente, na linguagem popular, o fato de que a Bíblia – Antigo e Novo Testamentos – é apenas uma antologia de mitos compilados e reeditados pelos judeus. Aliás, os judeus nada inventaram. Eles apenas copiaram histórias das mitologias de civilizações mais antigas e mais avançadas que sempre os conquistaram e os escravizaram: Sumérios, Egípcios, Assírios, Babilônios, Persas, Gregos e Romanos. A Bíblia contém uma infinidade de nomes de pessoas que não existiram, com nomes que não são judaicos, pois foram plagiados das civilizações das quais os mitos foram copiados. Moisés é um deles. É uma corrupção do nome do faraó egípcio Ramsés, que significa Filho do Sol (Ra = sol, Mses = filho). O nome original, Mses, teve a vogal ´o´ acrescentada, para tornar a palavra pronunciável. Em português, acrescentaram também a vogal ´i´. Os judeus inventaram a história de que o povo hebraico foi escravizado pelos egípcios e que um judeu poderoso, chamado Mses (Moses ou Moisés), venceu os egípcios com seus poderes mágicos, libertou seu povo da escravidão e o levou à terra prometida por Deus. Mses, que significa apenas filho, não é nome de pessoa, nem na antiga civilização egípcia nem na judaica. Você poderia ser filho de alguém no nome, mas este era sempre composto, desde os tempos antigos até nossos dias. Exemplos:  Bartolomeu = Filho (bar) de (P)Tolomeu; Barrabás = Filho (Bar) do pai (Abbas); Paul McCartney = Paul, filho de (Mc) Cartney; Eric Von Brown = Eric, filho de (Von) Brown, etc. Certamente, por volta dos anos 500 antes da era comum, quando a Bíblia foi inventada, os judeus conheciam os egípcios e, certamente mais uma vez, eles deviam estar fascinados com os avanços morais e tecnológicos dos egípcios que, entre tantas maravilhas, já faziam testes de gravidez e sabiam, com 90% de acerto, se a criança seria menino ou menina. Para combater o complexo de inferioridade, nada melhor que inventar uma história de um povo paupérrimo em ideias e tecnologias  que vence uma civilização super-adiantada. O estigma desse complexo está bem expresso no mito de David e Golias. Os judeus dissidentes da ortodoxia farisaica e saduceia da nova era, que deram início a uma religião que, mais tarde se chamaria cristianismo, também acreditavam, inocentemente, que Moisés existiu e tinha poderes mágicos que aprendeu com os egípcios. Estevão, um dos personagens fictícios do novo testamento da Bíblia, diz no parágrafo 7, versículo 22 de Atos dos Apóstolos que Moisés era versado na sabedoria e magia dos egípcios e que suas palavras tinham um enorme poder, e que esse poder era exercido não apenas com palavras, mas também com um condão  mágico que foi usado na fuga para a terra santa, quando perseguido pela tropa egípcia e ficaram sem saída ao dar de encontro com o mar. Então, Moisés ergueu seu condão, pronunciou palavras mágicas, e as águas do mar se dividiram para dar passagem aos judeus. Os Egípcios os seguiram pelo leito seco do oceano e, assim  que os judeus acabaram de passar, com o mesmo poder mágico, Moisés fechou as águas do mar e afogou todo o exército egípcio! (leia o livro mitológico chamado Êxodos, capítulo 24, versículos 21 a 28).  Essa ideia de dividir as águas do mar é pura criatividade dos judeus para sustentar uma fantasia? Não, não é. é apenas mais um dos inúmeros plágios. Um papiro da décima oitava dinastia egípcia, do ano 1550 antes da era comum, conta uma história que data dos tempos das pirâmides de Quéops (há mais de 3 mil anos antes da era comum). Diz a história que, certo dia, o rei Seneferu estava triste e desanimado. Ele chamou os nobres de sua corte real para lhe alegrar, mas eles nada puderam fazer. Então o rei mandou chamar o sacerdote Tchaca tcha-em-ankh. Este sugeriu que o rei desse um passeio de barco no lago junto ao palácio, animando-o com as alegrias que ele teria ao ver a linda paisagem nas margens do lago. Além disso, o sacerdote pediu-lhe permissão para preparar a jornada, adornando o barco com vinte remos de ébano, banhados a ouro, vinte jovens virgens, de feições maravilhosas, cabelos ornamentados e quadris perfeitos. E ao invés de estarem com suas próprias vestimentas, estas jovens estariam emaranhadas em vinte redes.  Elas iriam remar e cantar ao mesmo tempo.  O rei aceitou o que o sacerdote lhe propôs. E, de fato, o rei alegrou-se muito com o  passeio de barco, enquanto as jovens virgens remavam e cantavam. De repente, uma delas deixou cair na água um ornamento de seus cabelos, feito de um novo tom de azul turquesa. Imediatamente, ela parou de remar, e assim fizeram as outras 19 virgens. Ela e as demais se recusavam a remar enquanto seu adorno não fosse recuperado. O rei, então, mais uma vez, pediu ajuda ao sacerdote Tchaca tcha-em-ankh, e este, ao chegar ao local onde o barco estava estacionado, proferiu palavras mágicas, as águas do lago se dividiram, permitindo que uma das remadoras descesse ao fundo e pegasse o paramento. Uma vez que o ornamento da jovem foi recolado aos seus cabelos, o sacerdote juntou as águas do lago, o passeio pelo lago prosseguiu e o rei voltou a alegrar-se.


