Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98. LEIA O TEXTO AO SOM DA MÚSICA DO VÍDEO POSTADO NO FIM. Sem ela, a vida seria um erro (Friedrich Nietzsche)
ESCRITO EM 2019
Em meados do último mês de Abril de 2019, Kuriac voltou a fazer contato. Ele é um colega do antigo ginásio que não vejo há mais de meio
século. Ele parece viver numa das estrelas Gliese, a mais de 50 anos luz do nosso planeta, me enviando mensagens por radiotelescópio que, de acordo com as leis da astrofísica, demoram milênios para chegar.
Tudo que ele me escreve tem cheiro de bolor do passado, mas como o tempo é
relativo, o teor de suas missivas versa sobre o nosso presente e são recebidas em tempo real. Kuriac me
pergunta qual foi meu diagnóstico depois de uma quimioterapia de 16 semanas. Em
Agosto de 2018, quando lhe disse que estava com câncer e seria submetido a uma
cirurgia para retirar um tumor de 6 cm, ele emputeceu.'Mas que notícia desgraçada!' Ele acompanhou meu calvário somente à distância, de Agosto até agora,
uótizapando com minha mulher, a guerreira Cecília, como ele a chama,
lembrando-me de Antígona de Sófocles, reverenciada por Werner Jaeger em Paidéia:
A Formação do Homem Grego, um livro que recomendei a ele. Quando lhe disse que
Shakespeare se inspirou em Antígona para escrever Romeu e Julieta ele se interessou,
não pela história de amor incondicional. Ele quer e vai filosofar e dissecar questões de desobediência civil, de desafio às autoridades. No mês do meu aniversário, a
notícia que recebi foi menos furibunda. Minha oncologista confirmou que o
nódulo no pulmão, acusado pela recente tomografia computadorizada, não é
maligno, nem mesmo requer biópsia. Apenas acompanhamento com exames de praxe de
tempos em tempos. 'Mas que notícia maravilhosa,' ele exclamou, 'alegrou meu sábado. Parabéns para
você e para a Cecília que segurou com galhardia essa barra a seu lado!' Eu
já me preparava para o inevitável e fiz uma viagem do espírito, como Gao
Xingjian em A Montanha da Alma. Será que minha próxima tomografia irá revogar
minha pena de morte, como no caso de Gao que foi, erroneamente, diagnosticado
com câncer no pulmão? Espero que o carcinoma me conceda a manumissão
definitiva. Enquanto meu atestado de alforria não for assinado, com firma reconhecida em cartório, não ouso sair por aí fogueteando.
Há sempre o risco de dar chabu. Kuriac virtualizou na última idade. O malledeto não veio me visitar no
hospital como prometera. Diz um ditado árabe que a primeira pessoa que vem lhe
saudar num nosocômio é sempre seu melhor amigo. Você
acredita no adágio americano 'A friend in need is
a friend indeed?' Será que o verdadeiro amigo realmente aparece quando nos encontramos
em dificuldades? Minhas experiências com esta máxima trazem mais dúvidas do que certezas, no que diz respeito à estima entre pessoas do mesmo sexo. Aliás, achei muito engraçado o que falou
Oscar, o Mão Santa do basquete, numa entrevista a um programa esportivo: 'Não existe amizade entre homem e mulher, a
menos que um dos dois seja feio demais.' Será? Bem, não me presto a esperar por um Godot
de Samuel Backett. Não levo jeito para a inércia de Estragon e nem para a inquietação de Vladimir. Parafraseando
Eça de Queirós, como não tenho mania francesa e burguesa de jogar as farinhas
de regiões e raças no mesmo saco da civilização, quebrei a monotonia abominável
do teto do meu quarto cancroide relendo algumas peças de minha juventude: Five
Finger Exercise de Peter Shaffer, The Kitchen de Arnold Wesker e The Hamlet of
Stepney Green de Bernard Kops. Danem-se os provérbios! Viva a verdade firme e
assegurada, de que não pode se duvidar, princípio primeiro do cartesianismo! Ave
Cogito, Ergo Sum! Salve a dupla Napoleon Solo e Illya Kuryakin! Kuriac nunca veio
à minha casa. Cansei de convidá-lo para um papo e algumas taças de vinho. Eu
entendo e respeito sua relutância em aquiescer aos meus convites. Talvez um
encontro face to face desguarnecesse nossa solidão licomaníaca, nossas horas de
entre lobo e cão, após nossas fadigas cotidianas da luz do dia, quando começamos
a arquitetar pensamentos perversos e uivar nossos cogitos. Expor nossas velhas
carcaças poderia inibir o que os nossos inconscientes liberam nas altas horas
sem permissão. Para ciciar vícios basta esta plataforma. São tesouros
escondidos do mundo, exceto dos hackers que abundam nas redes sociais e das
grandes potencias espiãs que violam a privacidade de todos internautas. Num rendez-vous tetê-à-tetê nossos olhares poderiam
descuidar nossos segredos guardados a medo. Melhor permanecermos os
estrangeiros de Albert Camus. Somos agentes ultrassecretos, cada um cuidando de
sua rotação, um da terra, outro da lua, e o sol é para todos, conforme Harper Lee expõe de maneira brilhante no seu livro To Kill A Mockingbird. Kuriac considerou boas minhas novas, mas, no meu entender, elas ainda são interinas,
por isso não esperei receber alvíssaras. Kuriac, no entanto, deu o meu caso cancerígeno por encerrado e propôs-me a volta à normalidade, muito diferente da definição daquele beneditino apocalítico no livro O Nome Da Rosa de Umberto Eco, segundo o qual 'normal é a preservação do conhecimento e não a busca
do mesmo, pois não existe progresso na história do conhecimento, mas meramente
uma contínua e sublime recapitulação.' Kuriac quer o retorno à vida na sua
plenitude, às ironias, e ainda aconselha: 'Sorria muito, sorria sempre, mesmo que seja
com sarcasmo, com desdém. Cultue a disposição sombria do espírito ao escárnio.
A misantropia se enternece.' Sobre quais aversões podemos falar? Não podemos
ter uma conversa menos filosófica do que humana do tipo Xenophon: Conversations
With Socrates: Socrates’ Defence, Memoirs Of Socrates, The Dinner-Party, The
Estate Manager? Não, ainda não podemos. Kuriac tem na mão e na alma o retorno ao ordenamento moral: 'A excitação pela luxúria não deve
ser tratada com amor, e sim com toda a volúpia e despudor, num frenesi
animalesco da carne uivante no cio doentio.' E, em seguida, retoma a fraternidade: 'Vou tomar um vinho branco em homenagem à sua saúde!' Não devo te
agradecer, Kuriac, em respeito à parrésia dos gregos, lembra-se? Para, pelo menos, celebrar a sua solicitude e o meu euangélion provisório, esforço-me por alegrar-me com esta pilhéria: 'O que faço com o caixão que minha sogra
me enviou de presente?' A resposta veio em segundos: 'Mete ela dentro e joga no
incinerador, depois espalhe as cinzas ao vento. Mas sempre há o risco da Fênix!'
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