Texto de autoria de Alceu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98
Véspera de Natal de
2008, Ruth deixa o apartamento, Como quem deixa por enquanto uma tragédia, E
pega o elevador, Como quem já sabe que não pegará cadeia perpétua, Terá tudo
confiscado, Até suas roupas íntimas, E quase nada sobrará para pagar um
advogado, Ela vai ao cabeleireiro, Uma persistência caturra numa rotina
estúpida, O salão não leva em conta sua inocência, E ela paga pela contagiosa
trapaça do marido Bernie, Um dos melhores American Hustles,
Na mesma noite, Eu,
minha esposa e minha filha de 5 anos estamos dirigindo pela New York State
Thruway 90, Já passamos por Erie, Buffalo e Rochester, Estamos indo em direção a
Syracuse, Antes da solenidade e do júbilo que nos espera no Brasil em Janeiro,
Na estrada reina precipitação que não cria caso com a perfeição, Porque o
rigoroso inverno do hemisfério norte, Abaixo de zero, Apressa a noite que cai
com a tempestade de neve, Extrema alvura que embaça e, Ao mesmo tempo, Estatela
a escuridão,
Ruth volta para casa
resmungando queixas ao companheiro, Enxotada pelos amigos, Sem nada, Sem nunca
ter trabalhado, Desenganada por tantas mentiras, Ela prefere a morte, Sem
esperar por Deus, Sugestão a qual o homem aquiesce sem hesitar, Eles têm dois
tipos de metanfetamínicos em quantidade suficiente para prover uma farmácia, A
cama é aconchegante, O filme na TV é antigo e traz boas lembranças, Levaram uma
vida as good as it gets, Agora é só esperar o sono vir e
dormir,
Syracuse está próxima,
Decidimos entrar na cidade junto à rodovia, A pequena Liverpool, Onde já
estivemos, Tão pequena que nem aparece no mapa, O Homewood Suites que nos
acolherá parece estar perdido, Escondido no meio de coisa alguma, Nada de suas
habitações e suas gentes que parecem terem saído para passar as festas de fim de
ano no calor da Flórida e da Califórnia, Lá dentro, Como lá fora, Só há uma alma
viva, Lá fora, Um guarda fantasmagórico sob luzes de neon neblinadas como
lampiões com gás no fim, Lá dentro, Aquele que recebe hóspedes e cobra
deslumbrantes US$ 150 a diária, Por uma câmara-ardente no sepulcrário, Onde se
houve o som do silêncio, Amanhã é dia 25, Será que haverá café da manhã?, Isso é
tão certo quanto o aparecimento de uma alma feminina desacompanhada, Embutida em
calça, blusa de moletom e tênis, Pronta para o Cooper matinal,
O sol da liberdade em
raios fúlgidos brilhou no céu da pátria americana no dia seguinte, Dia de abrir
presentes e reunir a grande família, Mas a providência interrompeu o sonho de
sono eterno do casal, Ao amanhecer, Dormiram uma inércia quieta e acordaram
surpresos, Nunca se imaginou que uma boa mulher e um mau homem pudessem
despertar ainda casados com a vida, Meio atordoados, Menos ressacados que um
grande porre, E agora enfrentam o resto da dura realidade, A maldição da legião
dos que foram lesados, A prisão eterna de um, A pobre liberdade de outra, O
trágico suicídio de um filho envergonhado,
Sentados à mesa de um
dos cômodos do enorme hotel residência, Tão grande quanto a solidão de um menino
num internato, Nós três ceamos comida congelada do freezer e requentada, Regada
a sucos, E fazemos planos, Deixar que tudo se perca, Os sacrifícios de tantos
anos foram inúteis, Nem mesmo recebemos qualquer gesto de reconhecimento e
gratidão de tantos beneficiados, Nem retaliação dos que foram prejuicados, Já naquele tão esperado evento no mês que
inicia um novo ano, Fomos homenageados com um primor de indiferença e ojeriza,
Que só perdem para uma ameaça psicológica de execução de fundamentalistas, Que decepam suas vítimas ao
vivo e postam os vídeos nas redes sociais.
Não temos nenhuma
importância, Nossas vidas não fazem diferença nenhuma no mundo, Somos apenas um
pouco excêntricos, Como num filme cult, Uma desunanimidade deseinteligente,
Aqueles que os alienígenas marcaram por engano e foram descartados, Porque ligamos para algo ao qual
possamos recorrer, Alguém que possamos tocar e abraçar, Algo com o qual possamos
se importar, Alguém de quem possamos sentir falta, Beijar e amar, Algo
assim, Ver uma filha tão jovem tentando o suicídio é o mesmoo que morrer. Ver uma mãe padecendo de tanta tristeza e ainda reunindo forças para seguir adiante com toda essa amargura, medo e insegurança, pôs fim ao último resquício do medo que eu tinha de morrer. Já estou morto por dentro e meu invólucro é descartável como uma casca de banana. Dezesseis anos depois, O padrão de solidão ganhou nova
roupagem, palavras que roubei de alguém no facebook: Fiz de mim mesmo meu amigo íntimo e, assim, nunca me sinto sozinho.