sábado, 6 de maio de 2023

O RISCO DA FÊNIX

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)

ESCRITO EM 2019

Em meados do último mês de Abril de 2019, Kuriac voltou a fazer contato. Ele é um colega do antigo ginásio que não vejo há mais de meio século. Ele parece viver numa das estrelas Gliese, a mais de 50 anos luz do nosso planeta, me enviando mensagens por radiotelescópio que, de acordo com as leis da astrofísica, demoram milênios para chegar. Tudo que ele me escreve tem cheiro de bolor do passado, mas como o tempo é relativo, o teor de suas missivas versa sobre o nosso presente e são recebidas em tempo real. Kuriac me pergunta qual foi meu diagnóstico depois de uma quimioterapia de 16 semanas. Em Agosto de 2018, quando lhe disse que estava com câncer e seria submetido a uma cirurgia para retirar um tumor de 6 cm, ele emputeceu.'Mas que notícia desgraçada!' Ele acompanhou meu calvário somente à distância, de Agosto até agora, uótizapando com minha mulher, a guerreira Cecília, como ele a chama, lembrando-me de Antígona de Sófocles, reverenciada por Werner Jaeger em Paidéia: A Formação do Homem Grego, um livro que recomendei a ele. Quando lhe disse que Shakespeare se inspirou em Antígona para escrever Romeu e Julieta ele se interessou, não pela história de amor incondicional. Ele quer e vai filosofar e dissecar questões de desobediência civil, de desafio às autoridades. No mês do meu aniversário, a notícia que recebi foi menos furibunda. Minha oncologista confirmou que o nódulo no pulmão, acusado pela recente tomografia computadorizada, não é maligno, nem mesmo requer biópsia. Apenas acompanhamento com exames de praxe de tempos em tempos. 'Mas que notícia maravilhosa,' ele exclamou, 'alegrou meu sábado. Parabéns para você e para a Cecília que segurou com galhardia essa barra a seu lado!' Eu já me preparava para o inevitável e fiz uma viagem do espírito, como Gao Xingjian em A Montanha da Alma. Será que minha próxima tomografia irá revogar minha pena de morte, como no caso de Gao que foi, erroneamente, diagnosticado com câncer no pulmão? Espero que o carcinoma me conceda a manumissão definitiva. Enquanto meu atestado de alforria não for assinado, com firma reconhecida em cartório, não ouso sair por aí fogueteando. Há sempre o risco de dar chabu. Kuriac virtualizou na última idade. O malledeto não veio me visitar no hospital como prometera. Diz um ditado árabe que a primeira pessoa que vem lhe saudar num nosocômio é sempre seu melhor amigo. Você acredita no adágio americano 'A friend in need is a friend indeed?' Será que o verdadeiro amigo realmente aparece quando nos encontramos em dificuldades? Minhas experiências com esta máxima trazem mais dúvidas do que certezas, no que diz respeito à estima entre pessoas do mesmo sexo. Aliás, achei muito engraçado o que falou Oscar, o Mão Santa do basquete, numa entrevista a um programa esportivo: 'Não existe amizade entre homem e mulher, a menos que um dos dois seja feio demais.' Será? Bem, não me presto a esperar por um Godot de Samuel Backett. Não levo jeito para a inércia de Estragon e nem para a inquietação de Vladimir. Parafraseando Eça de Queirós, como não tenho mania francesa e burguesa de jogar as farinhas de regiões e raças no mesmo saco da civilização, quebrei a monotonia abominável do teto do meu quarto cancroide relendo algumas peças de minha juventude: Five Finger Exercise de Peter Shaffer, The Kitchen de Arnold Wesker e The Hamlet of Stepney Green de Bernard Kops. Danem-se os provérbios! Viva a verdade firme e assegurada, de que não pode se duvidar, princípio primeiro do cartesianismo! Ave Cogito, Ergo Sum! Salve a dupla Napoleon Solo e Illya Kuryakin! Kuriac nunca veio à minha casa. Cansei de convidá-lo para um papo e algumas taças de vinho. Eu entendo e respeito sua relutância em aquiescer aos meus convites. Talvez um encontro face to face desguarnecesse nossa solidão licomaníaca, nossas horas de entre lobo e cão, após nossas fadigas cotidianas da luz do dia, quando começamos a arquitetar pensamentos perversos e uivar nossos cogitos. Expor nossas velhas carcaças poderia inibir o que