Texto de autoria de Aleu Natali com direito autoral protegido pela Lei 9610/98.
São Paulo. 1961. Josefina dirigi-se ao Grupo Escolar
Expedicionário Brasileiro. Mesmo com todo seu catedraticismo, ela está
agitadíssima. A professora de sua filha, Claudia, de apenas 7 anos, chamou-a
para uma conversa. Josefina é superior, tem título de doutorado em sociologia.
Rute, a professora de primário, é inferior. Ninguém aqui faz discriminações, nem
Josefina, nem Rute, nem o narrador. Como dizem os teólogos, trata-se apenas de
um Sitz im Leben. Josefina está demasiadamente preocupada com a possibilidade de
Claudia ter levado à sala de aula as maluquices que ela conversa com seu irmão
gêmeo, Cesar, em casa, e acabou extrapolando.
- Do que se trata, professora Rute?
- Calma, dona Josefina. Vamos por partes. Sente-se. Quer
beber algo, café, chá, água?
- Não, obrigada. Estou bem.
- Este mês eu decidi que a dissertação seria com tema livre.
Sua filha me entregou isto. Leia, por favor.
Os Humanos
Se eu fosse Deus, a raça humana seria negra, e todos poderiam
fosforejar em seus olhos qualquer cor do arco-íris; eu reuniria os continentes
que há muito foram separados, e faria deles uma única ilha, sem fronteiras, sem
desigualdades; acalmaria as forças interiores da terra e imobilizaria todas as
placas tectônicas, assim acabaria com os maremotos, os terremotos e as erupções
vulcânicas, aliás, adormeceria os vulcões para sempre e, deste modo, não
teríamos mais tragédias catastróficas como os tsunamis; manteria a lua onde
ela está, só alteraria um pouquinho sua força gravitacional sobre a terra para
que não tivéssemos marés exageradamente altas e ressacas no mar; eu ajustaria,
também, um pouquinho o eixo de inclinação da terra para que as quatro estações
fossem melhor definidas, ah, já tinha esquecido: o único continente ficaria bem no
meio do trópico que separa o hemisfério sul do norte, e assim não teríamos frio
rigoroso e nem calor escaldante; domaria nosso clima de vez, como se doma uma
fera, e controlaria todos os movimentos que causam, furacões, tornados, tufões,
tempestades, trombas d’águas e outras intempéries; as chuvas seriam calmas, em
volume e frequência suficientes para irrigar as lavouras; os trovões seriam
melodiosos e os relâmpagos jamais desceriam do céu à terra; nosso campo
magnético seria reforçado para melhor filtrar os raios solares e evitar
queimaduras e câncer de pele, e nosso escudo protetor transformaria meteoros de
qualquer tamanho em lindas plêiades, coloridas como a aurora boreal; a terra
vista de cima, de um belo azul salpicado de algodão branco; os mares e rios
revezando o anil com a esmeralda, e a vegetação verdejante borrifada por flores
de todas as cores; será que Deus nunca pensou nisso?
Na paixão úmida de sua vista, lágrimas querem minar, como
olho-d’água, mas Josefina, ainda com o queixo apoiado na mão esquerda, as contém
com um sorriso quase impenetrável que exterioriza uma gama numerosa de
sentimentos: orgulho, surpresa, reflexão e outros indecifráveis.
- E então, dona Josefina?
- É muito interessante.
- A senhora há de convir que a gente espera algo assim de um
adolescente precoce de 16 anos, e com um Q.I. extremamente alto,
como, acredito, deve ser o de Claudia, mas não de uma menina de 7 anos que, durante as aulas, fica se tocando e me diz que quer sentir como seu corpo ocupa um lugar no espaço terrestre. O que a
senhora acha?
Josefina está focada num detalhe que ela não vai compartilhar
com a professora: a intrigante relação entre o texto e seu título. Embora
Claudia fale de uma única raça humana e do fim das desigualdades, o tema central
diz respeito ao que Deus poderia fazer para tornar o planeta menos inóspito, do
ponto de vista geológico.
- Sim, concordo com a senhora.
- A Claudia tem o hábito de ler?
- Eu sei que ela fuça na minha estante e mexe em todos os
livros, os meus e os de meu marido, mas ela não passa o tempo todo lendo. Ao
contrário, ela é muito ativa e está sempre brincando com o irmão e contando
histórias. Posso ficar com a dissertação?
- Vou tirar uma xérox para a senhora.
- Mais alguma coisa, professora?