os nossos inconscientes liberam nas altas horas sem permissão. Para ciciar vícios basta esta plataforma. São tesouros escondidos do mundo, exceto dos hackers que abundam nas redes sociais e das grandes potencias espiãs que violam a privacidade de todos internautas. Num rendez-vous tetê-à-tetê nossos olhares poderiam descuidar nossos segredos guardados a medo. Melhor permanecermos os estrangeiros de Albert Camus. Somos agentes ultrassecretos, cada um cuidando de sua rotação, um da terra, outro da lua, e o sol é para todos, conforme Harper Lee expõe de maneira brilhante no seu livro To Kill A Mockingbird. Kuriac considerou boas minhas novas, mas, no meu entender, elas ainda são interinas, por isso não esperei receber alvíssaras. Kuriac, no entanto, deu o meu caso cancerígeno por encerrado e propôs-me a volta à normalidade, muito diferente da definição daquele beneditino apocalítico no livro O Nome Da Rosa de Umberto Eco, segundo o qual 'normal é a preservação do conhecimento e não a busca do mesmo, pois não existe progresso na história do conhecimento, mas meramente uma contínua e sublime recapitulação.' Kuriac quer o retorno à vida na sua plenitude, às ironias, e ainda aconselha: 'Sorria muito, sorria sempre, mesmo que seja com sarcasmo, com desdém. Cultue a disposição sombria do espírito ao escárnio. A misantropia se enternece.' Sobre quais aversões podemos falar? Não podemos ter uma conversa menos filosófica do que humana do tipo Xenophon: Conversations With Socrates: Socrates’ Defence, Memoirs Of Socrates, The Dinner-Party, The Estate Manager? Não, ainda não podemos. Kuriac tem na mão e na alma o retorno ao ordenamento moral: 'A excitação pela luxúria não deve ser tratada com amor, e sim com toda a volúpia e despudor, num frenesi animalesco da carne uivante no cio doentio.' E, em seguida, retoma a fraternidade: 'Vou tomar um vinho branco em homenagem à sua saúde!' Não devo te agradecer, Kuriac, em respeito à parrésia dos gregos, lembra-se? Para, pelo menos, celebrar a sua solicitude e o meu euangélion provisório, esforço-me por alegrar-me com esta pilhéria: 'O que faço com o caixão que minha sogra me enviou de presente?' A resposta veio em segundos: 'Mete ela dentro e joga no incinerador, depois espalhe as cinzas ao vento. Mas sempre há o risco da Fênix!'


sexta-feira, 5 de maio de 2023

ASSIM FLUÍA A INSONDÁVEL RELATIVIDADE DO TEMPO



Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 

Não há nada mais mágico e revelador do que um sonho que te tira de uma vida sobreposta e te lança na dúvida entre morrer só com a lembrança e entregar-se ao conhecimento absoluto e extrair dele tudo que uma única vida sensorial jamais lhe dará. Na dúvida, perdemos tempo, desperdiçamos energia tentando encontrar um significado para a vida, mas ela é simplesmente tudo que acontece enquanto fazemos planos para ela. Para nós o tempo passa, mas na verdade ele só fica. Tenho as vozes dos anjos ressonando em minha mente, desvelando minha paixão e minha brandura. Tenho não apenas um único espelho da alma, mas dois, e quando acordo todas as manhãs meus olhos se abrem a se alinham, e entre eles é criada uma série interminável de reflexos, inebriantes, movendo-se uníssonos, sem terem consciência de si mesmos, luzes umas sob as outras, outras sob mais outras, mais outras sob o infinito. Nossas limitadas experiências não passam de uma projeção holográfica que sucede em algum lugar muito distante de tudo que nos cerca. Eu me belisco e sinto a dor, mas o beliscão reflete um processo paralelo que está muito distante da realidade. Tenho como provar que o mito da caverna de Platão não era uma simples metáfora. Sou capaz de aproximar-me da beira do horizonte de eventos das mais fantásticas ocorrências do universo, sem a preocupação de que estou tomando um caminho sem volta. Minha singularidade será apreendida só por mim, mas ficará estampada para sempre nesta vida ilusória. Não quero passar com o tempo. Quero ficar nele, com todas as minhas fantasias, e experimentar do que é feita a mágica no ar, do que são feitos os sonhos, do que é feito o tempo passar sem sair do lugar.



quinta-feira, 4 de maio de 2023

JUÍZO NUMINOSO - NÃO HÁ CRIMES NO PARAÍSO

Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. 



Quem bate tão forte como se tivesse cem nós de dedos por noite tão fechada?
Uma aspirante, saída do purgatório, ainda perdida.
Qual é a senha?
Bati a cem portas pelo umbral. Rezo para que esta não seja serventia da casa. Deram-me um violento repouso do corpo e temo que assassinem-me o da alma.
A senha está incorreta, e não há nada para se preocupar. As pessoas não cometem assassinatos no paraíso.
Como se bate a alcatra nesta terra de pés juntos?
Que gíria é essa, mocinha? Aqui se rende o espírito de velhice. Os mais jovens de doenças e acidentes.
O que é um acidente no paraíso?
Um menino se escondeu da chuva debaixo de uma árvore. Ela atraiu um raio que fulminou o garoto.
Ele morreu queimado?
Não necessariamente. A intensa descarga elétrica provoca uma parada cardíaca instantânea.
Isto é um exemplo ou um caso real?
Real.
Você presenciou?
Não. Alguém me contou.
Talvez ninguém tenha lhe contado sobre algum homicídio que você não tenha visto.
Impossível. Não há crimes no paraíso.
Então por que aí há guardas com armas de fogo?
Quem lhe disse isso?
Alguém me contou.
Alguém que foi expulso daqui?
Eu não sabia que as pessoas são expulsas do Éden.
Todo o mundo sabe o que aconteceu com Adão e Eva e os anjos caídos.
Eles fazem parte dos primórdios da criação. Os tempos mudaram muito.
Os critérios continuam os mesmos desde então.
A misoginia também?
Pare com esta ironia, mocinha. Isso não é nada bom para seu julgamento. Lembre-se do que um dos grandes apologistas cristãos disse na terra: A mulher dá a luz na dor e na angústia. Finge que sofre a atração do seu marido e deixo-o pensar que ele é o seu senhor. Ela ignora a Eva que é. Não se importa por estar ainda viva, neste mundo, a sentença de Deus contra o seu sexo. Impõe-se como uma ousada. Ela é a porta do diabo. Enganou o único quem Belzebu não conseguiu seduzir. Foi ela quem facilmente venceu o homem que é a imagem de Deus. Foi sua recompensa, a morte, que causou a morte do próprio filho de Deus. E mesmo assim, ainda ela cobre-se toda de ornamentos e túnicas de pele.
Os apóstolos  não disseram que foi Judas Iscariotis quem traiu o filho de deus?
Ocorre que Judas foi ardilosamente desencaminhado pelo demônio, uma mulher.
Uma mulher? Meus pais me ensinaram que anjos e demônios não têm sexo.
Os anjos não, mas os demônios são todos do sexo feminino.
Mas todos os demônios têm nomes masculinos: Belzebu, Azazel, Beliel, Lúcifer, Baal... e em todas as suas representações na terra eles são apresentados como machos fecundando fêmeas terráqueas para gerar o anticristo.
Que petulância é esta, mocinha? Está querendo ensinar o pai-nosso ao vigário e incriminar-se no seu julgamento? Você ainda não me respondeu quem lhe disse que aqui há policiais armados. 
Foi um drone que sobrevoou o céu e viu tudo.
Isto é ridículo. O paraíso é coberto por uma redoma de vidro.
Se é de vidro é transparente.
Seu sarcasmo ferino de conversa ordinária engana a ti mesma. A redoma é um espelho, como aquele usado nas salas de reconhecimento de criminosos nas delegacias da terra. Quem está dentro enxerga todo o firmamento. Quem está fora apenas vê sua imagem refletida.
Esse tipo de vidro deixa passar a luz, mas não deixa passar a água. Então como pode um raio matar uma criança se não chove no paraíso?
De onde você tirou tamanho disparate? Sua insolência já está passando dos limites. Você está pondo em dúvida os desígnios de Deus? Ele ajudou Moisés a separar as águas do mar. Fez chover maná no deserto. Seu filho na terra andou sobre as águas. Deus é capaz de tudo que está além de nossas imaginações.
Eu sou muito boa na água.