-Sim, tem mais. Eu permiti que os alunos saíssem para o
recreio assim que entregassem a dissertação. Eu esperava que a Claudia fosse a a primeira a entregar, porque ela é muito inteligente e de raciocínio rápido.
No entanto, ela foi a última. A classe estava vazia, e ela continuava lá,
sentada e escrevendo. Esperei mais uns 15 minutos. Então decidi me aproximar
dela.
- Como vai sua dissertação, Claudia?
- Já terminei!
- Ela me entregou a dissertação e continuou escrevendo em
outra folha de papel.
- Está escrevendo outra dissertação?
- Não! Já terminei. Professora, eu ouvi uma música e gostei
muito dela. Posso cantar para a senhora?
- Oras, claro que pode!
- I steal a few breaths from the world for a minute
And then I'll be nothing forever
And all of my memories
And all of the things I have seen will be gone
With my eyes, with my body, with me
But me and my husband
We are doing better
It's always been just him and me
Together
So I bet all I have on that
Furrowed brow
And at least in this lifetime
We're sticking together
Me and my husband
We're sticking together
And I'm the idiot with the painted face
In the corner, taking up space
But when he walks in, I am loved, I am loved
Me and my husband
We are doing better
It's always been just him and me
Together
So I bet all I have on that
Furrowed brow
And at least in this lifetime
We're sticking together
Me and my husband
We're sticking together
Me and my husband
We are doing better
- Fiquei abismada, dona Josefina. Ela tem uma voz linda e
muito afinada. O mais fascinante: ela cantou em inglês! Meu inglês é muito
pobre, mas deu para perceber que ela tem pronuncia e dicção perfeitas! Alguém da
família é de descendência inglesa ou americana? Vocês falam inglês em casa?
Josefina recostou a cabeça levemente na cadeira, ergueu os
olhos para o teto, pensativa por alguns segundos: Minha filha, ó Deus, a tantas
virtudes vocês aspiram, se nesta vida concedestes a ela tamanha inteligência,
deve ser por um mundo melhor que vocês suspiram.
- Eu e meu marido sabemos falar inglês, mas nunca ensinamos
nada para a Claudia e o Cesar. Acredito que Claudia tenha facilidade com língua
estrangeira. Ela ouve músicas no rádio, muitas em inglês.
- É estranho, dona Josefina. Eu disse a ela: que lindo! E ela
respondeu:
- Professora, tem outra música que ouvi e adorei. Posso
cantar para a senhora?
- Pode! Mas só mais esta porque o recreio já está
acabando.
- Maravilhoso Claudia! Você canta muito bem! O que você escreveu nesta folha?
- Professora, sabe a primeira música que cantei?
- Sim.
- Ela se chama Eu E Meu Marido. Resolvi escrever minha própria versão desta música. Toma, fica para a senhora.
- Dona Josefina, leia o que a Claudia escreveu.
Algo vai acontecer, Não posso prever, Sinto no meu irmão, No meu coração, Passeamos com amigos, Sozinhos, Dormimos abraçados, De lábios colados, Em casa separados, Meus pais desconfiados, Gostamos do mar, De nadar, Demoramos para fazer amor, Por puro temor, De represália, De sermos marginália, Fugiríamos do país, Perderíamos a raiz, Mudamos de ideia, Sou professora de paideia, Ele joga grilobol, Faça chuva faça sol, Ficamos no Brasil, Metemos em brio, Revelamos nosso segredo, Guardado a dedo, Minha mãe já sabia, Mães têm sabedoria, Casamos, Engravidamos, Tivemos gêmeas como nós, Mas já não estamos sós, Todos querem nos entrevistar, Nos contratar, Alguns querem nos matar, Nos sequestrar, Os evangélicos, Maquiavélicos, Os mafiosos, Poderosos, A rede Global, A Igreja Universal, A Sony Pictures, Paparzzis slaughterous vultures, As editoras Loeb e Pinguin, O Pasquim e o Diário Tupiniquim, A BBC de Londres, A Folha de Flandres, O MI6, O russo e o chinês, A CIA, A hegemonia e a supremacia, Algo aconteceu, Como se percebeu, Trocaram nossa terra natal, Por um bunker abismal, Fomos abduzidos, Escondidos, Os paranormais não nos encontram, Os cientistas não demonstram, Que os humanos estão morrendo, E outros não estão nascendo, Nossas idênticas estão se multiplicando, Nosso planeta está melhorando.