O que você quer dizer com esta parvoíce? Está insinuando algum tipo de comparação com Moisés e Jesus Cristo?
Não! Sou muito melhor do que eles!
Como você ousa proferir tal ultraje? Já agora um anjo guardião sussurra em meu ouvido que você é a última das sete filhas de um casal que não foi batizada pela irmã mais velha, e que vira coruja, e, à noite, entra pelos telhados e pelas janelas para chupar o sangue de crianças, bebe cachaça e pia forte, voando e soltado gargalhadas.
Nossa, este teu anjo fala como gente de minha terra. Não cheguei aqui voando. Após minha morte matada, viajei uma semana debaixo d´água até aqui. Consigo prender a respiração por quanto tempo eu quiser.
Isso é uma blasfêmia! Você deve ter sido uma bruxa queimada viva pela Santa Inquisição. Você não foi assassinada. Deve ter recebido a pena capital por prática de  feitiçaria.
Não sou bruxa nem da idade média. Sou paranormal e atemporal.
Meu Deus, você é mesma o satanás disfarçado de pobre coitada, querendo nos seduzir, mas aqui você não entra.
Certamente você conhece a mágica de levitação de pessoas que ficam suspensas no ar no sentido horizontal e o mágico passa uma argola pelo seu corpo para mostrar ao público que não há nada sustentando-as por baixo ou suspendendo-as por cima. Isso é apenas um truque barato. Olhe para mim agora. Estou levitando na sua frente.
Meu Deus do céu, você é o próprio demônio. Já chega. Vou anunciar meu veredito: você vai para o inferno.
Nada disso. Olhe bem para mim. Quantos olhos você vê?
Ave Maria, isso é uma monstruosidade. Você virou uma ciclope. Vou te despachar para o inferno agora mesmo.
Espere um pouco. é você quem está enganando a si próprio. Não estou sendo julgada. Sou eu quem está adjudicando. Agora você vai saber quem eu sou. Eu inventei o primeiro evangelho. É minha aquela frase colocada na boca do mitológico filho de deus: Onde quer que sejam pregadas estas boas novas, que será em todo o mundo, será também em memória desta mulher pelo que ela fez aqui hoje. Sabe o que fiz? Acabei com aquela machista lei semita de que a mulher deve pagar um dote ao noivo se quiser casar com ele.
Errado, sua bruxa! Esta lei nunca foi abolida na Palestina.
Nunca estive na Palestina. Inventei o evangelho em Roma. Tem mais. Quando eu disse que fui assassinada e que não queria ser assassinada novamente no paraíso, não dei uma resposta à sua pergunta sobre senha, porque ela não existe. Quis apenas lhe dizer que, por milênios, a mulher têm sido assassinada pela misoginia masculina. Você se mostrou um autêntico e repugnante misógino. Com meu poder extrasensorial pude ver que este paraíso está armado e mata quem dele tenta fugir, como se fazia na ex-URSS e Cuba, por isso vou fecha-lo e transforma-lo num infinito salão de baladas para a juventude.
Olha só meu anjo! Ela solta ectoplasma de seus dedos, desmaterializa nosso lugarzinho de delícias e volta a engolir a substância. Deus nos ajude!
Isto não lhe parece um sonho?
Sonho? Isto é pior que um pesadelo, pior que o terror noturno. É o estertor da morte, martírio eterno, o ranger de dentes, o penar do inferno. Que Deus tenha misericórdia!
Não. Este é um de meus estranhos sonhos. Não sei quem me colocou nele. Sei apenas que sempre estou sendo testada. Você acha que passei no teste? E você, quem é? Um figurante? Meu animus? Ou você é apenas um sonhador com o inconsciente coletivo que assiste a tudo de uma plateia solitária?  E eu, sua anima? Somos aqueles que permanecem à margem do cenário onírico, Que rouba o espírito em toda sua glória, E fragmenta as lembranças pela metade? Nada em nós precisa de um deus. Tudo em nós só precisa ser numinoso, um sonho, que traduz nossas vidas, e do qual sempre acordamos morrendo.